Introdução
O envolvimento do nervo trigémio pelo vírus varicela-zoster (VVZ) representa risco de desenvolvimento de complicações graves, sobretudo quando atinge o ramo oftálmico, responsável pela inervação de várias estruturas do globo ocular e extremidade nasal.
O presente caso aborda um doente com herpes zoster oftálmico que apresentava, ao exame objetivo, sinal de Hutchinson positivo. Os seus principais objetivos são relembrar esta entidade clínica, dadas as suas implicações na orientação terapêutica e, sobretudo, alertar para a importância do exame objetivo atento de uma pessoa que recorre aos cuidados de saúde primários com o diagnóstico provável de herpes zoster oftálmico.
Descrição do caso
Doente do sexo masculino de 74 anos de idade, raça caucasiana, casado, com quatro anos de escolaridade, canalizador. Como antecedentes pessoais de relevo apresenta hiperplasia benigna da próstata, insónia intermédia e doença diverticular. Das patologias desenvolvidas no período de infância destacam-se varicela e sarampo. Medicado cronicamente com tansulosina 0,4 mg id e bromazepam 1,5 mg id. Sem alergias conhecidas, sem hábitos tabágicos, alcoólicos e toxifílicos.
Recorreu a consulta não programada na Unidade de Saúde Familiar (USF) por quadro com cinco dias de evolução caracterizado por parestesias ao nível da região frontoparietal direita, procedido, após três dias, pelo aparecimento de lesões vesiculares envolvendo a respetiva área, com progressão ao longo do andar superior da hemiface ipsilateral até à extremidade nasal. Negava qualquer intercorrência infeciosa nos últimos meses, bem como alterações da alimentação ou variação ponderal. O exame objetivo realizado revelava a presença de múltiplas erupções papulovesiculares de base eritematosa, algumas das quais em crosta, distribuídas pela região frontotemporal direita, sem ultrapassar a linha média e com extensão até à extremidade do nariz (sinal de Hutchinson) - Figuras 1 e 2. Apresentava também ligeiro edema da pálpebra superior direita, sem hiperemia conjuntival, alterações dos movimentos oculares, reflexo fotomotor, diminuição da acuidade visual ou fotofobia. O restante exame objetivo não revelou alterações, nomeadamente o exame neurológico sumário e a avaliação do estado nutricional (Mini Nutritional Assessment a pontuar 14 na avaliação inicial).
Foi, perante o contexto descrito, assumido diagnóstico de herpes zoster oftálmico, tendo sido medicado com valaciclovir 1 g 3 id durante uma semana, naproxeno 500 mg 2 id durante três dias, lágrimas artificiais e, posteriormente, encaminhado para o serviço de urgência (SU) de oftalmologia para observação e exclusão de atingimento ocular. No SU objetivou-se a presença de blefarite com exsudação mucopurulenta, pelo que o tratamento foi complementado com ofloxacina colírio.
As lesões cutâneas resolveram gradualmente, apresentando-se em fase de crosta no último dia de tratamento com valaciclovir (Figura 3) e em fase cicatricial sete dias após terminar tratamento - Figura 4.
Comentário
A infeção pelo vírus varicela-zoster (VVZ) pode dar origem a dois quadros clínicos distintos resultantes da infeção primária e reativação. Após a infeção primária (varicela), o VVZ permanece latente na raiz dorsal dos gânglios sensoriais ou dos nervos cranianos e a sua reativação vai condicionar o segundo quadro clínico, designado herpes zoster.1-2
A reativação do VVZ é mais comum em pessoas imunocomprometidas e com idade mais avançada, sendo oito a dez vezes mais frequente em pessoas com mais de 60 anos de idade. 3
O herpes zoster oftálmico decorre da reativação do VVZ com envolvimento do ramo oftálmico (V1) do nervo trigémio1 e acomete cerca de 10 a 20% dos indivíduos com herpes zoster. 4 Pelo menos 50% destes apresentarão envolvimento ocular direto se não for iniciado tratamento adequado. 4-5
O ramo oftálmico (V1) dá origem a três ramos secundários - frontal, lacrimal e nasociliar. O ramo nasociliar é responsável pela inervação sensitiva das mucosas dos seios frontal, etmoidal e esfenoidal, cavidade nasal, corpo ciliar, íris, córnea e conjuntiva. O seu ramo terminal é responsável pela inervação da pele da extremidade do nariz, bem como pela inervação sensitiva do globo ocular, córnea e úvea. 2,5
O sinal de Hutchinson define-se pela presença de lesões ao nível da extremidade do nariz no contexto de herpes zoster oftálmico e, dado o envolvimento do ramo nasociliar, verifica-se um maior risco de complicações oculares. 1-2,4-8 O exame objetivo oftalmológico é recomendado perante a suspeita de envolvimento ocular, pelo que a referenciação para o SU de oftalmologia deve ser ponderada sempre que se verifique este sinal. 2 A presença de sintomatologia ocular no contexto do quadro descrito, como: diminuição da acuidade visual, dor ocular ou fotofobia, constitui um importante sinal de alarme independente da presença de sinal de Hutchinson.6-7
O início precoce do tratamento, idealmente nas primeiras 72 horas após o aparecimento de sintomas, reduz o risco de complicações como a nevralgia pós-herpética, uveíte, queratite e episclerite e respetivas sequelas, de que se destacam a perda de visão e a dor ocular crónica. 2,8
Este caso permite relembrar uma entidade clínica importante pelo potencial impacto que pode inferir na vida dos doentes. Como abordado no presente relato, a atuação e a intervenção precoces podem modificar a história natural da doença. O papel do médico de família, perante o diagnóstico de herpes zoster oftálmico, inclui a procura e valorização deste sinal, de modo a orientar adequadamente o doente. O conhecimento básico da doença por parte da população, nomeadamente no que concerne aos sinais de alarme que justifiquem uma avaliação médica urgente, tem igualmente implicações diretas no prognóstico da mesma. Este aspeto reforça a importância das estratégias de educação para a saúde, nas quais o médico de família poderá desempenhar um papel central.