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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.1 Lisboa fev. 2023  Epub 30-Mar-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i1.13298 

Relatos de caso

Uma fratura femoral atípica: relato de caso

An atypical femoral fracture: case report

Teresa Raquel Vaz1 
http://orcid.org/0000-0002-1706-0304

Luísa Sá2 

1. USF Nova Via, ACeS Espinho/Gaia. Valadares, Portugal.

2. MEDCIDS, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Porto, Portugal.


Resumo

Introdução:

A osteoporose é a doença metabólica mais comum do osso e os bifosfonatos são o seu tratamento de primeira linha. Apesar de eficazes a reduzir o risco de fraturas osteoporóticas têm surgido relatos de fraturas atípicas do fémur aparentemente relacionadas com a terapêutica prolongada com estes fármacos.

Descrição do caso:

Apresenta-se o caso de uma doente de 78 anos, diagnosticada há 21 anos com osteoporose. Ao diagnóstico foi medicada com ácido ibandrónico 150 mg mensal. Em 2007 foi feito switch terapêutico para ácido alendrónico 70 mg + colecalciferol 2800 U.I., semanal, o qual mantém desde então, perfazendo treze anos de terapêutica com esse fármaco. Foi transportada ao serviço de urgência de ortopedia na sequência de um trauma de baixa energia, do qual resultou uma fratura subtrocantérica do fémur esquerdo.

Comentário:

A relação causal entre o uso prolongado de bifosfonatos e as fraturas atípicas do fémur ainda não está estabelecida. Contudo, esta associação não deve ser ignorada, sendo essencial avaliar os riscos e benefícios antes de iniciar o tratamento, bem como promover uma vigilância ativa dos pacientes sob terapêutica prolongada com bifosfonatos. Os estudos reportam que mais de metade dos doentes que sofrem uma fratura atípica do fémur têm pródromos de dor na coxa ou na virilha, o que ocorreu no caso relatado, pelo que são sintomas que devem ser valorizados e ativamente questionados, sobretudo nos doentes medicados com bifosfonatos. Independentemente deste risco potencial, os bifosfonatos continuam a ser os fármacos de primeira linha para a prevenção de fraturas osteoporóticas, devendo a duração do tratamento ser individualizada.

Palavras-chave: Osteoporose; Bifosfonatos; Fratura femoral; Relato de caso

Abstract

Introduction:

Osteoporosis is the most common metabolic disease of bone. Bisphosphonates are the first-line pharmacological class used in its treatment. Despite its effectiveness in reducing the risk of osteoporotic fractures, reports of atypical femur fractures have emerged as potential complications of long-term treatment with these drugs.

Case report:

We present the case of a 78-year-old patient, medicated for 13 years with alendronic acid 70 mg + cholecalciferol 2800 IU, weekly, transported to the orthopedics emergency service following a low-energy trauma, resulting in a subtrochanteric fracture of the left femur.

Conclusion:

There is yet no established causal relationship between the occurrence of atypical femur fractures and prolonged treatment with bisphosphonates. However, this association should not be ignored, and it is essential to assess the risks and benefits before starting treatment, as well as to promote active surveillance of patients under long-term bisphosphonate therapy. Studies report that at least half of patients who suffer atypical fractures of the femur present prodromes of pain in the thigh or groin, which occurred in the case reported. Therefore, these symptoms should be valued and actively questioned, especially in patients receiving bisphosphonates. Regardless of this potential risk, bisphosphonates remain the first-line drugs for the prevention of osteoporotic fractures and the duration of treatment must be individualized.

