Introdução
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os determinantes sociais da saúde (DSS) são as circunstâncias nas quais as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem e que influenciam os seus resultados em saúde. 1 Estes determinantes incluem fatores tangíveis e intangíveis, como o rendimento, inclusão social, educação, emprego, segurança, condições profissionais, alimentação, habitação e o acesso a serviços de saúde. (2 Estes determinantes levam a iniquidades em saúde, ou seja, a disparidades injustas e evitáveis no estado de saúde, 1 não só por afetarem diretamente este último, mas também por influenciarem o estilo de vida, as decisões individuais e o acesso aos cuidados de saúde. 3 É uniforme em várias fontes de literatura que quanto mais baixo o estatuto socioeconómico pior é o nível de saúde e, por outro lado, indivíduos com um estatuto socioeconómico e um nível de escolaridade superiores têm mais baixa morbilidade e maior esperança média de vida. 4 Acredita-se que os DSS estejam na génese dos principais problemas de saúde atuais, como a obesidade, doenças cardiovasculares e diabetes. (2 Desta forma, atuando ao nível dos DSS é possível melhorar a igualdade ao acesso aos cuidados de saúde, promovendo, por sua vez, a equidade no estado de saúde. 3
Em Portugal, apesar de o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ter uma cobertura universal com o princípio de fornecer acesso a cuidados de saúde de alta qualidade a toda a população, independentemente do nível socioeconómico, o acesso pode ser limitado por diversas razões, como a disponibilidade insuficiente ou a acessibilidade aos serviços de saúde. 5 Por exemplo, segundo os dados publicados pelo SNS, em agosto de 2022 existiam 1.306.462 utentes, ou seja, 12,4% do total, sem médico de família atribuído. Esta percentagem de utentes está maioritariamente concentrada na Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo, podendo atingir em algum Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) um máximo de 34,68% de utentes sem médico de família atribuído, em contraste com a ARS Norte onde a percentagem máxima verificada num ACeS é de 7,96%.6 Este facto é preocupante, pois os cuidados de saúde primários (CSP) são o primeiro nível de contacto dos indivíduos e das famílias, de uma determinada comunidade, com o sistema de saúde. Eles oferecem cuidados de saúde essenciais e contínuos, próximos do local onde os indivíduos vivem e trabalham. Para além dos cuidados com o intuito curativo, os objetivos dos CSP também incluem a promoção da saúde e a prevenção da doença, 7 pelo que são considerados o pilar do SNS, por serem responsáveis por cuidados abrangentes e continuados a todos os indivíduos que os procuram. 8
Desta forma, apesar de o SNS ter uma abrangência de 100% (em 2019), a satisfação com a disponibilidade dos serviços é de apenas 67% (em 2020). Em 2019 verificou-se que as necessidades de cuidados não atendidas devido ao custo, distância ou tempo de espera, em média, em 27 países da Organização Europeia de Cooperação Económica (OCDE), foi de apenas 2,6%, encontrando-se Portugal abaixo desta média. Verificou-se que as divergências entre os níveis sociais são significativas na maioria dos países da OCDE, sendo que as pessoas com rendimentos mais baixos têm maiores necessidades não atendidas em saúde que pessoas mais abastadas. 5 Ainda, Portugal encontra-se nos países onde há maiores desigualdades relacionadas com a educação e o estado de saúde, em detrimento de uma menor escolaridade. Na maioria dos países da Europa, indivíduos com menor escolaridade revelam maior probabilidade de apresentar excesso de peso, hábitos tabágicos ou alcoólicos9 e a mortalidade é maior por todas as causas, exceto cancro da mama. 10
Em 2020, o acesso aos serviços de saúde esteve limitado na maioria dos países da OCDE devido à pandemia COVID-19. Em média, mais de uma em cada cinco pessoas mencionou ter desistido de um exame ou tratamento médico durante os primeiros doze meses da pandemia. Nesse ano, Portugal destacou-se como o segundo país com níveis mais elevados de necessidades não satisfeitas de cuidados de saúde, com mais de um terço da população a relatar ter desistido de um exame ou tratamento médico durante a primeira vaga da pandemia. 5
Acredita-se que ao atuar ao nível dos DSS é possível melhorar a igualdade no acesso aos cuidados de saúde e, por sua vez, a equidade no estado de saúde. Foram encontrados alguns dados na literatura acerca dos DSS e a sua ação na procura de cuidados de saúde, como:
Nível socioeconómico e rendimento. Existe alguma discordância entre os vários estudos encontrados em diferentes países da Europa. Na maioria da literatura, pessoas com rendimentos mais baixos têm menos probabilidade de consultar um médico, 9,11-12 mostrando também uma utilização mais baixa dos serviços de medicina preventivos. Todavia, verificou-se que, em Portugal, o número de visitas médicas é desproporcionalmente concentrado nos indivíduos com menos rendimentos, (9 o que foi concordante com um estudo realizado na Alemanha. 13
