Introdução
A síndrome de Pseudo-Meigs é caracterizada por ascite e/ou efusão pleural e um tumor ovárico que não fibroma, bem como aumento dos níveis séricos de cancer antigen (CA)-125.1,(9 Em cerca de 5% dos casos associa-se a Struma ovarii. (1,(4,(8-(10 À semelhança do que acontece na síndrome de Meigs, espera-se a resolução espontânea da ascite e normalização dos níveis de CA-125 após remoção do tumor. (2,(4,(6,(8,(10
A maioria dos casos de síndrome de Pseudo-Meigs é incorretamente diagnosticada como neoplasia maligna do ovário, sendo as doentes submetidas maioritariamente a histerectomia total e anexectomia bilateral. (1, (4, (8
Embora seja uma apresentação rara, deve ser considerada como diagnóstico diferencial em doentes que apresentam a tríade composta por massa anexial, ascite e aumento dos níveis séricos de CA-125. (1, (4, (7-(10 Torna-se, por isso, importante lembrar esta síndrome como hipótese diagnóstica e criar estratégias de diagnóstico mais apuradas, de modo a poder optar por um procedimento cirúrgico mais conservador, nomeadamente a ooforectomia homolateral laparoscópica.
Este caso concreto apresenta algumas particularidades, como o facto de o derrame pleural associado ocorrer à esquerda, apesar de na literatura ser descrito como mais frequentemente observado à direita, e os implantes peritoneais descritos como metástases, acrescentando um dado de mau prognóstico, tendo a doente sido submetida a histerectomia com anexectomia bilateral.
Descrição do caso
Utente do sexo feminino, 67 anos, caucasiana, casada, com o 4.º ano de escolaridade, reformada (trabalhadora agrícola). Como antecedentes pessoais apresenta hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade, insónia, patologia osteoarticular (hérnias discais e artrose da coluna a nível cervical, dorsal e lombar) e doença venosa crónica dos membros inferiores. Salientam-se ainda os antecedentes de tiroidectomia total em 2015 (por diagnóstico de bócio multinodular em 2012) e colecistectomia laparoscópica em 2017 (por colelitíase). Refere menarca com cerca de 13 anos, ciclos regulares e sem queixas associadas. Nunca usou anticoncecionais hormonais. Teve duas gravidezes e tem dois filhos. Menopausa aos 52 anos. Sem alergias medicamentosas conhecidas ou antecedentes familiares de relevo. Encontra-se habitualmente medicada com: atorvastatina 40 mg id, ramipril 2,5 mg id, trazodona 150 mg id e levotiroxina sódica 0,1 mg id e tem o Programa Nacional de Vacinação cumprido, sem vacinas extraprograma.
A utente integra uma família alargada, classe social IV (média-baixa) de acordo com a escala de Graffar, com residência própria, moradia, em bom local, com água canalizada, saneamento adequado e distribuição de luz e gás. Cozinha e casa de banho e equipadas com material essencial, quartos com mobília adequada. Tem dois filhos e três netos, que vivem relativamente perto. Considera ter um apoio adequado da família próxima e dos amigos.
Recorre à consulta de doença aguda em abril/2019 por um quadro de desconforto abdominal e aumento de peso, que relacionava com o facto de se “sentir inchada” (sic). Ao exame objetivo apresentava apenas edemas periféricos, sem outras alterações relevantes. Foi feito aconselhamento de medidas dietéticas e posturais para alívio sintomático e medicada com furosemida 40 mg id e um suplemento alimentar com o objetivo de aliviar as queixas relacionadas com a sensação de enfartamento.
Cerca de dois meses depois, em consulta de vigilância agendada pela médica assistente para avaliação da evolução das queixas, a utente apresentava novamente fadiga, edema, ascite e desconforto abdominal, sem alívio com as medidas introduzidas na consulta anterior. Objetivou-se deterioração do estado geral, com cansaço fácil e aumento de peso (de 96 kg para 102 kg), sem outros achados relevantes ao exame objetivo realizado. Solicitou-se eletrocardiograma e ecocardiograma para avaliação da função cardíaca e exclusão de patologia que pudesse justificar o edema e astenia, endoscopia digestiva alta e ecografia abdominal para avaliar as queixas de desconforto abdominal referidas pela doente, ecografia ginecológica (uma vez que se objetivava ascite em possível relação com patologia deste foro) e avaliação analítica após um mês. Suspendeu o suplemento alimentar e a furosemida, uma vez que a utente revelou não adesão à furosemida pela urgência urinária e incómodo sentido com este fármaco. Foi então medicada com torasemida 10 mg id na tentativa de minimizar o efeito relatado pela doente e aumentar a adesão à terapêutica para alívio sintomático.