Keywords: Osteoporosis; Bisphosphonates; Femoral factures; Case report

Introdução

A osteoporose é a doença metabólica mais comum do osso, caracterizando-se por redução da massa óssea e deterioração da microarquitetura do osso, alterações que condicionam um maior risco de fratura.1-3

Os bifosfonatos são a classe farmacológica de primeira linha utilizada no tratamento da osteoporose, sendo eficazes na redução do risco de fraturas. 3-6 O seu mecanismo de ação passa pela inibição da atividade dos osteoclastos, o que acaba por também condicionar uma inibição da remodelação óssea, tornando o osso mais suscetível à acumulação de lesões microscópicas que, com o tempo, podem culminar em fraturas. 3-8

De facto, têm surgido, na última década, relatos de fraturas atípicas do fémur como uma potencial complicação do tratamento a longo-prazo com bifosfonatos. 2-3,5

Este artigo tem como objetivo apresentar um caso de fratura atípica do fémur potencialmente induzida pelo uso prolongado de bifosfonatos e discutir aspetos importantes desta entidade para a prática clínica.

Descrição do caso

Doente do sexo feminino, caucasiana, de 78 anos, reside com o marido, encontrando-se na fase VIII do ciclo de vida familiar de Duvall. Tem o 4.o ano de escolaridade e era costureira numa empresa de confeções, encontrando-se reformada.

Antecedentes pessoais de insuficiência venosa periférica (submetida a safenectomia bilateral em 2009), gonartrose bilateral (submetida a colocação de prótese total do joelho direito em 2013), rizartrose da mão direita (intervencionada em 2016), dislipidemia medicada com sinvastatina 40 mg/dia e perturbação depressiva medicada com alprazolam 0,75 mg/dia e venlafaxina 150 mg/dia.

Dos antecedentes familiares destacam-se diabetes mellitus tipo 2 e carcinoma renal na mãe da utente.

Aos 57 anos realizou uma osteodensitometria com os seguintes resultados: coluna lombar com índice T -2,8 e densidade mineral óssea (DMO) de 0,743 g/cm2 e colo femoral com T -1,9 e DMO de 0,749 g/cm2. Tendo valores compatíveis com o diagnóstico de osteoporose iniciou terapêutica com ácido ibandrónico 150 mg mensal.

Um ano depois repetiu a osteodensitometria, a qual revelou uma ligeira melhoria do índice T e da DMO, tanto na coluna lombar (T -2,1 e DMO de 0,818 g/cm2) como no colo do fémur (T -1,5 e DMO de 0,940 g/cm2).

Passados dois anos, na altura em que perfazia três anos de tratamento com ácido ibandrónico 150 mg mensal, voltou a repetir o mesmo exame, que revelou manutenção dos valores na coluna lombar (T -2,1 e DMO de 0,818 g/cm2), mas uma melhoria dos parâmetros no colo femoral (T +0,5 e DMO de 1,040 g/cm2).

No ano 2007, sete anos após ter iniciado ácido ibandrónico 150 mg mensal, realizou switch terapêutico para ácido alendrónico 70 mg + colecalciferol 2800 U.I./semanal, que mantém desde então, perfazendo treze anos de tratamento contínuo com este fármaco e vinte anos de terapêutica com bifosfonatos.

Desde 2015, a utente recorreu múltiplas vezes à consulta aberta da sua Unidade de Saúde Familiar com queixas de dor na virilha e coxa, à esquerda, interpretadas como decorrentes de lombociatalgia e patologia muscular e osteoarticular.

Em 2020, ao realizar as suas atividades domésticas no domicílio, sofreu queda da própria altura após um movimento de rotação associado a dor na coxa esquerda, da qual resultou incapacidade funcional imediata com perda da capacidade de marcha.

Foi conduzida ao serviço de urgência de ortopedia, onde realizou radiografia simples, que revelou uma fratura subtrocantérica de traço simples, oblíquo curto com spike interno e espessamento cortical a este nível (Figura 1).

Figura 1 Radiografia simples relativa ao caso clínico. Observa-se espessamento da cortical óssea, traço de fratura não cominutivo, com pequena obliquidade, e um spike medial. 