Escolaridade. Em Portugal e em vários países da Europa, a probabilidade de visitar um médico é significativamente superior em indivíduos com um maior grau de escolaridade em comparação com os que concluíram apenas o 4.º ano. 14-16 Pelo contrário, vários estudos realizados em Espanha verificaram que quanto menor a escolaridade, maior a frequência a consultas nos CSP. 17-19
Ocupação. Os desempregados recorrem a mais consultas em comparação com os empregados e, em relação ao tipo de atividade, os estudantes e os trabalhadores não manuais têm maiores taxas de frequência a consultas. 17-18,20 Pelo contrário, um outro estudo mostrou que os estudantes recorrem menos a consultas médicas. 21 Ainda, a reforma antecipada mostrou-se estar relacionada com o aumento da frequência a consultas nos CSP. 13
Sexo e idade. As mulheres têm uma maior probabilidade de visitar um médico e esta probabilidade também aumenta depois dos 50 anos de idade. 12,15-17,21 Pelo contrário, um estudo concluiu que a frequência das consultas diminuía com o aumento da idade, pelo que depois dos 15 anos diminuía e voltava novamente a aumentar após os 75 anos, sendo que a taxa de utilização era superior na faixa etária dos 0-15 anos do que em indivíduos com mais de 65 anos. 20
Sobrepeso e obesidade. Indivíduos com obesidade ou excesso de peso têm uma maior probabilidade de consultar um médico. 16
Habitação. As pessoas que vivem em grandes cidades e áreas metropolitanas têm uma maior probabilidade de consultar um médico em comparação com indivíduos que vivem em cidades pequenas e áreas rurais. 16,21 Em relação à distância ao centro de saúde verificou-se que pessoas que vivem mais perto do centro de saúde tem maior probabilidade de recorrer a uma consulta. 21 Em geral, o aumento da distância, do custo e do tempo de viagem provoca um maior entrave ao acesso aos cuidados de saúde. Esta dificuldade normalmente é mais percebida pelos que não têm acesso a um carro e pelos residentes em regiões rurais em comparação com os residentes em áreas urbanas, devido aos meios de transporte disponíveis. 20
Fatores sociais. A disfunção familiar e eventos de vida negativos levam a um aumento da probabilidade de recorrência a consultas, assim como os solteiros, divorciados, viúvos, pais com filhos com menos de cinco anos e pessoas que arrendam casa. 21-23 Pelo contrário, um estudo mostrou que eventos de vida favoráveis e homens com moderado ou alto apoio social estavam relacionados com um aumento da frequência a consultas nos CSP. 13
Através desta revisão bibliográfica concluiu-se que os DSS têm influência na utilização de consultas, como o estatuto socioeconómico, o rendimento, a escolaridade, a ocupação, o sexo, a idade, a obesidade ou o excesso de peso, o local de habitação e diversos fatores sociais, apesar de se verificar alguma discordância entre os diversos países da Europa.
Em suma, o presente estudo tem como objetivo compreender se existe relação entre os DSS e a utilização de consultas nos CSP, através da avaliação de utentes inscritos numa unidade de saúde familiar (USF) e as consultas realizadas nos últimos dez anos. Ainda como objetivo secundário pretende extrapolar algumas conclusões acerca da gestão das consultas, distribuição dos médicos e racionalização de recursos, ponderando se há utentes com mais necessidade de utilizar serviços de saúde e a quem deve ser atribuído um médico de família.
Método
O estudo é observacional, analítico, transversal e retrospetivo; tem como população-alvo os utentes inscritos na USF em estudo, com idade igual ou superior a 28 anos. A maioria dos dados foram recolhidos através do Módulo de Informação e Monitorização das Unidades Funcionais (MIM@UF) e algumas variáveis foram fornecidas pela ARS da região em estudo. Apenas foi possível recolher a variável escolaridade através da plataforma SClínico. Realizou-se uma análise descritiva para caracterizar a amostra e, posteriormente, efetuou-se uma análise multivariada, utilizando métodos de dependência, como a regressão linear múltipla, com variáveis quantitativas dependentes (número de consultas) e independentes (DSS). Os dados foram tratados de forma agregada, cumprindo a salvaguarda dos dados individuais, de acordo com o pedido da Comissão de Ética da ARS e da USF em estudo. Para as regressões lineares efetuadas no artigo foi detetada uma violação do pressuposto à realização adequada do método de mínimos quadrados, dado ter sido identificado um problema de heterocedasticidade através do teste de White. Este problema é totalmente corrigido através da utilização de desvios-padrão robustos, como é o caso no artigo.
Em dezembro de 2021 foi extraído, através da plataforma MIM@UF, o número total de utentes inscritos na USF com médico de família atribuído. A amostra utilizada para a realização deste estudo apenas inclui utentes com idade igual ou superior a 28 anos. Todavia, a variável escolaridade apenas foi recolhida através da consulta da ficha individual no SClínico. Somente para o estudo desta variável foram acedidas apenas listas de utentes de dois médicos da USF para avaliar o impacto da escolaridade na frequência a consulta. Este procedimento teve em vista a seleção de uma amostra aleatória, tornando-a assim o mais representativa possível do total dos utentes inscritos na USF.
