Introdução
Os sistemas de saúde enfrentam na atualidade vários desafios que requerem uma mudança nos conceitos, modelos de funcionamento e de gestão das organizações, de forma a garantir o acesso aos cuidados de saúde, mantendo a qualidade e assegurando a sustentabilidade financeira.1
O aumento da esperança média de vida na Europa, o envelhecimento da população e a sobrevida aumentada após doença ou trauma graves acarretam uma diminuição da funcionalidade, bem como um aumento dos custos dos cuidados de saúde e sociais. Neste contexto, os cuidados de reabilitação assumem-se de importância fulcral no aumento da sobrevida e da funcionalidade da população.2
A medicina física e de reabilitação (MFR) é uma especialidade médica responsável pelo diagnóstico, prevenção, tratamento e reabilitação, quer a nível físico quer psicológico, do indivíduo afetado funcionalmente por doença, traumatismo ou deficiência, tendo como principal objetivo a sua reintegração social.3
O médico de família assume um importante papel na identificação das necessidades de cuidados de MFR nos seus utentes, procedendo à referenciação destes para as respostas existentes no Sistema Nacional de Saúde (SNS), maioritariamente para os estabelecimentos convencionados com o SNS.4 Esta referenciação é efetuada mediante a apresentação de uma prescrição que dá acesso a uma consulta inicial (consulta de avaliação), a uma consulta subsequente (consulta de reavaliação) e a uma série de 60 tratamentos intermédios. Como, por norma, são aplicados três a quatro tratamentos por sessão, a requisição habitualmente esgota-se no prazo de 15 a 20 sessões. 5
Em Portugal estão atualmente registados no Sistema de Registo de Estabelecimentos Regulados da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), 974 estabelecimentos na área de MFR, dos quais 880 são estabelecimentos não públicos. Destes, 35,7% têm convenção com o SNS. 6 Os encargos com o setor convencionado de MFR apresentaram uma taxa de crescimento anual de 7,2% entre 2016 e 2021, sendo que foram gastos 113 milhões de euros no último ano na prestação destes serviços. Este aumento da despesa no setor convencionado não foi consequência de alterações de preços praticados entre 2016 e 2021, mas do aumento do volume de serviços prestados em MFR. 6
Num momento em que está em causa a sustentabilidade do SNS, é da responsabilidade do médico de família uma tomada de decisão estratégica relativa aos serviços de MFR, de forma a garantir a redução de custos em saúde, enquanto são obtidos ganhos no perfil de saúde da população. 7
Uma vez que não existe um registo centralizado de informação de todos os serviços de MFR, públicos e privados, em Portugal não é possível conhecer com rigor o universo dos utentes que utilizam estes serviços. No entanto, conhecendo os principais fatores que motivam a necessidade de recorrer a cuidados de MFR, poder-se-á caracterizar o perfil do utente típico. 8 Assim, o objetivo deste trabalho foi caracterizar a prescrição de MFR em quatro unidades de saúde familiar (USF) da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte no ano de 2019, de forma a melhor compreender a população e as patologias associadas à prescrição.
Método
Foi realizado um estudo observacional, analítico e retrospetivo numa amostra aleatória obtida de uma população de utentes com prescrição de primeira consulta de MFR, de quatro USFs modelo B, da Área Metropolitana do Porto, inseridas em três Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) distintos, entre 01/janeiro e 31/dezembro de 2019.
A listagem inicial foi retirada do Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF), através dos seguintes filtros: «Unidade Funcional em estudo; ano 2019; área MCDT - Medicina Física e de Reabilitação». O alvo de estudo foi constituído por 3.591 prescrições de primeira consulta de MFR.
A lista obtida a partir desta plataforma não permite diferenciar as prescrições de MFR das prescrições no âmbito da terapia ocupacional, terapia da fala e cinesioterapia respiratória. Por esta razão, estas prescrições foram contabilizadas no alvo de estudo inicial e apenas excluídas numa fase posterior, durante a consulta individual do processo clínico do utente, garantindo, assim, a proteção da confidencialidade dos dados dos utentes que não foram selecionados para a amostra do estudo.
