Não escolhemos a forma do nosso destino, mas podemos dar-lhe conteúdo. O que procura aventura encontrá-la-á - à medida da sua coragem. O que procura o sacrifício, será sacrificado - na medida da sua pureza.(Dag Hammarskjold, Markings, 1964)
Na senda da vida há os que seguem o caminho e há os que o constroem, identificando as metas do amanhã e desenvolvendo os processos de as atingir. São muitas vezes mal-entendidos no seu tempo, mas o futuro chamar-lhes-á visionários, e são a verdadeira mola da sociedade. O Professor Alexandre Sousa Pinto é uma destas pessoas, para sempre ligado ao nascimento, implementação e amadurecimento da Medicina Geral e Familiar em Portugal.
Fez o seu percurso académico na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, cidade que o viu nascer, onde se licenciou em 1960 com a classificação de 17 valores e se doutorou em anatomia em 1971, com distinção, com a tese A área auditiva do córtex cerebral. Prestou provas de agregação no grupo da morfologia, em 1979, com classificação de muito bom, sendo nomeado Professor Catedrático de Anatomia.
Em 1984 assume o cargo de presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde estaria até 1987, e cria o primeiro serviço universitário em Portugal dedicado à Clínica Geral. O Departamento de Clínica Geral foi aprovado pelo Professor Pinto Machado, então Secretário de Estado do Ensino Superior, e formalizado pela Portaria n.º 872/84, de 24 de novembro, numa clara inovação em relação ao conservadorismo que caracterizava a organização geral da Universidade Portuguesa, abandonando o conceito dinástico da disciplina e da respetiva regência para o de integração científica, pedagógica e de extensão sobre uma determinada área de conhecimento, capaz de alavancar sinergias e oportunidades de inovação e desenvolvimento. Constituiu uma unidade orgânica permanente de ensino de pós-graduação, de investigação, de prestação de serviços à comunidade e de divulgação cultural no âmbito da medicina, no que diz respeito à clínica geral, com competências específicas no ensino pré-graduado (“sempre que para tal seja solicitado”). Esta responsabilidade no ensino veio a concretizar-se na reforma curricular de 1986 e na criação da disciplina de Medicina Comunitária no 6.º ano médico, de que foi regente desde 1989, e da disciplina de Medicina Preventiva no 2.º ano em 1994.
O Departamento de Clínica Geral foi um apoio científico e pedagógico fundamental na estruturação da especialidade recentemente criada de Clínica Geral, acompanhando e promovendo o seu crescimento e desenvolvimento para a atual Medicina Geral e Familiar moderna, basilar nos processos de saúde das pessoas e do país e ativa na atividade assistencial, nos processos organizacionais e na produção científica.
Em 1989 inicia o ensino pré-graduado de Clínica Geral fora do hospital escolar. Em 1994 inicia o sistema de residência, em que os estudantes são expostos às condições normais de trabalho dos médicos especialistas num centro de saúde. Em 1995 conclui o primeiro doutoramento nesta área em Portugal como orientador. Em 1997 inicia o ensino da Medicina Geral e Familiar em ambiente rural, criando a oportunidade dos futuros médicos aprenderem os desafios do exercício fora dos centros urbanos. Em 1999 inicia o projeto «Tubo de ensaio»,1-2 num protocolo assinado com a ARS Norte, garantindo a prestação de cuidados de saúde primários idênticos aos prestados pelos outros centros de saúde a uma população de até 25.000 utentes na cidade do Porto com autonomia organizativa, funcional, técnica e de gestão, incluindo a financeira, ao mesmo tempo que promovia a inovação na administração e organização desses cuidados3 e o ensino e formação pré e pós-graduada dos profissionais dos cuidados de saúde primários. O Centro de Saúde de S. João foi a face assistencial deste projeto e testou muitos dos conceitos que estiveram na base da reforma dos Cuidados de Saúde Primários de 2006, ainda que a decisão do governo de então tenha deixado cair alguns dos aspetos mais inovadores. 4
Alexandre Sousa Pinto foi o obreiro. Nasce nas ciências básicas onde tem curriculum científico notável com múltiplas publicações e citações, larga intervenção no ensino com presença nos conselhos diretivo, científico e pedagógico da sua Faculdade, intervenção cívica significativa na sua passagem pela Secretaria de Estado da Investigação Científica e sublima-se na Medicina clínica. Consegue perceber a especificidade de uma Clínica Geral onde as primeiras preocupações são a pessoa do utente, em saúde ou doente, e a forma como ele vive a sua doença, ao contrário da perspetiva geral, à época, que focava em primeiro lugar a medicina das doenças, geralmente até apenas cada episódio de doença, e onde a consulta era o instrumento de trabalho privilegiado, ainda que desprovida da complexidade dos instrumentos e da eletrónica, que exigiam técnica específica de utilização e manuseio melindroso.
E este percurso é talvez o seu legado maior. A investigação básica, a translação de conhecimento, a tecnologia, a epidemiologia e as ciências humanas são a base da medicina científica, mas para a pessoa que consulta o médico o que realmente conta é esta capacidade de ouvir os seus problemas, de a compreender nas suas realidades e de a orientar nos percursos que terá inevitavelmente de fazer pelos serviços de saúde ao longo da vida. O Professor Alexandre Sousa Pinto compreendeu-o e contribuiu para que muitos outros o compreendessem também, dentro e fora da especialidade.
Foi reconhecido como especialista em Medicina Geral e Familiar pela Ordem dos Médicos em 1997. Foi sócio honorário da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, onde foi Presidente da mesa da Assembleia Geral nos triénios 1996/1998 e 1999/2001. Foi Presidente da Academia Portuguesa de Medicina entre 2001 e 2006. Foi Overseas Fellow da Royal Society of Medicine em Inglaterra. Foi fundador e Presidente do Conselho Diretivo do Centro de Saúde de São João, face assistencial do Projeto «Tubo de Ensaio», de 1999 a 2006, ano em que se reformou.
Foi distinguido com a Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos pela sua atividade e mérito pessoal, profissional e académico no 19.º Congresso Nacional de Medicina, em Coimbra, em 2016.
Mais do que os prémios e os reconhecimentos institucionais fica o marco de um homem com um caráter, uma personalidade e um temperamento alicerçados por um conjunto de características que misturam a curiosidade pela inovação com a ética do exercício e com o empreendedorismo, que lhe permitiram fazer obra e escola num impulso, como escreveu, “que temos desde os primórdios da nossa espécie para ajudar outros humanos”. 5
Mostrou na sua vida profissional possuir qualidades de liderança, de gestão, de estratégia e de planeamento no domínio do ensino, da investigação e da prestação de serviços em Medicina, e particularmente em Medicina Geral e Familiar, que fazem dele um exemplo do que é o Ser Médico e o Ser Professor.