Um mês depois, em consulta agendada para avaliação dos exames realizados, a utente mantinha a sintomatologia, com alívio parcial com o último fármaco introduzido, mas mantendo exame objetivo sobreponível. Relativamente aos resultados dos exames complementares salientavam-se: eletrocardiograma com ritmo sinusal, 92 batimentos por minuto, sem outras alterações relevantes e ecocardiograma revelando mínimo derrame pericárdico, redução do relaxamento ventricular, derrame pleural esquerdo e líquido peritoneal. A endoscopia digestiva alta apresentava apenas gastropatia superficial, enquanto a ecografia abdominal mostrava volumosa ascite de conteúdo não puro que envolvia vários recessos abdominais e a ecografia ginecológica descrevia endométrio com líquido retido no fundo e separando as duas vertentes em 7 mm, sendo visível na área anexial direita imagem quística medindo 176 mm, multiloculada com área sólida e septações, com elevado grau de suspeição de lesão anexial direita. O estudo analítico não apresentava alterações, nomeadamente com TSH = 5,424 mUl/L (valores referência 0,35-5,50) e T4L = 1,34 ng/dL (valores de referência 0,80-1,76).
O caso foi então discutido com um colega especialista em ginecologia e obstetrícia, tendo sido dada indicação para referenciação urgente para consulta de ginecologia do hospital da área de residência, realização de uma tomografia computorizada (TC) toraco-abdomino-pélvica para melhor esclarecimento e marcadores tumorais CA-125 e antigénio carcino-embrionário (CEA).
Aproximadamente dois meses mais tarde, a utente regressa à consulta para observação dos resultados dos exames pedidos e informação dos cuidados de saúde secundários. A TC toraco-abdomino-pélvica evidenciava derrame pleural esquerdo, em quantidade moderada, ascite abdominal grave sob tensão, metástases peritoneais com infiltração do grande epiploon e tumor do ovário direito misto com 95 mm de diâmetro e calcificações parietais. Não foi possível ter acesso aos resultados dos marcadores CA-125 e CEA. A utente passou a ser acompanhada no IPO e encontrava-se a aguardar cirurgia.
Com o rápido agravamento do estado geral da utente e os achados exuberantes dos exames complementares de diagnóstico, a utente aparentava ter um mau prognóstico. Procurou-se, por isso, apoiar a utente e a família sempre que se mostrou necessário.
Enquanto aguardava a intervenção cirúrgica teve necessidade de realizar duas paracenteses, uma com drenagem de 4 L de líquido ascítico e outra com drenagem de 5 L. Por agravamento do cansaço e sintomas de novo, dispneia e náuseas, foi encaminhada ao serviço de urgência do hospital da área de residência.
Em novembro/2019 a utente foi submetida a laparoscopia diagnóstica, posteriormente convertida em laparotomia, tendo sido realizada histerectomia total com anexectomia bilateral e omentectomia, com colheita de material biológico para biópsia. Foram ainda realizadas drenagem de 13 litros de ascite e toracocentese com saída de 600 mL de líquido sero-fibrinoso. Verificou-se a resolução completa do quadro, sem doença residual. Nesta data, o valor de TSH era de 38 mUl/L e o de T4L era de 1,18 ng/dL.
Posteriormente, o exame histológico revelou Struma ovarii benigno com tecido tiroideu e ósseo, compatível com diagnóstico de síndrome de Pseudo-Meigs.
Após a intervenção cirúrgica e o conhecimento do diagnóstico, com evidência de evolução favorável e bom prognóstico, foi mantida vigilância em consulta, inicialmente de forma bimestral para um acompanhamento mais atento a eventuais alterações ou reações adversas que pudessem surgir. Após um período de oito meses, em que os valores de TSH mostraram um perfil descendente até à sua normalização e a utente se encontrava assintomática, sem qualquer intercorrência, a frequência da vigilância passou a ter um caráter semestral.
Comentário
A síndrome de Meigs é rara, composta por uma tríade de fibroma ovárico, hidrotórax e ascite. 1,4,7-10 A ascite deverá resolver espontaneamente após remoção cirúrgica do tumor ovárico. 1,2,4,7-9
Existem vários mecanismos que podem explicar a formação de ascite, incluindo a obstrução do sistema linfático pelas dimensões e localização do tumor, irritação peritoneal, libertação de toxinas e outros pró-inflamatórios, hipoalbuminémia e diminuição da drenagem venosa e linfática. 4,6-7 No entanto, a verdadeira etiologia da ascite e da efusão pleural permanece desconhecida. 4,6,8-9
O Struma ovarii é uma variante de teratoma, que é constituído em mais de metade por tecido tiroideu. 1-10 Esta é uma entidade rara, representando apenas 0,3 a 1% dos tumores do ovário. 2,4-6,8 Na maioria das vezes é benigna e ocorre mais frequentemente nas mulheres em pré-menopausa, na quinta ou sexta década de vida. 1-10 Os sintomas mais comuns incluem distensão e dor abdominal, massa abdominal palpável, alterações menstruais e, em 5 a 8% dos casos, pode verificar-se hipertiroidismo, 1-8,10 sendo a ascite identificada em cerca de 20% a um terço das mulheres.6,8-10 O Struma ovarii tem um baixo potencial de malignidade, sendo que apenas cerca de 5% dos casos são malignos. 1-2,6-10 Em caso de malignidade deve ser classificado segundo o tipo de células tiroideias presentes. 4,10
Designa-se também Strumosis peritoneal uma condição benigna associada a vários implantes peritoneais, de diferentes tamanhos, com tecido tiroideu similar ao Struma ovarii e pode cursar com tiroxicose. 6 No caso descrito estes implantes foram erradamente diagnosticados como metástases peritoneais.
