A prática da medicina engloba uma complexidade de decisões e as suas possíveis consequências, sendo cada vez mais confrontada com situações de conflito entre o dever de prestar assistência médica e a consciência do próprio médico, que o leva a recusar um determinado procedimento. Com efeito, urge indagar acerca do direito médico de recusar um dever profissional.
Os profissionais de saúde estão sujeitos a um direito-dever de, uma vez inseridos em carreiras profissionais, exercerem a sua atividade de acordo com a leges artis e no cumprimento das regras deontológicas, respeitando sempre os direitos da pessoa a quem prestam cuidados. 1
Não obstante, qualquer profissional de saúde tem o direito de recusar a prática de um ato próprio da profissão quando o mesmo entre em conflito com a sua consciência, isto é, quando ofenda os seus princípios ideológicos, éticos, morais, filosóficos, religiosos, etc.
A objeção de consciência consubstancia, pois, um direito ao dispor dos profissionais de saúde, estando consagrado no artigo 4.º da base 28 da Lei de Bases da Saúde.2
Traduzindo-se numa verdadeira recusa de cumprimento de um determinado dever, a objeção de consciência tem necessariamente de ser manifestada perante situações concretas e cumprindo os pressupostos estipulados.
Exemplos de atos médicos que, não raras vezes, proporcionam objeções de consciência são o aborto e a eutanásia.
Quando o médico considera a vida humana detentora da mesma singular dignidade desde a conceção até à morte natural, estas práticas são gravemente atentatórias dos seus princípios basilares, assim como da garantia fundamental que é o direito à vida. Consequentemente, é legítimo que formule objeção de consciência.
Apesar de aparentar ser um direito inabalável, a objeção de consciência foi posta em causa no relatório intitulado A situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos da UE, no contexto da saúde das mulheres, mais conhecido como Relatório Matic, aprovado pelo Parlamento Europeu. 3 Esta exposição escrita considera o aborto um “direito humano” e apela aos Estados-membros da União Europeia que eliminem todo e qualquer obstáculo no acesso àquele, incluindo a objeção de consciência por parte dos médicos.
No âmbito do suprarreferido relatório definiu-se o aborto como um “direito humano” e propôs-se a consideração da “objeção de consciência como uma recusa de prestação de cuidados médicos”.
Todavia, a consideração da objeção de consciência como uma recusa de prestação de cuidados médicos mais não será do que uma imposição, ainda que camuflada, dirigida aos médicos. No contexto de tal imposição, em última instância, os profissionais de saúde serão levados a atuar contra a sua própria consciência e os seus princípios essenciais. Com efeito, essa mesma consideração pode ser interpretada como uma ofensa à dignidade da pessoa, direcionada às suas convicções, que são expressão inequívoca da sua autonomia e individualidade.
Um dos grandes desafios impostos à ética e à deontologia é o de garantir um equilíbrio legal e ético entre todos os direitos envolvidos numa situação concreta, o que se mostra uma missão hercúlea.
O código deontológico da Ordem dos Médicos afirma de forma clara o princípio clássico segundo o qual “o médico tem o direito de recusar a prática de ato da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência, ofendendo os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários” (art.º 12º, n.º 1). 1
Este mesmo código ressalva, porém, que “a objeção de consciência não pode ser invocada em situação urgente e que implique perigo de vida ou grave dano para a saúde, se não houver outro médico disponível a quem o doente possa recorrer” (art.º 12º, n.º 3). O código deontológico da Ordem dos Enfermeiros pauta-se naturalmente por igual abordagem. 1
Nesta senda, caso não se esteja perante um caso urgente ou uma situação que coloque em risco a vida do doente, nenhum profissional de saúde deverá ter de abdicar da sua inalienável consciência, para ser obrigado a praticar - ou a solicitar a alguém que pratique - atos que colidam diretamente com os seus valores.
Na verdade, crê-se que na “balança da decisão” não pode pesar mais a vontade de um doente (para um ato que não é um direito humano consagrado) do que os direitos do profissional de saúde, incluindo a sua consciência ou o direito à vida - direito este que está constitucionalmente consagrado (cf. artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa). 4
Em jeito de conclusão, destaque-se que a autonomia corresponde a um dos quatro princípios fundamentais éticos e prevê que a liberdade de cada ser humano deva ser respeitada.
Com efeito, e para que se alcance uma relação médico-doente segura, harmoniosa e de verdadeira confiança, sem desconfortos desnecessários, há que preservar e garantir não só a autonomia do doente como também a do próprio profissional de saúde.