Foi submetida a correção cirúrgica com redução da fratura e encavilhamento anterógrado com gamma nail. Posteriormente realizou um programa de reabilitação individualizado, inicialmente com treino de marcha com recurso a apoio de marcha (andarilho, canadiana). Cerca de seis meses após o início do programa de reabilitação já havia recuperado a capacidade de marcha autónoma e a independência para as suas atividades de vida diária.

Comentário

Os bifosfonatos são o gold-standard no tratamento da osteoporose, com eficácia suportada pela evidência científica na prevenção das fraturas osteoporóticas. 1-4,7,9-11

Desde 2005 têm surgido relatos de casos a sugerir uma relação entre o uso prolongado de bifosfonatos e a ocorrência de fraturas atípicas do fémur. 4-7,9,12

As fraturas atípicas do fémur diferem das fraturas osteoporóticas clássicas em vários aspetos, nomeadamente no mecanismo de lesão, na localização e na configuração do traço de fratura (Tabela 1). 4,9

Tabela 1 Características clínicas e radiográficas nas fraturas osteoporóticas e atípicas do fémur 

Os resultados dos estudos desta área não têm sido conclusivos, não estando estabelecida uma relação causal entre o uso prolongado de bifosfonatos e as fraturas atípicas do fémur. 4-7 Por esse motivo, a American Society for Bone and Mineral Research (ASBMR) criou um grupo de trabalho para rever o estado da arte, estabelecer critérios de diagnóstico (Tabela 2) e elaborar linhas orientadoras para a prática clínica. 13

Tabela 2 Critérios major e minor para o diagnóstico de fraturas femorais atípicas segundo a ASBMR (American Society for Bone and Mineral Research) 

Apresenta-se o caso de uma fratura femoral que cumpre os critérios de fratura atípica (Tabela 2), que ocorreu na sequência de um trauma de baixa energia, numa utente medicada com bifosfonatos por um período prolongado e para a qual não foi determinada uma causa.

Esta potencial complicação deve ser considerada na prática clínica, quer na instituição da terapêutica com bifosfonatos quer na realização de um intervalo no tratamento (Tabela 3). 2-3,5,14 Outro aspeto que se deve considerar são as comorbilidades e outros fatores de risco que possam contribuir para a ocorrência destas fraturas, nomeadamente a menopausa precoce, a etnia asiática, a corticoterapia e a presença de um ângulo varo do colo do fémur. 4,15

Tabela 3 Estratégia de tratamento sugerida 

Na vigilância dos utentes medicados com bifosfonatos, o clínico deve ter em conta este possível efeito secundário, solicitando a realização de uma radiografia do fémur caso o utente apresente sintomas prodrómicos, nomeadamente dor inguinal e/ou da coxa, como no caso descrito. 2,13-14,16

Provavelmente a relação causal entre o tratamento prolongado com bifosfonatos e a ocorrência de fraturas femorais atípicas só se conseguirá estabelecer através da realização de ensaios clínicos aleatorizados e controlados.

A eficácia dos bifosfonatos na prevenção de fraturas osteoporóticas está bem estabelecida. 1-2,4,14 Já a sua associação a fraturas atípicas do fémur ainda é controversa. Deste modo, a avaliação do risco/benefício favorece a sua utilização como tratamento de primeira linha na osteoporose. 1-2,4,14

Com este relato de caso pretende-se alertar para a possível associação entre a terapêutica prolongada com bifosfonatos e a ocorrência de fraturas femorais atípicas, sem esquecer outros fatores metabólicos que poderão estar também envolvidos na etiologia das mesmas, destacando a importância da vigilância ativa destes doentes.

Contributo dos autores

Redação do draft original, TRV e LS; revisão e edição do texto final, TRV e LS.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

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Recebido: 07 de Julho de 2021; Aceito: 09 de Dezembro de 2022

Endereço para correspondência Teresa Raquel Vaz E-mail: teresaraquelsvaz@gmail.com

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