A amostra final foi obtida através de um processo de aleatorização executado no Microsoft Excel® a partir dos números de utente associados à prescrição. O tamanho mínimo da amostra, calculado a partir de https://www.calculator.net/sample-size-calculator.html, com um intervalo de confiança de 95%, era de 348 prescrições, pelo que, por uma questão de uniformização, foi considerado um total de 400 prescrições (100 prescrições que cumpriam os critérios de inclusão por cada USF). Da amostra inicial tiveram de ser excluídas e substituídas 16 prescrições, por corresponderem a terapia ocupacional, terapia da fala ou cinesioterapia respiratória.
As variáveis selecionadas para análise foram: USF de inscrição, idade, sexo, habilitações literárias, situação profissional, número de primeiras consultas e consultas subsequentes em MFR durante o ano de 2019, diagnóstico(s) ICPC-2 (International Classification of Primary Care-2) associados à prescrição e iniciativa da requisição. A recolha das variáveis foi efetuada pelos investigadores, com recurso ao sistema de informação SClínico® e registada numa base de dados anonimizada, construída para o efeito em Microsoft Excel®.
O tratamento dos dados foi efetuado com recurso ao software SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences, v. 27.0). Os dados registados foram submetidos a análise estatística descritiva. As variáveis categóricas foram apresentadas como frequência e percentagem e as variáveis contínuas como média e desvio-padrão ou mediana e intervalo interquartis. A verificação da normalidade dos dados foi realizada com recurso à análise visual dos histogramas e ao teste de Kolmogorov-Smirnov. Posteriormente foi realizada uma análise inferencial. As variáveis categóricas foram comparadas com o uso do teste Exato de Fisher ou o teste do Qui-quadrado. Por sua vez, as variáveis contínuas foram comparadas entre grupos com recurso ao teste t-student ou ao teste de Kruskal-Wallis. Foi considerado um nível de significância de 0,05.
Para facilitar a análise estatística, o capítulo do sistema músculo-esquelético (L) da classificação ICPC-2 foi agrupado em duas novas variáveis: tipo de patologia e região afetada. Na variável Tipo de Patologia foram considerados como «Degenerativa» os códigos L83, L84, L85, L86, L89, L90 e L91; como «Traumática» os códigos L72, L73, L76, L77, L78, L80, L81 e L96; como «Inflamatória» os códigos L87, L88, L9 e L93; e como «Outros» os códigos L01, L02, L03, L8, L9, L10, L11, L12, L13, L14, L15, L16, L17, L18, L20 e L99. Na variável Região Afetada foram considerados como «Coluna» os códigos L01, L02, L03, L83, L84, L85 e L86; como «Membro Superior» os códigos L08, L09, L10, L11, L12, L72, L92 e L93; como «Membro Inferior» os códigos L13, L14, L15, L16, L17, L73, L77, L78, L89, L90 e L96; e como «Outros» os códigos L18, L20, L76, L80, L81, L87, L88, L91 e L99.
O estudo foi autorizado pela Comissão de Ética da ARS Norte. Foram obtidos pareceres favoráveis do Conselho Clínico e da Saúde dos respetivos ACeS e dos coordenadores das USFs envolvidas.
Resultados
Nas quatro USFs avaliadas havia um total de 54.304 utentes inscritos em dezembro de 2019. No conjunto foram efetuadas 7.426 prescrições (3.591 primeiras e 3.835 subsequentes) de MFR nesse ano.
Relativamente aos custos para os cuidados de saúde primários (CSP) associados à prescrição de MFR, calculados com base nas primeiras prescrições, em 2019 registou-se um gasto total de € 49.807,17 nas quatro USFs analisadas, correspondendo a um valor médio de € 0,92 por utente inscrito.
A amostra final utilizada para a realização deste estudo (n=400 utentes com primeiras prescrições de MFR) foi constituída por 65% de utentes do sexo feminino e 35% do sexo masculino, com uma idade média de 58 anos (mínimo: um mês; máximo: 97 anos; DP=18,02 anos). Relativamente às habilitações literárias, 44% dos utentes não tinha nenhum registo no processo clínico; 23% apresentavam um nível de escolaridade igual ou inferior ao 1.º ciclo do ensino básico; 15% entre o 2.º ou o 3.º ciclo do ensino básico; 11% o ensino secundário; e apenas 7% o ensino superior ou equivalente. Também se verificou que 57% dos utentes tinham uma situação profissional descrita como não ativa/reformado e 42% como ativa/estudante. A caracterização sociodemográfica dos utentes encontra-se apresentada na Tabela 1.