O estudo foi dividido em três partes. Uma primeira parte, onde se analisou a influência dos DSS na utilização de consultas por iniciativa do utente nos CSP, com ou sem a presença do utente, para cada um dos anos da amostra, sem incluir a variável escolaridade. Para robustez do estudo realizou-se a análise anual para compreender se o padrão da frequência a consultas se modifica de ano para ano. Na segunda parte analisou-se a influência da variável escolaridade na utilização de consultas por iniciativa do utente nos CSP, com ou sem a presença do utente, para cada um dos anos da amostra. Foi necessário fazer uma análise separada da variável escolaridade, porque foi recolhida num menor número de utentes pela dificuldade da colheita através do SClínico. Por fim, uma terceira parte onde se repete a análise anterior, mas agregando os anos pré e pós pandemia COVID-19, utilizando como variável dependente a média do número de consultas por ano e por utente nesses períodos.
A variável dependente selecionada foi o número de consultas de saúde de adultos realizadas por utente por sua iniciativa e por ano, nos últimos dez anos (desde 1/janeiro/2012 até dia 31/dezembro/2021) e foram recolhidas com base nos dados dos utentes em dezembro/2021 (Tabela 1). O número de consultas é descarregado através da plataforma MIM@UF, pelo que as consultas de saúde de adultos incluem também consulta aberta, ou seja, consulta de urgência agendada no próprio dia, assim como consultas de vigilância da diabetes mellitus e hipertensão arterial. Apenas se analisou, como variável independente, o número de consultas de saúde de adultos porque são as consultas da iniciativa do utente mais comummente realizadas na USF. Excluíram-se as consultas de planeamento familiar/rastreio oncológico, saúde materna e saúde infantojuvenil, pois são consultas em que os utentes são convocados com frequência pelo médico ou enfermeiro de família. Assim, ao excluir estas tipologias de consultas diminui-se um viés de seleção por limitar a inclusão de consultas de iniciativa médica. Tal como estas últimas consultas, os utentes diabéticos e hipertensos são convocados com frequência pelo médico ou enfermeiro de família. Na presente investigação, dada a impossibilidade de excluir esta tipologia de consultas das consultas de saúde de adultos, os diagnósticos de diabetes e de hipertensão serão utilizados como variáveis de controlo, porque é expetável que estes doentes sejam utilizadores mais frequentes de consultas nos CSP. Por fim, apenas foram incluídos utentes com idade igual ou superior a 28 anos (em 2021), de forma que, quando se estudasse o ano de 2012, todos estes fossem maiores de idade e, assim, contabilizados para os utentes que recorrem a consultas de saúde de adultos.
Ainda, as consultas estão divididas em consultas com e sem a presença do utente. As consultas sem a presença do utente são consultas utilizadas para a renovação de medicação crónica, registo de exames complementares de diagnóstico, pedidos de relatórios médicos, registo de notas de alta ou cartas de outros profissionais de saúde, entre outras. Durante a pandemia COVID-19 muitas das consultas de saúde de adultos com a presença do utente foram convertidas em consultas telefónicas, de forma a realizar a vigilância dos utentes infetados pelo vírus SARS-CoV-2, que no início eram realizadas diariamente durante catorze dias, desde o início dos sintomas até ao fim do período de isolamento. Assim, estas consultas passaram a ser classificadas como consultas sem a presença do utente.
Quanto às variáveis independentes que foram incluídas no estudo, estas também são explicadas na Tabela 1 e também foram recolhidas com base nos dados dos utentes em dezembro/2021. As variáveis selecionadas foram os DSS passíveis de serem colhidos através das plataformas mencionadas. O sexo, a idade, a escolaridade, o emprego, o rendimento e os problemas sociais são dos determinantes mais abordados e estudados na literatura. Desta forma, nesta investigação também foram incluídos a nacionalidade e os hábitos e estilos de vida, como tabagismo, alcoolismo, toxicodependência, obesidade e excesso de peso, para perceber se existe alguma correlação com a frequência às consultas nos CSP.
A Classificação Internacional de Cuidados de Saúde Primários (ICPC-2) é utilizada pelos profissionais de saúde para classificar elementos importantes da consulta médica como os motivos que levam o utente à consulta, diagnósticos ou problemas e procedimentos. A codificação destes códigos, assim como a atualização da escolaridade e da situação profissional, é realizada pelo médico a cada consulta, pelo que pode condicionar um viés de seleção. Assim, foram determinados quais os utentes com códigos do ICPC-2 ativos no seu processo clínico relacionados com problemas psicossociais, problemas no seio familiar, na habitação e com o serviço de saúde (Tabela 1). Para avaliar melhor a situação económica do utente é utilizada a variável (recolhida administrativamente) da isenção do pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica.
Resultados
Em dezembro/2021, a USF em estudo tinha 11.793 utentes inscritos, com médico de família atribuído. A média de idades era de 44,47 anos (± 22,25 anos), variando entre os 0 aos 109, em que 51,8% eram mulheres. A amostra utilizada para a realização deste estudo tem 8.781 utentes, que cumprem o critério da idade igual ou superior a 28 anos, apresentando uma média de idades de 54,58 anos (± 15,61 anos), variando entre os 28 aos 109, em que 52,3% são mulheres. Dada a dificuldade na recolha da variável escolaridade, somente 2.503 dos utentes com idade igual ou superior a 28 anos tinham este dado disponível, com uma média de idades de 53,94 anos (± 15,42 anos).
