Introdução
A ansiedade é um sentimento universal, presente na maioria ou totalidade das pessoas em algum momento das suas vidas, sem que constitua doença ou mesmo anormalidade. Classicamente é dividida em duas componentes: física e psicológica.1-3 A componente física descreve os sintomas fisiológicos como, por exemplo, palpitações, tremor e sudorese. A componente psicológica prende-se com uma sensação de apreensão vaga, difusa e desagradável. De facto, os sintomas de ansiedade assemelham-se aos do medo. Ambos podem ser mecanismos adequados e normais, mas enquanto o medo lida com uma ameaça presente, a ansiedade lida com uma hipotética ameaça. Deste grupo heterogéneo de patologias e manifestações destacam-se duas, em particular: a perturbação de pânico e a perturbação de ansiedade generalizada. A perturbação de pânico é caracterizada pela presença de ataques de pânico recorrentes e inesperados - episódios muito desconfortáveis em que o doente pode sentir palpitações, sudorese, tremores e medo de morrer ou enlouquecer. Quando existe um medo constante de ter novos ataques ou uma mudança comportamental no sentido de os evitar está instalada uma perturbação de pânico. A perturbação de ansiedade generalizada caracteriza-se por ansiedade e preocupação excessivas, presentes de maneira pervasiva (em todas as situações da vida da pessoa e em todos os momentos) e com impacto pessoal e/ou funcional. É uma patologia comum, sendo que, num estudo de vários países europeus, obteve-se uma prevalência global de aproximadamente 2%.4 Globalmente estima-se que seja a sexta causa mais importante de perda de saúde não-fatal e explicativa de 10% dos anos de vida ajustados pela incapacidade. 1 Estudos têm revelado que a perturbação ansiosa é mais frequente nos estatutos socioeconómicos mais baixos, no género feminino, apresentando uma prevalência duas vezes superior na maioria das perturbações da ansiedade e que a maioria destas perturbações começa na infância ou adolescência. 1
Cada vez mais se reconhece a importância do genoma e ambiente na génese e perpetuação da perturbação da ansiedade. A contribuição genética parece ser de mais de 30% para a maioria das perturbações da ansiedade. 1 Ainda assim, a descoberta dos genes causadores específicos é difícil, porque o padrão genético destas patologias é muito complexo e são necessárias amostras de estudo maiores para obter resultados robustos. Os fatores ambientais também desempenham um papel importante; sabe-se que os eventos ansiogénicos, sejam cumulativos ou específicos, condicionam um maior risco de perturbações do espectro ansioso. 1 A componente ambiental que proporciona a génese da ansiedade pode ser dividida em três dimensões: não verbal, verbal e comportamental. A dimensão não verbal, também denominada de observacional, é a mais importante na fase inicial de desenvolvimento. Contempla a aprendizagem observacional de ansiedade parental quando exposta a diferentes situações de ambiguidade ou pseudoameaça do quotidiano. 5-10 Assim, a aprendizagem observacional, instrucional e comportamental parental de medo/ansiedade e evicção são importantes pilares para a transmissão intergeracional e para a perpetuação da perturbação de ansiedade. 11-12 A dimensão verbal, também designada de instrucional, contempla a transmissão de estilos cognitivos através da partilha de perceções e preocupações de possíveis ameaças futuras, 13 promovendo a intolerância à incerteza, 7 evidenciando a necessidade de recorrer à preocupação excessiva como método de controlo da incerteza. Por fim, a dimensão comportamental relaciona-se com o facto de a perturbação de ansiedade generalizada parental se manifestar em comportamentos de hipercontrolo e hiperproteção, favorecendo a evicção experiencial a diversas situações. 14-16 Pais ansiosos tornam as crianças genética e ambientalmente mais propensas a exibirem comportamentos de ansiedade, o que potenciará ainda mais o distúrbio ansioso dos pais. (12 Estudos direcionados para o contributo genético-ambiental da ansiedade destacaram a importância da interação entre acontecimentos de vida, como o trauma precoce no desenvolvimento e eventos stressantes, e marcadores de plasticidade molecular para a génese de distúrbio de ansiedade generalizada, traços de ansiedade ou sensibilidade à ansiedade (5-HTT, NPSR1, COMT, MAOA, CRHR1 e RGS2). 17 As abordagens farmacogenéticas aplicadas ao tratamento SSRI (selective serotonin reuptake inhibitors) e SNRI (serotonin and norepinephrine reuptake inhibitors) do distúrbio de ansiedade generalizada apontam para um papel potencialmente preditivo dos genes candidatos serotonérgicos (5-HTT, 5-HT2A), bem como dos genes COMT e CRHR1.17 Investigações preditivas mais amplas do desenvolvimento do distúrbio de ansiedade generalizada podem beneficiar do crescente impacto da epigenética na neuropsiquiatria. 17 Para além da farmacogenética, também a terapia cognitiva comportamental parece ser fundamental na gestão desta psicopatologia. Uma revisão da literatura concluiu que os tratamentos cognitivos comportamentais envolvendo toda a família, no caso da ansiedade, tem melhores resultados do que intervenções individuais. Esse parece também associar-se a melhoria dos sintomas individuais e ao adiamento do início de sintomas nos membros mais jovens da família. 18
A medicina geral e familiar ocupa uma posição privilegiada na avaliação individual e familiar desta patologia. Com este caso clínico pretende-se a discussão da transmissão multifatorial da ansiedade e da importância do diagnóstico e tratamento precoce da mesma.