Dos 400 pedidos de primeira consulta analisados, 61% não foram seguidos de requisições subsequentes para o mesmo pedido no ano em análise, sendo que, em média, existiram 0,74 requisições subsequentes ao longo do ano de 2019 para cada primeira consulta (mínimo: 0; máximo: 14; DP=1,36). Dos pedidos realizados, 89% foram de iniciativa do médico de família. Os restantes 11% foram solicitados por médicos de outra especialidade ou outros profissionais de saúde (27 de ortopedia; seis de neurologia; três de MFR; dois de pediatria, neurocirurgia e da equipa de equipa de cuidados continuados integrados; um de reumatologia).
Quanto aos diagnósticos associados à prescrição de MFR verificou-se que 31 prescrições não tinham nenhuma codificação associada. Das prescrições com codificação associada, a maioria estava relacionada com patologia do sistema músculo-esquelético (71%), seguindo-se causas gerais e inespecíficas (17%) e o sistema nervoso (5%). Os restantes diagnósticos («Outros») representaram menos de 5% dos motivos e incluíram, por ordem decrescente de frequência: aparelho circulatório; endócrino, metabólico e nutricional; aparelho digestivo; sangue, órgãos hematopoiéticos e linfáticos; psicológico; e gravidez e planeamento familiar.
De entre os motivos músculo-esqueléticos, 43% relacionaram-se com patologia degenerativa, 21% com patologia inflamatória e 8% com patologia traumática, sendo que em 28% não se encontrava especificado o diagnóstico («Outros»). Quanto à região afetada, 35% correspondiam a patologia da coluna, 27% a queixas reportadas aos membros inferiores, 22% a queixas dos membros superiores e 16% a outras áreas/generalizadas/não especificadas («Outros»).
De entre os motivos gerais e inespecíficos, 95% dos diagnósticos estavam codificados como A98 - Medicina preventiva/manutenção da saúde, correspondendo os restantes a A80 - Lesão traumática/acidente NE, A82 - Efeito secundário de uma lesão traumática e A99 - Doença ou condição de natureza ou localização não especificadas.
De entre os motivos do sistema nervoso, a maioria (26%) foi devido a paralisia facial/paralisia de Bell, sendo que as restantes causas incluíram parkinsonismo, síndroma do canal cárpico, nevrite/neuropatia periférica, neoplasia do sistema neurológico de natureza incerta e poliomielite ou outros.
Em relação à análise inferencial (Tabela 2), quando se comparou a classe diagnóstica com as restantes variáveis foram encontradas diferenças estatisticamente significativas em relação ao sexo (p<0,001), à idade (p<0,05) e à iniciativa do pedido de MFR (p<0,001). Em ambos os sexos mais de metade dos pedidos correspondia a patologia músculo-esquelética, sendo que o segundo motivo mais prevalente foi o «Geral» no sexo feminino e a classe «Outros» no sexo masculino. Os diagnósticos do foro neurológico apresentaram uma idade média inferior (51 ± 22 anos) às restantes classes. Dos pedidos da iniciativa do médico de família quase 2/3 eram por causas músculo-esqueléticas.
O tipo de patologia músculo-esquelética (degenerativa, traumática, inflamatória e outros) foi diferente de forma estatisticamente significativa em relação à idade (p=0,011) e à iniciativa do pedido de prescrição (p<0,001). Verificou-se que a patologia degenerativa se associava a uma idade média superior (61 ± 16 anos) à das restantes etiologias, sendo que as queixas «Gerais e inespecíficas» foram associadas a uma idade inferior (52 ± 20 anos). As referenciações por indicação de ortopedia eram principalmente do foro traumático (50%). Todas as referenciações da iniciativa da neurologia/neurocirurgia foram de etiologia degenerativa. A iniciativa da prescrição do médico de família foi predominante em todas as etiologias, exceto na traumática.
A localização da patologia músculo-esquelética demonstrou diferenças estatisticamente significativas consoante a iniciativa do pedido de prescrição. As referenciações com origem em neurologia/neurocirurgia eram todas por patologia da coluna. As referenciações com origem em ortopedia eram principalmente por queixas dos membros inferiores (40%), enquanto nas prescrições de iniciativa do médico de família predominaram as patologias da coluna (37%).
No que concerne à ocorrência ou não de prescrições subsequentes (Tabela 3) não foram encontradas relações com significância estatística.