De 2012 a 2021, na USF em estudo, foi realizado um total de 165.922 consultas de saúde de adultos com a presença do utente, em média mais de 16.500 consultas por ano, e 135.705 consultas de saúde de adultos sem a presença do utente, mais de 13.500 consultas em média por ano (Tabela 2). O número total de consultas por ano tem vindo a aumentar, pelo que entre 2019 (pré-pandemia COVID-19) e 2021 (pós-pandemia COVID-19) houve um incremento de quase 6.000 consultas, principalmente consultas sem a presença do utente (Tabela 2). A média de consulta de saúde de adultos com a presença do utente, por ano, no período pré-pandemia COVID-19 (2012 a 2019) é de cerca de 18.000 em comparação com 11.000, no período pós-pandemia (2020 e 2021). Em relação às consultas de saúde de adultos sem a presença do utente, por ano, no período pré-pandemia COVID-19 foram de 11.000, pelo que no período pós-pandemia foram de 25.000.
A amostra é maioritariamente de nacionalidade portuguesa, com apenas 0,62% dos utentes de outras nacionalidades. A maioria dos utentes desta amostra, 4.973 (56,6%), vive na freguesia onde se localiza a USF. Dos restantes utentes, a média da distância da sua habitação à USF é de 9,07 km. No total, a média da distância da sua habitação do utente à USF é de 3,85 km. Quanto à escolaridade, a maior proporção desta amostra tem apenas o 4.º ano de escolaridade (35,5%), seguida do 6.º ano de escolaridade (15,5%). Apenas 25,70% da amostra tem o 12.º ano ou mais de escolaridade e 5,90% tem menos do 4.º ano de escolaridade. Ainda, existe alguma discrepância na escolaridade entre os géneros, tendo o dobro das mulheres (12,6%) uma licenciatura em comparação com os homens (6,2%).
A maioria das variáveis são de duas categorias, mas para determinar a situação profissional o coeficiente é entre a situação profissional «não ativo», «reformado», «estudante», «desconhecido» e a categoria base («ativo»). Normalmente, o médico assistente considera população não ativa os desempregados ou indivíduos que nunca estiveram no mercado de trabalho. Assim, verificou-se que 58,8% dos utentes estão ativos, 15,6% são reformados, 5,5% são estudantes, 15,0% são não ativos e 5,1% dos utentes não estava preenchido. A proporção de mulheres não ativas ou reformadas é maior em comparação com os homens, enquanto o contrário se constata nos estudantes.
Quanto aos códigos do ICPC-2 ativos no processo clínico relacionados com problemas psicossociais, problemas no seio familiar, na habitação e com o serviço de saúde apenas estavam presentes em 448 utentes da amostra. Os mais frequentes foram os relacionados com problemas no seio familiar (287, apenas 3,3% dos utentes), seguido do código de Problema com os Cuidados de Saúde (53, apenas 0,60% dos utentes) e do código de Pobreza/Problema Económico (51, apenas 0,60% dos utentes). Todavia, a variável da isenção do pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica foi identificada em 28% dos utentes.
Em relação a comportamentos e fatores de risco, que também são determinados através dos códigos do ICPC-2, verificou-se que 18,98% dos utentes é fumador, 3,66% tem consumo crónico de álcool, 1,06% tem abuso de droga, 16,36% é obeso, 36,81% tem excesso de peso, 10,52% é diabético e 29,09% é hipertenso. Na amostra os homens têm mais hábitos de risco, como o abuso de tabaco, álcool e drogas, enquanto as mulheres apresentam mais excesso de peso ou obesidade.
Através da primeira análise da regressão linear múltipla, realizada por ano, para as consultas de saúde de adultos com presença do utente, estima-se que a propensão para a frequência de consultas era significativamente superior para: mulheres, onde se estima que, em 2021, uma mulher vá a mais 0,286 consultas por ano do que um homem com as mesmas características (p<0,001); utentes com nacionalidade portuguesa, onde se prevê que, em 2021, estes frequentem mais 0,377 consultas por ano do que um utente de outra nacionalidade (p<0,040); utentes não ativos como situação profissional, onde se estima que, em 2021, um utente não ativo vá a mais 0,142 consultas por ano do que um utente ativo (p<0,020); utentes ativos em contraste com os estudantes (p<0,024) ou com situação profissional desconhecida, onde um utente ativo, em 2021, terá mais 0,393 consultas face a um utente com situação desconhecida com características semelhantes (p<0,048), mas não significativo em 2021 no caso dos estudantes; isentos de pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica (p<0,026), mas não significativo para 2021; utentes com problemas no seio familiar, que se estima que frequentem mais 0,749 consultas face a um utente sem estes problemas (p<0,020); obesos (p<0,001) e com excesso de peso (p<0,001), que se estima que tenham, respetivamente, mais 0,551 e 0,558 consultas face a quem não tenha excesso de peso; com a proximidade do local da habitação com a USF, onde cada km mais perto da USF aumenta o número de consultas em 0,003 por ano (p<0,017); utentes com problemas com os cuidados de saúde, que se estima que frequentem mais 0,839 consultas por ano (p<0,041). Todos estes coeficientes expressam o efeito da mudança da variável em análise, assumindo que todas as outras se mantêm constantes (Tabelas 3 e 4).
