Quando queremos perspetivar o futuro podemos tentar adivinhar o amanhã, o que é complicado, ou podemos perceber o passado, entender o contexto, as circunstâncias e o impacto das decisões que nos trouxeram ao agora e extrapolar os resultados. Raramente acertaremos no que vai de facto acontecer, mas ficaremos com uma ideia muito concreta das opções que temos, das forças com que contamos e das fragilidades que se colocam.
É relativamente fácil contar a história dos últimos 40 anos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em três eixos.1 Os cuidados de saúde primários não existiam em 1970 e desenvolveram-se na garantia da acessibilidade, continuidade e globalidade de cuidados, basilares na hierarquia do sistema, com impacto nos indicadores gerais de saúde. Os cuidados hospitalares mantiveram o seu perfil dedicado ao tratamento de doenças, incorporando a evolução tecnológica para a redução da morbilidade específica, com impacto na mortalidade evitável. Em resultado, assistimos a um aumento da esperança média de vida e da proporção de idosos, com envelhecimento populacional e necessidade de introduzir o terceiro eixo dos cuidados continuados. Apesar de regulamentado há quase 20 anos continua incipiente, mal dimensionado e com dificuldade em perceber que uma grande parte dos problemas relacionados com a doença crónica, incapacidade e fragilidade não se resolvem na dimensão física, mas implicam uma abordagem holística, onde a dimensão psicossocial ultrapassa muitas vezes a prescrição medicamentosa.2
O modelo que parece interessante apresenta-se, no entanto, instável: porque sempre manteve a garantia do acesso universal acima da qualidade, com uma prática de atribuir portugueses aos médicos de família, ultrapassando muitas vezes a capacidade resolutiva de cada contexto; porque nunca se libertou do caráter hospitalocêntrico que mantém a saúde ocupada com o tratamento das doenças desde os serviços de urgência aos centros mais diferenciados; porque permanece paternalista na incapacidade de libertar informação relevante e inteligível para uma melhor literacia da população, que permita escolhas adequadas; porque se mostra incapaz de modernizar os processos aproveitando as potencialidades que as novas estruturas físicas e digitais oferecem; porque obedece a uma lógica de gestão centralizada e centralizadora, hierarquizada num número elevado de níveis de decisão, castradora da responsabilidade local e da autonomia de exercício; porque desvaloriza a experiência dos médicos e restantes profissionais de saúde ao induzir a normalização por via administrativa; porque se financia na base das necessidades produzidas pela doença em vez das perspetivas introduzidas pela saúde, num caráter de gestão de custos em vez de numa visão de investimento; porque comunica mal entre si e com os outros, criando concorrência em vez de complementaridade entre as diferentes instituições da saúde e destas com os setores social, educativo, ambiental, executivo, etc.; porque se mantém à margem do espírito de investigação científica e da academia, encerrando resultados em relatórios descritivos sem uma verdadeira análise independente.
Por tudo isto, assistimos a evoluções que se quedam na própria inércia do sistema, como a reforma dos cuidados de saúde primários de 2006, onde a autonomia organizativa, funcional e técnica ficou amputada na inexistência das necessárias ferramentas de gestão financeira e na operacionalização dos agrupamentos que se lhe seguiu, assumindo-se principalmente como uma forma de cálculo de vencimentos mais do que uma verdadeira reforma de processos. A revisão da Lei de Bases da Saúde de 2019 reforçou o centralismo administrativo, concentrando no Estado o poder financiador, gestor, executor e avaliador dos serviços de saúde, relegando o setor privado e social para um papel supletivo e temporário na assistência e criando, com a revisão do estatuto do SNS, a figura da direção executiva, totipotente nas competências atribuídas, em acrescento aos níveis de decisão já existentes.
Aproxima-se agora uma anunciada “nova reforma” baseada na integração em Unidades Locais de Saúde (ULS) dos hospitais, centros hospitalares e Agrupamentos de Centros de Saúde. A partir de 1 de janeiro de 2024 teremos um total de mais 31 novas ULS a juntar às oito já existentes. A ideia subjacente é a simplificação de processos, a melhoria da articulação entre equipas de saúde e uma maior autonomia de gestão, na perspetiva de maximizar o acesso e a eficiência do SNS, ainda que a escassa evidência que avalia as ULS existentes não o consiga demonstrar.3-8
Do ponto de vista teórico, o modelo das ULS é interessante, mas a história ensina-nos que os problemas se revelam nos pormenores, sobretudo quando não temos a possibilidade de aceder a avaliações sistemáticas e críticas sobre os projetos já existentes para aproveitar o que é bom, corrigir o que está mal e desenvolver o que pode ser interessante.
É provavelmente esta a reforma necessária: não de modelos, mas de pensamento, percebendo os desafios que se colocam aos cidadãos nos seus percursos pelos serviços de assistência, aos médicos e restantes profissionais de saúde no seu desempenho e à organização do sistema de saúde como um todo. É tempo de a gestão dos serviços de saúde em Portugal deixar o corporativismo do saber empírico e passar ao conhecimento do saber consolidado, onde a decisão se baseia mais na ciência e menos na opinião. E assim construímos o amanhã.