Os diagnósticos com número de prescrições subsequentes mais elevado foram T10 - atraso de crescimento (mediana: 4; mínimo: 3; máximo: 5) e L14 - sinal/sintoma da perna/coxa (mediana: 4; mínimo: 4; máximo: 4), seguido de L76 - fratura, outras (mediana: 2; mínimo: 0; máximo: 4), N94 - nevrite/neuropatia periférica (mediana: 2; mínimo: 2; máximo: 2), N87 - parkinsonismo (mediana: 2; mínimo: 0; máximo: 4), L09 - sinal/sintoma do braço (mediana: 2; mínimo: 2; máximo: 2) e L80 - luxação/subluxação (mediana: 2; mínimo: 2; máximo: 2).
Discussão
Este trabalho pretendeu caracterizar a prescrição de MFR em quatro USFs da ARS Norte no ano de 2019.
Das 400 prescrições de primeira consulta de MFR analisadas, a maioria correspondia a mulheres de média idade, com um nível de escolaridade igual ou inferior ao primeiro ciclo do ensino básico e situação profissional classificada como não ativa - reformado ou desempregado. Os diagnósticos mais frequentemente identificados estavam relacionados com patologia do sistema músculo-esquelético, especificamente patologia degenerativa, sendo a coluna vertebral a estrutura mais frequentemente afetada. Estes resultados são corroborados por vários estudos nacionais9,16 e internacionais. 10-11,15 Um estudo de 2012 verificou numa amostra de 171 utentes frequentadores de MFR, no ACeS Alto Trás-os-Montes I, que a maioria era do sexo feminino, 43% tinham uma idade entre os 46 e 65 anos e 44% possuíam apenas o ensino primário como habilitações académicas, sendo de referir que 11% da amostra não sabia ler ou escrever. 9 Em relação à situação face ao mercado de trabalho, metade da amostra estava em situação de reforma. 9 A patologia mais frequente nos tratamentos de reabilitação era do foro ortopédico (63%).9 Um outro estudo, de 2008, demonstrou que os utentes frequentadores de MFR numa amostra de 175.000 doentes dos Estados Unidos, Israel e Países Baixos eram, na sua maioria, do sexo feminino, com uma idade média próxima dos 51 anos e que a zona mais intervencionada era a coluna, especificamente a coluna lombar. 10 Também uma outra investigação, de 2018, verificou que os doentes utilizadores de MFR, ao nível dos CSP, eram maioritariamente do sexo feminino e que o código ICPC mais utilizado era o do capítulo L - Sistema músculo-esquelético. 11
A patologia músculo-esquelética, especificamente a da coluna vertebral, é descrita em vários estudos como um importante problema de saúde nos países desenvolvidos, sendo uma causa major de morbilidade e incapacidade na população. 12-13 Com o envelhecimento da população, a prevalência destas condições para as quais o tratamento fisiátrico é um elemento-chave aumenta de forma significativa. 14 A partir de uma amostra de mais de dois mil milhões de pessoas que necessitaram de MFR, um estudo publicado em 2020 concluiu que o grupo de patologias que mais frequentemente carecia de tratamento era o músculo-esquelético, principalmente a patologia da coluna lombar. 15 Também um estudo em Portugal, desenvolvido no âmbito das atividades do Conselho Técnico dos Técnicos de Diagnóstico e Terapêutica da ARS Centro, que visava conhecer a realidade do contexto do trabalho dos fisioterapeutas em exercício nos ACeS dessa região de saúde, demonstrou que as condições de saúde do foro das disfunções músculo-esqueléticas e neurológicas ocupam a principal fatia (87%) da intervenção dos fisioterapeutas destes ACeS. 16 Embora os dados recolhidos e a análise estatística não permitam nenhuma conclusão definitiva destaca-se o facto de a maior parte da presente amostra ter um baixo grau de escolaridade e estar reformada/desempregada, apesar de se encontrar em idade ativa. Se, por um lado, os problemas músculo-esqueléticos são o principal motivo para uma saída prematura do mercado laboral, por outro, o baixo nível de escolaridade é identificado como um fator de risco e de agravamento deste tipo de patologias, na medida em que os trabalhadores com menor grau de escolaridade têm frequentemente trabalhos fisicamente mais desgastantes e pior regulamentados quanto a condições de segurança e saúde. 13
No que diz respeito às consultas subsequentes, a maioria das prescrições iniciais não envolveu prescrições subsequentes. Os autores foram surpreendidos por esses resultados, tendo em conta que a duração média de tratamento foi superior em estudos realizados noutros países10 e que alguns trabalhos sugerem melhorias a longo prazo, com intervenções de reforço após a intervenção inicial. 17 Vários motivos podem explicar estes dados: a baixa adesão dos utentes a tratamentos de reabilitação; 10-17 a boa resposta, a curto prazo, de ciclos curtos (quatro semanas) de fisioterapia; 18 o facto de não estarem estabelecidos, para a maioria das patologias, o tipo e a duração ideais de tratamento; 19-20 o período de tempo, limitado a um ano, do estudo; a possibilidade de alguns erros de prescrição no presente estudo - em vez de consultas subsequentes podem ter sido prescritas primeiras consultas para o mesmo problema; e o facto de, à data do estudo, estarem em vigor taxas moderadoras que eram cobradas aos utentes pela realização dos tratamentos prescritos.