Ser reformado apenas foi significativo em quatro dos 10 anos estudados, enquanto os utentes toxicodependentes apenas foram significativos em três dos 10 anos estudados. Por outro lado, o problema com a educação mostrou-se significativo de forma positiva em quatro dos 10 anos, mas também de forma negativa no mesmo número de anos estudados. Todavia, não se demonstraram estatisticamente significativas as seguintes variáveis: tabagismo, alcoolismo, utentes com problema de pobreza, problema com o trabalho, problemas na habitação, problema de desemprego, problema com a educação ou problema de violência (Tabelas 3 e 4).
Ao quantificar a idade ao quadrado foi percetível que a frequência a consultas tem uma distribuição quadrática em praticamente todos os anos estudados, o que significa que os utentes recorrem mais a consultas nos CSP em determinadas idades, que no caso das consultas com a presença do utente é entre os 50 e os 70 anos (p<0,027) e no caso das consultas sem a presença do utente é a partir dos 80 anos (p<0,030). No ano de 2019, o ponto máximo de frequência às consultas de saúde de adultos com a presença do utente foi aos 62,8 anos (p<0,01) e para as consultas de saúde de adultos sem a presença do utente o ponto máximo foi aos 96,2 anos (p<0,005).
Para as consultas de saúde de adultos sem presença do utente estima-se que a propensão para a frequência de consultas era significativamente superior para: mulheres, que se estima uma maior frequência de consultas em 0,360 por ano face aos homens (p<0,001); utentes com nacionalidade portuguesa, onde se prevê que, em 2021, estes frequentem mais 0,901 consultas por ano do que um utente de outra nacionalidade (p<0,027); utentes não ativos e reformados como situação profissional, que se estima mais 0,357 e 1,066 consultas por ano face a utentes trabalhadores, respetivamente (p<0,001); utentes ativos em contraste com os com situação profissional desconhecida, onde um utente ativo, em 2021, terá mais 0,337 consultas face a um utente com situação desconhecida; isentos de pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica, que têm mais 0,268 consultas por ano face a quem não está isento (p<0,001); utentes com problemas no seio familiar, que se estima que tenham mais 0,525 consultas por ano (p<0,029; mas apenas em metade dos anos estudados); com a proximidade do local da habitação com a USF, onde cada km mais perto da USF aumenta o número de consultas em 0,003 por ano (p<0,019); utentes sem problema com a educação, que se prevê, em 2021, que frequentem mais 4,187 consultas por ano; obesos (p<0,016) e com excesso de peso, que se estima que tenham mais 0,607 e 0,604 consultas por ano face a um utente sem excesso de peso (p<0,001). Apenas foi significativo em quatro dos 10 anos estudados, os estudantes e os não-fumadores, assim como os utentes sem problema de toxicodependência em apenas três dos 10 anos estudados. Por outro lado, as seguintes variáveis não se revelaram estatisticamente significativas: alcoolismo; utentes com problema de pobreza, problemas na habitação, problema com o trabalho, problema com os cuidados de saúde, problema de desemprego e problema de violência (Tabelas 5 e 6).
Através da segunda análise, com 2.503 utentes, em que apenas se avaliou a influência da escolaridade na procura por cuidados de saúde, foram integradas todas as outras variáveis de forma a não se perder observações da regressão principal. Foi percetível que o número de consultas de saúde de adultos era superior quanto menor o grau de escolaridade, tendo sido estatisticamente significativo em todos os anos para as consultas com a presença do utente (p<0,001) e em oito dos 10 anos estudados para as consultas sem a presença do utente (p<0,020) (Tabelas 7 e 8).
Na terceira análise, ao comparar os anos pós e pré-pandemia COVID-19 verificou-se que para as consultas de saúde de adultos com presença do utente o número de consultas, em ambas as épocas, era superior e estatisticamente significativo para: mulheres, sendo o efeito sobre o número de consultas superior em pré-COVID (0,449 vs 0,195 consultas por ano) (p<0,001); com o aumento da idade, sendo o efeito semelhante entre épocas (p<0,001); nacionalidade portuguesa, com maior efeito no pré-COVID (0,574 vs 0,313 consultas por ano); com o aumento da proximidade do local da habitação com a USF, tendo a distância perdido relevância no período pós-COVID, como expectável (mais 0,002 vs 0,005 consultas por ano por km de proximidade) (p<0,001); utentes não ativos como situação profissional, cuja diferença era maior no período pré-COVID (0,259 vs 0,115 consultas por ano face a utentes ativos) (p<0,005); utentes ativos em contraste com os estudantes ou com situação profissional desconhecida, com efeitos semelhantes entre as duas épocas para estudantes, mas com os utentes ativos face à situação profissional desconhecida com mais consultas em período pré-COVID (0,763 vs 0,305 consultas por ano) (p<0,042); obesos (p<0,001) e com excesso de peso, com efeitos semelhantes pré e pós pandemia (p<0,001); utentes com problemas no seio familiar, com um efeito mais pronunciado pré-pandemia (0,710 vs 0,460 consultas por ano) (p<0,001) e para os utentes com problema com os cuidados de saúde, num efeito ampliado após a pandemia (0,860 consultas por ano vs 0,580) (p<0,008) (Tabela 9).