Descrição dos casos
O agregado familiar é constituído por cinco elementos, a matriarca e quatro filhos, um dos quais dependente financeiramente. Esta família pontua 14 na classificação socioecónomica de Graffar, tratando-se assim de uma família de classe média. Sob o ponto vista de fase de vida familiar, o facto de se tratar de uma família não nuclear impossibilita o enquadramento numa das fases do ciclo de vida de Duvall. Relativamente à funcionalidade, esta família considera-se altamente funcional, pontuando 7 no APGAR. Apesar de esta família ter sido criada e desenvolvida num ambiente matrimonial conflituoso, atualmente considera-se funcional, o que pode ser confirmado pelo facto de a maioria das relações ser harmoniosa e de proximidade.
Nesta família observa-se que a perturbação de ansiedade é multigeracional e de expressão diversa. O caso inicial conhecido encontra-se na geração I, havendo repetição da perturbação de ansiedade nas gerações II e III, com necessidade de tratamento para controlo da ansiedade em múltiplos elementos dessas gerações.
Mãe (indivíduo II.4)
M.F.L., 67 anos, raça caucasiana, natural do concelho de Braga. Mãe de nove filhos e viúva há sete anos. Quarto ano de escolaridade, trabalhou como empregada fabril, encontra-se reformada há cinco anos.
Antecedentes pessoais
Antecedentes psiquiátricos de distúrbio de ansiedade generalizada percecionada pela utente desde a terceira década de vida, mas apenas diagnosticada há vinte e sete anos, à semelhança da perturbação do sono. Foi diagnosticada com distimia há doze anos e teve episódio de luto patológico há sete anos, após morte do cônjuge. Por estes motivos, começou a ser orientada em consulta de psiquiatria no Hospital de Braga. M.L.F. encontra-se medicada com venlafaxina 75 mg qd, mirtazapina 30 mg qd, flurazepam 15 mg qd e lorazepam 5 mg qd.
Contexto de ansiedade familiar percecionado
Mãe e duas irmãs medicadas com ansiolíticos. Ainda assim, nega perceção de transmissão verbal, não verbal ou comportamental de ansiedade pelos progenitores ou irmãos.
Contexto de ansiedade pessoal
O quadro de ansiedade iniciou-se pela terceira década de vida. A utente nega sintomatologia ansiosa enquanto criança ou adolescente, bem como perceção de transmissão verbal, não verbal ou comportamental pelos progenitores ou irmãos. Reconhece que o início da perturbação ansiosa coincidiu com os episódios de violência física e psicológica por parte do marido, a qual agravou posteriormente com a institucionalização dos seus netos M.G. e T.G. (indivíduo IV.2 e 3) e, mais tarde, pela morte do cônjuge. M.L.F. confidencia que a ansiedade se manifestava por estado de alerta constante com necessidade de antecipação das situações e controlo, com evicção de situações novas, sensação de inquietude e perturbação do sono. À data, a utente identifica a perturbação do sono como sintoma predominante e com mais impacto negativo no quotidiano. Os filhos acrescentam que a utente tem vindo a desenvolver intolerância a comentários críticos, demonstrada por inquietude e tremor. Esta psicopatologia tem levado M.L.F. a isolar-se socialmente e a afastar-se dos filhos, o que contribui para o agravamento e perpetuação deste quadro. A filha, M.C.S., acrescenta que o desemprego e gastos excessivos na adição tabágica e alcoólica do filho M.S. tem contribuído para o agravamento desta psicopatologia. Atualmente pontua 19 na escala de Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS), 11 na escala da ansiedade e 8 na escala da depressão, concluindo-se que tem uma perturbação clinicamente significativa de ansiedade e valores limite para depressão, o que corrobora o diagnóstico de ansiedade generalizada e distimia.