Relativamente à iniciativa do pedido de prescrição de MFR, a maioria dos pedidos foi da iniciativa do médico de família. Estes resultados são corroborados pela literatura, 10-21 em que também se verifica que as principais referenciações para MFR são feitas pelo médico de família, seguidos dos ortopedistas. É de realçar o facto de uma percentagem ainda relevante dos pedidos ser proveniente de médicos de outra especialidade; de acordo com o Despacho n.º 10430/2011, 22 os hospitais públicos e médicos da medicina privada não podem solicitar a prescrição de meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDTs) às unidades de CSP, ficando estas impedidas de prescrever os exames solicitados por essas entidades. De igual forma, os hospitais que integram o SNS devem assegurar a realização dos MCDTs necessários aos seus utentes, através da sua capacidade instalada ou recorrendo à subcontratação de entidades externas especializadas do setor público, tendo como referência a tabela de preços do SNS, ou do setor privado e social, tendo como referência a tabela de preços do setor convencionado. A gestão dos cuidados de saúde é uma das competências do médico de família, que passa pela coordenação dos cuidados com outros níveis de saúde, mas também pela orientação da prestação dos mesmos e da utilização efetiva dos recursos de saúde. 22 Esta utilização eficiente dos recursos é, por vezes, esquecida, já que frequentemente nas consultas dos CSP são realizadas solicitações de MFR a pedido de outras especialidades.
Em relação aos custos associados aos serviços de MFR, em Portugal é particularmente relevante, não apenas pela elevada frequência com que cada utente precisa de recorrer a MCDTs desta natureza como por constituir a quarta maior despesa convencionada com o SNS. 6 O sistema de pagamento da prestação destes cuidados nas entidades convencionadas é caracterizado por um sistema de pagamento ao ato, baseado na Tabela de Preços do SNS da MFR (Portaria n.º 178-A//2016). 23 Ao nível dos CSP apenas é possível calcular os gastos inerentes à primeira consulta de MFR que, no caso do atual estudo, foi de cerca de 50.000 euros nas unidades analisadas. No entanto, os gastos associados à globalidade dos tratamentos foi muito superior. Segundo a ERS, considerando apenas a oferta do setor convencionado com o SNS em prestação de serviços de MFR foram gastos aproximadamente 113 milhões de euros em 2021, com a ARS Norte a apresentar os encargos mais elevados - 64 milhões de euros. 6 Como é expectável, os atuais registos estatísticos da prestação de cuidados de MFR apresentam habitualmente, como indicadores, o número de tratamentos (procedimentos) realizados, o número de doentes e o número de sessões (ou presenças), não sendo possível caracterizar o utente, a gravidade, a complexidade e o tempo médio de recuperação correspondente, com os resultados das intervenções e recursos utilizados. Existe apenas um registo de produção, não permitindo avaliar a efetividade das prestações ou disponibilizando indicadores para efeitos de análise de custo-efetividade, para planeamento e gestão de recursos.
Noutra perspetiva, alguns autores defendem que a utilização eficiente da consulta de MFR pode reduzir custos em saúde, nomeadamente referenciações desnecessárias para as especialidades médicas e poupar em procedimentos mais onerosos. Um estudo realizado em 2023 na Holanda analisou a utilização dos serviços de consulta de MFR por um grupo de médicos dos CSP, sendo que os médicos se consideraram satisfeitos com este serviço e modificaram a sua orientação terapêutica em 50% dos casos referenciados. 24 Foi registado um aumento de referenciação para a consulta de MFR e, simultaneamente, uma redução de referenciação para as especialidades médicas.