Algumas variáveis, no entanto, apenas são explicativas da presença nas consultas apenas para um dos períodos em análise. Para a época pré-pandemia COVID-19, o número de consultas de saúde de adultos com presença do utente é superior para: utentes sem problema com a educação (p<0,001); reformados como situação profissional (p<0,001); utentes isentos de pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica (p<0,001); utentes com o problema de pobreza (p<0,001); e toxicodependência (p<0,033). Apenas para a época pós-pandemia COVID-19, o número de consultas de saúde de adultos com presença do utente é superior para os utentes com problema com a educação (p<0,001). As variáveis seguintes não foram estatisticamente significativas: tabagismo; alcoolismo; utentes com problema com a educação, problema de desemprego e problema de violência (Tabela 9).
Para as consultas de saúde de adultos sem presença do utente foi percetível que o número de consultas, em ambas as épocas (pós e pré pandemia COVID-19), era superior para: mulheres, com um efeito superior pós-COVID (0,482 vs 0,200 consultas por ano), revelando que as mulheres sentiram mais necessidade de consultas presenciais face aos homens após a pandemia (p<0,001); com o aumento da idade, sendo este efeito mais pronunciado pós-COVID (p<0,001); nacionalidade portuguesa, sendo a estimativa para o número de consultas de portugueses maior em pós-COVID do que em pré-COVID (0,923 vs 0,368 consultas por ano); com o aumento da proximidade do local da habitação com a USF, com um efeito semelhante pré e pós-pandemia (p<0,031); utentes sem problema com a educação, sendo o efeito sobre o número de consultas superior em época pós-COVID (4,403 vs 2,406 consultas por ano); utentes não ativos como situação profissional, também com um efeito semelhante entre épocas (p<0,001); reformados, também com um efeito semelhante entre épocas (p<0,001); utentes isentos de pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica, com um efeito semelhante entre épocas (p<0,001); utentes com problemas no seio familiar, que se estima que o efeito de comparecer mais nestas consultas é superior em pós-COVID (0,536 vs 0,204 consultas por ano), revelando que os utentes com estes problemas passaram a ter mais consultas sem a presença do utente pós-COVID (p<0,009); obesos (p<0,001) e com excesso de peso (p<0,001), que se estima que passaram a ter mais consultas deste tipo após a pandemia (0,655 vs 0,142 para os obesos; 0,667 vs 0,217 para o excesso de peso) (Tabela 9).
Apenas para a época pré-pandemia COVID-19, o número de consultas de saúde de adultos sem presença do utente é superior para: utentes ativos em contraste com situação profissional desconhecida (p<0,045); estudantes (p>0,012), utentes com problema de pobreza (p<0,014) e os não fumadores (p<0,012). Apenas para a época pós-pandemia COVID-19, o número de consultas é superior para: utentes ativos como situação profissional em contraste com os estudantes (p<0,001); e utentes com problemas na habitação (p<0,002). Não se demonstrou estatisticamente significativo para: utentes com problemas com o trabalho, com problema de desemprego, com problema de violência, com problema com os cuidados de saúde, alcoolismo e toxicodependência (Tabela 9).
Tal como a segunda análise, com 2.503 utentes, em que apenas se avaliou a influência da escolaridade na procura por cuidados de saúde, apesar de se ter integrado todas as outras variáveis, ao comparar os anos pós e pré-pandemia COVID-19 foi percetível que o número de consultas de saúde de adultos, em ambas as épocas, era superior quanto menor o grau de escolaridade, tendo sido estatisticamente significativo para as consultas com e sem a presença do utente (p<0,001 e p<0,013, respetivamente) (Tabela 10).
Discussão
Na presente investigação, como identificado na literatura, as mulheres, os obesos ou com sobrepeso, a disfunção familiar (problemas no seio familiar), os desempregados (não ativos como situação profissional), os reformados e a proximidade da habitação à USF estão associados a um aumento da frequência a consultas médicas. 12-13,15-18,20-23 Ainda, ao contrário do observado na Europa, mas concordante com o encontrado em Portugal, 9 indivíduos com um rendimento inferior, que correspondem aos utentes com isenção do pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica, são os que têm maior propensão a procurar consultas médicas.
Adicionalmente, apesar de na literatura os estudantes terem maior probabilidade de recorrer a uma consulta, 17-18,20 na presente investigação este facto foi comprovado; contudo, apenas para consultas sem a presença do utente em quatro dos dez anos estudados. Na consulta com a presença do utente verificou-se o contrário, ou seja, os utentes ativos como situação profissional em contraste com os estudantes recorrem mais à consulta em metade dos anos estudados. Do mesmo modo, no estudo, apesar de se ter demonstrado que os desempregados (ou seja, não ativos como situação profissional) recorrem mais à consulta, também se verificou que os utentes ativos como situação profissional, em contraste com os com uma situação profissional desconhecida, mostraram maior propensão à frequência da consulta.