Nem sempre é fácil caracterizar os tumores do ovário pela imagem. Habitualmente são consideradas malignas as lesões que tenham paredes espessas e septos (> 4 mm), alterações necro-hemorrágicas, calcificações e localizações secundárias (metástases peritoneais, ascite ou adenomegalias). 2
Quando uma massa sólida do ovário apresenta características de tecido tiroideu, isto é, hiperecogénico na ecografia e hiperdenso na TC, o diagnóstico diferencial de Struma ovarii deve ser considerado. 3,5 Este normalmente apresenta-se sob a forma de um quisto misto, com septos, maioritariamente unilateral e com moderada hipervascularização na ecografia com doppler relacionada com maior vascularização do tecido tiroideu comparada com o resto das componentes do teratoma. 2,5,8 A ecografia da utente não fazia referência a hipervascularização, o que dificultou ainda mais o diagnóstico precoce de Struma ovarii.
Embora na maioria das vezes se trate de um tumor benigno, a suspeita de uma condição maligna é apropriada, uma vez que o diagnóstico pré-operatório de Struma ovarii é muito difícil. 1-7,9
A histerectomia total com anexectomia bilateral é a abordagem terapêutica preconizada, uma vez que muitas vezes a cirurgia é realizada e o diagnóstico é extemporâneo através da histopatologia. 1-2,4-6,8-9 É importante considerar este diagnóstico no pré-operatório, de modo a poder optar por um procedimento mais conservador (a ooforectomia homolateral laparoscópica). 2,5-6 Quando disponível, o diagnóstico intraoperatório pode ajudar a prevenir a realização de uma cirurgia mais extensa. 4
Alguns meios complementares de diagnóstico, como a cintigrafia com 131I e PET/TC com 18F-FDG, podem ajudar no diagnóstico diferencial. 5 Uma cintigrafia com 131I positiva pode ser indicativa de Struma ovarii. Este pode ser classificado como benigno se não captar 18F-FDG na PET/CT, ao contrário do que manifesta características de malignidade. 5 Assim, a combinação destes dois exames pode ajudar a esclarecer o diagnóstico pré-operatório e assim evitar cirurgia extensa desnecessária. 5
Os níveis de CA-125 têm baixa especificidade para os tumores epiteliais do ovário, uma vez que se encontram elevados em vários tipos de tumores malignos e benignos do ovário. 4,6,9 Pode dever-se à distensão abdominal por ascite, bem como a absorção linfática de ascite com elevada concentração de CA-125. Deste modo, os níveis de CA-125 dificilmente se relacionam com malignidade. 6-7,9 Assim, a sua medição por rotina no Struma ovarii foi classificada como de baixo significado clínico. 6 Torna-se, por isso, importante a existência de uma abordagem multidisciplinar e o desenvolvimento de uma estratégia que permita otimizar o diagnóstico desta patologia. 1,5
Este relato de caso enfatiza a existência de patologia ginecológica benigna que mimetiza lesões malignas, quer na sintomatologia quer nos exames laboratoriais e imagiológicos. São síndromes raras, mas é importante não serem esquecidas e serem equacionadas como diagnóstico diferencial.
Apesar de a utente ter realizado tiroidectomia total em 2015, não foi realizada ecografia pós-operatória para confirmar que todo o tecido tiroideu teria sido removido, o que pode constituir uma limitação neste relato de caso. Infelizmente não foi possível ter acesso aos níveis de CA-125 pré-operatórios; no entanto, no seguimento pós-operatório estes níveis estiveram normais.
Sendo uma patologia tão rara, em que há poucos casos descritos, este relato pode constituir uma mais-valia, aumentando o conhecimento sobre esta síndrome e as suas formas de apresentação.
A utente continua até à data sem queixas relacionadas com este episódio ou queixas de novo. Refere que o apoio que teve, quer ao nível dos cuidados de saúde primários quer ao nível dos cuidados hospitalares, foi adequado e importante. Foi um período difícil, de muitos medos e ansiedade e encontra-se aliviada por os seus receios não se terem concretizado.