Tanto quanto se sabe, este é o único estudo deste tipo realizado em Portugal. Os resultados obtidos permitem uma visão geral da população e patologias que motivaram tratamentos fisiátricos em quatro USFs da ARS Norte, no ano de 2019, da perspetiva dos CSP. Os dados e a análise da informação, devidamente quantificados, ajudam os profissionais de saúde a compreender a realidade e a dissipar eventuais perceções preconcebidas em relação à reabilitação por MFR.
O estudo realizado apresenta algumas limitações que devem ser consideradas na interpretação dos resultados, nomeadamente o facto de o tamanho amostral ter sido calculado de acordo com o total de prescrições de primeira consulta de MFR nas quatro USFs, não tendo sido considerada uma amostra para cada unidade funcional (viés de seleção). Outra limitação prende-se com o tamanho da amostra, que apenas permite considerar os resultados encontrados para a população em questão. Além disso, o período de tempo do estudo foi limitado a um ano, o que pode levar à exclusão dos tratamentos mais prolongados e, além disso, existem lacunas nos registos clínicos que dificultam a interpretação dos dados obtidos. Em relação a este último ponto, é de destacar que foram frequentemente encontradas incoerências na codificação dos diagnósticos - os motivos gerais e inespecíficos foram frequentes e, nestes, verificou-se que 95% correspondiam ao código A98 - Medicina preventiva/manutenção da saúde, o que corresponde a um erro de codificação que poderá enviesar alguns destes resultados. Este facto não pôde ser corrigido pelos autores, pelo que se reforça a importância da qualidade dos registos e da codificação correta do diagnóstico associado à prescrição.
Com o envelhecimento da população, os tratamentos de reabilitação serão cada vez mais importantes na melhoria funcional e no controlo da dor dos utentes. Os CSP desempenham um papel chave na referenciação e até na integração, nalguns países, de programas de tratamento fisiátrico, sendo essencial conhecer cada vez melhor os doentes que necessitam de MFR para uma melhor e mais eficaz prestação de cuidados.
Os autores acreditam que este trabalho possa ser um ponto de partida para outros artigos. No futuro serão úteis estudos que caracterizem a população de cada uma das patologias associadas e incluam outras variáveis, como a duração da sintomatologia, tipologia e número de tratamentos efetuados, que procurem compreender se para cada doença há um número adequado de primeiras consultas e consultas subsequentes de MFR, que utilizem amostras de projeção nacional ou que, por exemplo, procurem elaborar protocolos de atuação entre os CSP e a MFR.
Conclusão
Com este estudo foi possível conhecer as características de uma população de utentes utilizadores de MFR da ARS Norte, no ano de 2019. Verificou-se que a maior parte dos utilizadores eram mulheres, com baixa literacia e com situação profissional não ativa, apesar de estarem em idade ativa. A patologia mais frequente foi do aparelho músculo-esquelético, do tipo degenerativo e afetando a coluna. A maioria dos tratamentos de MFR foram de curta duração. Uma percentagem ainda considerável das prescrições foi solicitada por médicos de outras especialidades. Ao nível dos custos, apenas foi possível calcular o valor associado à primeira consulta.
Os resultados do estudo poderão ser um ponto de partida para uma melhoria da qualidade dos serviços prestados neste âmbito, nomeadamente através da definição de prioridades para criação de protocolos específicos para cada patologia, recomendação de medidas preventivas direcionadas às patologias mais frequentes, identificação da necessidade de mais recursos (e.g., estabelecimento de novas unidades convencionadas) e uma melhor utilização dos recursos existentes, bem como uma melhoria dos sistemas de informação, registos clínicos e produção de dados estatísticos.
Como recomendações para futuros estudos considera-se importante a realização de análises de custo-efetividade em ensaios clínicos randomizados, de forma a aferir a alteração do estado de saúde, seja numa perspetiva de medição de indicadores clínicos, seja numa perspetiva de indicadores funcionais relevantes, uma vez que só assim se poderá avaliar o custo-benefício do investimento que o SNS está a realizar nos tratamentos de MFR.
De acordo com os resultados e conclusões deste estudo, mas também cientes das limitações do mesmo, os autores consideram que no seu conjunto a presente investigação apresenta um contributo importante para a prática da MFR e dos CSP em Portugal.