Em relação à escolaridade verificou-se que a procura por cuidados médicos é superior para indivíduos com menor grau de escolaridade, o que difere do encontrado na literatura. De acordo com a revisão bibliográfica, 14-16 em Portugal e em vários países da Europa, a probabilidade de visitar um médico é superior em indivíduos com um maior grau de escolaridade, exceto em Espanha em que se verifica o contrário. Quanto à idade conclui-se que os utentes recorrem mais a consultas em determinadas idades, como entre os 50-70 anos nas consultas com a presença do utente e acima dos 80 anos nas consultas sem a presença do utente, sendo parcialmente concordante com a maioria dos achados que afirmam que a probabilidade de visitar um médico aumenta depois dos 50 anos de idade. 12,15-17,21
Na presente investigação também se analisou o efeito da nacionalidade assim como os comportamentos de risco, como o tabagismo, o alcoolismo e a toxicodependência. Quanto à nacionalidade verificou-se que os portugueses recorrem mais a consultas do que outras nacionalidades. Quando à toxicodependência, esta foi estatisticamente significativa em três dos dez anos estudados nas consultas com a presença do utente; contudo, para as consultas sem a presença do utente os não consumidores de drogas recorrem mais a consulta em três dos dez anos estudados. Da mesma forma, os não fumadores mostraram maior probabilidade de recorrer a uma consulta sem a presença do utente em quatro dos dez anos estudados, não se mostrando estatisticamente significativo nas consultas com a presença do utente. Quanto ao alcoolismo, este não se mostrou estatisticamente significativo em nenhum dos anos estudados. Todavia, nada foi encontrado na literatura acerca desta informação para possível comparação.
Por fim, também se verificou que, para as consultas sem a presença do utente, os indivíduos sem o código ativo de problema de educação tinham maior probabilidade de recorrer a uma consulta médica, enquanto para as consultas com a presença do utente, os indivíduos com problemas com o serviço de saúde mostraram maior propensão a consultar um médico. Também nada foi encontrado na literatura para efeitos de comparação.
Infelizmente, em Portugal, a especialidade de medicina geral e familiar (MGF) ainda é vista como uma disciplina inferior em comparação com as restantes especialidades, apesar de esta ser o pilar do SNS e proporcionar cuidados não só curativos como também de promoção da saúde e prevenção da doença, pelo que se acredita que um número significativo de utentes com escolaridade e rendimentos superiores procuram cuidados no setor privado, direcionados à especialidade correspondente ao seu problema de saúde. Ainda, como uma grande proporção dos utentes é isenta quer por insuficiência económica, doença, gravidez, entre outras, a procura de cuidados de saúde tem tendência a ser superior para estes indivíduos pela facilidade de acesso e baixo custo em comparação com os cuidados de saúde no setor privado. Curiosamente, desde meados de 2020 deixaram de ser cobradas taxas moderadoras nos CSP, pelo que, neste estudo, em 2021, a isenção do pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica não se demonstrou estatisticamente significativa para explicar a procura por cuidados de saúde, o que, em conjunto com o aumento do número total de consultas, revela com grande probabilidade um aumento da procura independentemente do nível socioeconómico.
Como era a perceção dos autores comprovou-se que houve um incremento na procura por cuidados de saúde no período pós-pandemia COVID-19. Foi claro um aumento, de ano para ano, do número total de consultas desde 2012, sendo mais acentuado desde 2019. Este aumento pode ser explicado pelo próprio contexto pandémico, com o aparecimento das consultas telefónicas para vigilância dos utentes infetados pelo vírus SARS-CoV-2, mas também por um incremento da consciencialização para a saúde e pela procura por cuidados preventivos por parte dos utentes.
Assim, este estudo analisou a diferença entre os DSS na recorrência a consultas, no período pré e pós-pandemia COVID-19, pelo que se verificou que em ambas as épocas e para ambas as tipologias de consulta (com e sem presença do utente), as mulheres, a nacionalidade portuguesa, os desempregados, os obesos ou com sobrepeso, o aumento da idade, a disfunção familiar, a proximidade do local da habitação com a USF e um menor grau de escolaridade estão associados a um aumento da frequência a consultas médicas. Os reformados e os utentes com insuficiência económica ou sem problema de educação mostraram-se estatisticamente significativos em ambas as épocas nas consultas sem presença do utente; contudo, nas consultas com a presença do utente apenas se verificou influência no consumo de consultas na época pré-COVID. Do mesmo modo, verificou-se que para as consultas com a presença do utente os ativos, em contraste com os de situação profissional desconhecida, recorriam mais a consultas em ambas as épocas; todavia, nas consultas sem a presença do utente isso somente aconteceu na época pré-COVID. O mesmo ocorreu no caso dos estudantes, que se verificou que tinham maior probabilidade de recorrer a consulta sem a presença do utente na época pós-COVID. A pobreza, para ambas as tipologias de consulta, revelou influência no consumo de consultas na época pré-COVID; contudo, na época pós-COVID não se mostrou estatisticamente significativa. Apenas para uma das tipologias de consulta, no caso dos utentes com toxicodependência ou não fumadores, tinha influência no consumo de consultas na época pré-COVID; contudo, na época pós-COVID não se mostraram estatisticamente significativos. Os utentes com problemas com a habitação ou problemas da educação não mostraram ter influência no consumo de consultas na época pré-COVID; todavia, na época pós-COVID já se revelaram significativos.
Por fim, em Portugal, apesar de o serviço de saúde se caracterizar por ter uma cobertura universal, com o princípio de fornecer acesso a cuidados de saúde de qualidade independentemente do nível socioeconómico, 12,4% da população portuguesa - o que corresponde a mais de um milhão de utentes - não tem médico de família atribuído. Este facto é preocupante pois são os CSP o primeiro nível de contacto dos indivíduos e das famílias com o sistema de saúde. Assim, apesar de esta percentagem de utentes sem médico de família ser concentrada principalmente na região de Lisboa, é imperativo compreender a forma de utilização dos recursos por parte dos utentes e perceber se há alguma forma dos cuidados de saúde primários abrangerem toda a população portuguesa. Esta necessidade é emergente e foi realçada após a pandemia COVID-19, pois, como foi apresentado no presente estudo, registou-se um incremento da procura por cuidados de saúde.