Filho (indivíduo III.3)
M.S., 41 anos, divorciado há cinco anos, vive com a mãe e três irmãos. Com o 9.º ano de escolaridade, trabalhou numa empresa de construção de infraestruturas para eventos, estando neste momento desempregado devido ao incumprimento do horário de trabalho e falta de empenho.
Antecedentes pessoais
Antecedentes de cefaleias de tensão desde há dez anos, distúrbio de ansiedade identificado pelo próprio desde a segunda década de vida, mas apenas diagnosticado há dez anos, à semelhança da perturbação do sono. Tem hábitos tabágicos (27 UMA) e alcoólicos (650 gr/álcool/dia). Encontra-se medicado com bisoprolol 5 mg qd, sertralina 100 mg qd, amitriptilina 25 mg qd, diazepam 10 mg tid e ciamemazina 100 mg qd. M.S. foi acompanhado em psiquiatria há sete anos, tendo perdido seguimento após múltiplas faltas.
Contexto de ansiedade familiar percecionado
Este descreve episódios maternos de tremor das mãos e vocal que presenciava regularmente durante a infância. Refere inflexibilidade por parte da mãe, sobretudo durante a sua adolescência, no que concerne à sua participação em atividades diferentes. Refere que o pai foi bastante ausente durante toda a infância e adolescência e que, excetuando os episódios de violência dirigidos à sua mãe, era uma pessoa bastante calma, empática, não demonstrando violência para com os filhos.
Descrição de perturbação ansiosa
O distúrbio de ansiedade terá sido inicialmente percecionado pelos dezassete anos, mas apenas diagnosticado há dez anos. O utente atribui maior importância às manifestações físicas e psíquicas de ansiedade materna na génese da sua ansiedade do que aos eventos de violência doméstica presenciados. Numa fase inicial a ansiedade manifestou-se sob a forma física, com palpitações, sensação de dispneia e cefaleias de tensão. Desde há cinco anos, após o seu próprio processo de divórcio, iniciou quadro de perturbação de sono que, em conjugação com as manifestações físicas prévias, tem impossibilitado manter um emprego estável e impulsionado o abuso de tabaco e o consumo excessivo de álcool. M.S. não reconhece o consumo excessivo de álcool, utilizando-o em conjugação com o tratamento farmacológico para alívio da ansiedade do quotidiano. Neste caso, a psicopatologia tem levado à disfuncionalidade laboral e ao abuso de substâncias nefastas; por outro lado, os gastos excessivos e consecutivas discussões com as irmãs, M.C.S. e R.S., têm promovido a perpetuação e agravamento da patologia ansiosa. À data de hoje, pontua 18 na HADS, 14 pontos na escala de ansiedade e 4 na escala de depressão, depreendendo-se que tem uma perturbação clinicamente significativa.
Filha (indivíduo III.12)
M.C.S., 31 anos, vive com a mãe e três irmãos. Estudou até ao 9.º ano, trabalha como empregada de limpeza.
Antecedentes pessoais
Período de perturbação ansiosa há treze anos, medicada com mexazolam 1mg em SOS. Sem história de seguimento hospitalar.
Contexto de ansiedade familiar percecionado
Descreve igualmente episódios maternos de tremor das mãos e vocal regularmente durante a infância. Identifica reações de excesso de alarmismo em relação a situações do quotidiano que pudessem ser diferentes do habitual, como convívios com amigos fora de casa, condução de automóveis, viagens para fora da cidade, entre outras. Corrobora a ausência do pai durante toda a infância e adolescência e, contrariamente ao irmão, considera o pai uma pessoa distante e conflituosa.
Descrição de perturbação ansiosa
A utente descreve as manifestações físicas e psíquicas da ansiedade materna e reconhece que estas, à semelhança dos episódios de violência doméstica presenciados, contribuíram para a génese da sua ansiedade. Não chegou a ser seguida em psiquiatria ou psicologia. À semelhança do irmão, iniciou quadro de ansiedade com cefaleias de tensão e palpitações, as quais motivaram diversos episódios de ida ao serviço de urgência hospitalar. Há cerca de seis anos, iniciou episódios de dispneia e sensação de morte iminente, com duração de poucos minutos. Numa fase inicial estes episódios tiveram grande impacto na sua vida, limitando as atividades de vida diárias, com evicção dos locais e situações onde esses episódios ocorreram. Nos últimos anos teve apenas um episódio de pânico, reconhecendo que as técnicas de relaxamento têm tido um impacto positivo no controlo dos seus sintomas. Desconhece eventos específicos que tenham favorecido a instalação da perturbação ansiosa e perpetuação da mesma. Pontua 11 na HADS, 8 pontos na escala de ansiedade e 3 na escala de depressão; portanto, encontra-se numa situação limite para a ansiedade.