Algumas sugestões dos autores são a distribuição de tarefas burocráticas para outros grupos profissionais, assim como o Serviço de Verificação de Incapacidades Temporárias (SVIT), que convoca os utentes com certificado de incapacidade temporária (CIT) prolongada para verificação da veracidade da mesma, poderia ser responsável pela renovação do CIT, no caso de incapacidades prolongadas, por exemplo, por patologias oncológicas, em vez do médico assistente. Os rastreios oncológicos, a renovação da medicação crónica e a emissão de documentos como o atestado médico para a renovação da carta de condução, também podiam estar a cargo de outros grupos profissionais ou mesmo ser emitidos automaticamente, através de plataformas informáticas. Ainda, a exploração do mundo digital, com as consultas telefónicas ou por vídeo e a criação de plataformas online que automatizem este tipo de tarefas e facilitem a comunicação com os utentes, pode ser uma estratégia para conseguir dar resposta ao aumento da procura por cuidados de saúde e melhoria de satisfação com os mesmos.
Contudo, a longo prazo, através da educação para a saúde e a promoção da escolaridade obrigatória, é possível atuar sofre os DSS que são passíveis de ser modificados, como a escolaridade, o rendimento ou a situação profissional, modificando o padrão de utilização de consultas e facilitando a gestão das mesmas.
Por último, sugere-se a readmissão da norma onde havia eliminação da lista do médico de família para os utentes que não frequentassem os CSP. Assim, teoricamente, os indivíduos que têm mais necessidade de assistência médica teriam a possibilidade de ter um médico de família, eliminando utentes não frequentadores. Pode, assim, colocar-se a questão se há indivíduos que necessitem mais de cuidados médicos, pelo que devem ter mais acesso ao médico de família, em comparação com os indivíduos com menos necessidades - de acordo com os determinantes que foram identificados neste artigo -, pelo que os DSS e os resultados obtidos nesta investigação podem contribuir para ajudar nesta seleção.
Conclusão
Através do presente estudo conclui-se que os DSS têm influência na utilização de consultas nos CSP. Alguns destes determinantes são: o sexo, a idade, a nacionalidade, o IMC, o rendimento, a escolaridade, a situação profissional, a disfunção familiar, a distância da habitação à USF, os não fumadores e o consumo de drogas. Quanto à análise dos períodos pré e pós-pandemia COVID-19 verificou-se que esta teve impacto na mudança de alguns padrões de comportamento por parte dos utentes.
A literatura explica que a utilização de consultas também é influenciada por muitos fatores, como pela perceção subjetiva do estado de saúde, mas também por doenças crónicas. Contudo, acredita-se que os DSS estejam na origem dos principais problemas de saúde atuais, pelo que, atuando ao nível destes, é possível melhorar a igualdade de acesso aos cuidados de saúde e, por sua vez, a equidade no estado de saúde.
Em 2020, após o início da pandemia COVID-19, houve um aumento da procura por consultas nos CSP, o que veio realçar a escassez de médicos de MGF no SNS. Apesar desta carência ser sobretudo na região de Lisboa, mais de um milhão de utentes não tem médico de família atribuído, o que se torna alarmante, pois o sistema de saúde português é caracterizado por ter uma cobertura universal, com o princípio de fornecer acesso a cuidados de saúde de qualidade, independentemente do nível socioeconómico.
Através dos DSS é possível compreender a forma de utilização de consultas por parte dos utentes e, ao atuar sobre estes, poder-se-á melhorar a racionalização dos recursos oferecidos pelo SNS, como o número de consultas e a distribuição dos médicos, de forma que toda a população portuguesa tenha acesso a cuidados de saúde de qualidade.
O estudo apresenta algumas limitações. A investigação foi realizada em apenas uma USF, limitando a amostra em estudo e não foi possível quantificar alguns determinantes importantes e previstos na literatura, como a profissão, o estado civil, as condições de habitação e de trabalho, os hábitos alimentares e a atividade física. Outra limitação verificada foi o facto de a variável escolaridade apenas estar disponível para um conjunto reduzido de utentes. Contudo, este número reduzido é uma amostra aleatória do universo, dado provir de listas de utentes de dois médicos da USF, o que sugere que estes utentes terão características semelhantes com o resto da amostra. Também algumas variáveis, como os códigos do ICPC-2 sobre problemas sociais e comportamentos de risco, dependem da codificação do médico assistente, pelo que nem sempre são considerados e registados, tal como a atualização da escolaridade e da situação profissional.
Por outro lado, apesar de o estudo ter sido realizado em apenas numa USF, esta é composta por cerca de 12.000 utentes, com uma população bastante heterogénea, quer a nível socioeconómico como cultural, obtendo-se resultados potencialmente generalizáveis para o comportamento dos utentes noutras USF do país. Foi ainda possível quantificar vários determinantes sociais da saúde, tendo estes dados sido recolhidos de forma administrativa, eliminado o viés do observador.