Comentário
Um elevado número de estudos de famílias, semelhantes a este, evidencia uma inegável agregação familiar das perturbações de ansiedade major, incluindo a perturbação de pânico, a perturbação de ansiedade generalizada, as fobias específicas e a agorafobia. A transmissão de psicopatologia do foro ansioso entre as diferentes gerações desta família é notória. Embora o pai de M.F.S. tenha sido medicado com ansiolíticos, esta nega componente ambiental de ansiedade proporcionado pelo mesmo. Contudo, a presença de perturbação ansiosa em dois dos irmãos apoia a predisposição genética da mesma. Durante a vida a utente teve diversos eventos ansiogénicos: violência doméstica, institucionalização dos netos e morte do cônjuge. A filha M.C.S. acrescenta que o desemprego e consequente dependência financeira do filho M.S., bem como os gastos extraordinários em álcool e tabaco, têm constituído um fator ansiogénico para todos os elementos do agregado familiar, pelo que acredita que tenha impacto importante no agravamento da perturbação ansiosa da progenitora. A conjugação da componente genética e de todos os eventos ansiogénicos despoletaram e têm vindo a agravar, respetivamente, a perturbação de ansiedade da matriarca.
A transmissão de perturbação ansiosa da geração II para III não parece ser homogénea, uma vez que apenas dois dos filhos manifestam esse tipo de sintomatologia, os quais ainda pertencem ao agregado familiar da matriarca. Embora partilhem parte da componente genética e tenham sido expostos ao mesmo ambiente familiar, outros fatores individuais e eventos de vida influenciaram a manifestação desta psicopatologia nuns em detrimento de outros. No caso de M.S. e M.C.S., o ambiente comum de violência familiar aliado à expressão de ansiedade materna, através da componente não verbal da expressão física de ansiedade, instrucional pelo alarmismo para as diferentes situações de perigo que surgiam ao longo do dia e comportamental pela evicção de situações novas, estimulou a sintomatologia ansiosa. A perpetuação do casamento, aliado ao atraso de quase uma década no diagnóstico de perturbação ansiosa generalizada e início do respetivo tratamento farmacológico e não farmacológico, favoreceu a transmissão desta psicopatologia. Embora a génese da perturbação de ansiedade e os sintomas iniciais de ambos os filhos, M.S. e M.C.S., terem sido comuns, a predisposição individual, a personalidade e os eventos ansiogénicos subsequentes fizeram com que se moldassem de forma distinta, quer na manifestação da ansiedade quer na gestão da mesma. Por um lado, M.S. tornou-se refém da sua patologia ansiosa, a qual, em conjunto com os hábitos aditivos que foi adquirindo, desestabilizou a sua atividade profissional e social, tornou-o ele próprio, neste momento, um fator ansiogénico familiar adicional. A contribuição desse fator para a atual perturbação ansiosa clinicamente significativa de M.F.S. e M.S., identificada através da escala HADS, torna o acompanhamento clínico e ajuste terapêutico importante. Por outro lado, M.C.S. adotou estratégias internas de gestão da ansiedade e conseguiu manter-se funcional do ponto de vista profissional e social.
À semelhança desta família, acredita-se que muitas famílias portuguesas reúnem as mesmas características e que ainda não é dada a devida atenção a esta cadeia de transmissão de psicopatologia. A perturbação de ansiedade é uma patologia cada vez mais frequente na população mais jovem, a sua transmissão intergeracional resulta da interação entre fatores de risco genéticos, ambientais e também da resiliência individual ou da falta dela. 11,19-21 Apesar das dificuldades em identificar genes específicos, a componente hereditária destas patologias parece ser inquestionável, pelo que a procura ativa de fatores familiares que aumentem o risco de desenvolvimento de perturbação de ansiedade e valorização da perturbação de ansiedade como psicopatologia com grande impacto individual, familiar e social é fundamental. Ao diagnosticar e intervir, através da farmacoterapia e intervenção por psicologia clínica adequada e celeremente as perturbações de ansiedade numa geração, podemos reduzir a prevalência das mesmas nas gerações futuras. 1