Introdução
A polimedicação é mais consensualmente definida como a utilização simultânea de pelo menos cinco fármacos no mesmo utente, assumindo-se como uma realidade proeminente na população idosa. 1 Em função das comorbilidades de cada doente, esta prescrição pode ser adequada e necessária, podendo, contudo, incluir fármacos potencialmente inapropriados face à situação clínica global do paciente. Em Portugal existem poucos estudos sobre a prevalência de polimedicação nos cuidados de saúde primários. Um estudo realizado no Norte do país revelou uma prevalência de polimedicação de 59,2%, sendo esta superior no sexo feminino relativamente ao masculino (62% vs 54,8%).2
A polimedicação pode associar-se a efeitos adversos, sobretudo em idosos, nomeadamente ao aumento do risco de quedas, interações medicamentosas, redução da adesão terapêutica, hospitalizações e mortalidade. 3 Para além dos riscos clínicos associados representa adicionalmente gastos acrescidos para o utente e para os serviços de saúde. 4
Existem ferramentas úteis que auxiliam os clínicos na decisão sobre as melhores opções terapêuticas e a desprescrição no doente idoso. Os critérios de Beers, da Associação Americana de Geriatria, representam uma dessas ferramentas, constituindo uma lista detalhada de classes farmacológicas potencialmente inapropriadas que devem ser evitadas nos idosos na maioria das circunstâncias ou em situações específicas. 5 Existem ainda os critérios de STOPP/START, que se organizam por sistemas fisiológicos e apresentam 81 critérios nos quais se deve considerar a suspensão de uma determinada terapêutica. 6
Os objetivos do presente estudo foram determinar a frequência de polimedicação na população com idade igual ou superior a 80 anos inscrita na USF em estudo, caracterizar os principais grupos farmacológicos potencialmente inapropriados mais prescritos e conhecer qual a perceção dos clínicos sobre a polimedicação na sua lista de utentes.
Método
Foi realizado um estudo observacional, transversal com vertente analítica, que decorreu em janeiro/2022, após parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte obtido em dezembro/2021. Foram incluídos no estudo todos os utentes inscritos na USF investigada com idade igual ou superior a 80 anos, excluindo os não frequentadores nos últimos três anos e os utentes sem registo de informação relativa a terapêutica farmacológica no programa SClínico® ou na plataforma de Prescrição Eletrónica Médica (PEM®). Os dados foram colhidos pelas investigadoras do projeto, tendo sido compilados numa base de dados anonimizada e encriptada no Microsoft Excel® para assegurar a confidencialidade dos dados.
As variáveis em estudo foram sexo, idade, número de medicamentos que constam da medicação habitual, classes de fármacos potencialmente inapropriadas prescritas de acordo com os critérios de Beers, nomeadamente anticoagulantes, antiagregantes, inibidores da bomba de protões (IBP), sulfonilureias, insulina, anti-inflamatórios não esteroides (AINE), benzodiazepinas e antidepressivos tricíclicos, acrescendo as estatinas. Os MF da unidade foram convidados a participar no estudo após consentimento informado livre e esclarecido, tendo respondido posteriormente a um questionário com vista a avaliar a sua perceção no que respeita à realidade da polimedicação na sua lista de utentes. A análise estatística foi realizada com recurso ao Microsoft Excel®.
Resultados
Do universo de 10.572 utentes inscritos na USF à data de colheita dos dados, 414 idosos apresentavam idade igual ou superior a 80 anos, tendo sido incluídos no estudo 386 utentes após aplicação dos critérios de exclusão. A idade média era de 85,5 anos, com 62% dos utentes a pertencerem ao sexo feminino. A frequência de polimedicação na amostra estudada foi de 79,5%, com uma média de 7,1±3,1 fármacos por utente. As estatinas corresponderam ao grupo farmacológico mais prescrito (64,2%) entre os pesquisados, com as benzodiazepinas e os IBP a constituírem as classes potencialmente inapropriadas mais utilizadas em igual proporção (35,0%), seguidas dos antiagregantes (28,8%) (Figura 1). Ainda assim, a maioria dos utentes da amostra integra na sua medicação habitual no máximo até duas das classes potencialmente inapropriadas entre as pesquisadas (86,5%) (Figura 2). Cinco médicos de família de entre os seis integrantes da equipa da USF aceitaram participar no estudo. Destes, três definiram corretamente polimedicação e evidenciaram uma perceção aproximada da realidade quanto à frequência na sua lista de utentes (Figura 3). A percentagem de utilização de benzodiazepinas foi sobrestimada por quatro clínicos e todos erraram na percentagem de utentes a realizar esta classe; a prescrição de anticoagulantes foi subestimada por três médicos contrariamente à percentagem de utilização de antiagregantes e sulfunilureias, sobrestimados em igual proporção (Tabela 1). Entre os principais obstáculos à desprescrição terapêutica, os clínicos destacaram as comorbilidades dos utentes, a pressão dos utentes/famílias para a prescrição, a falta de tempo na consulta e a interação com os cuidados de saúde secundários. Todos os médicos consideraram que a polimedicação é um problema na sua lista de utentes e que seria necessário terem mais formação nesta área.
Discussão/conclusão
A realização deste estudo permitiu caracterizar a realidade da polimedicação do utente muito idoso na USF em estudo, potenciando a consciencialização individual e da equipa para esta problemática. A prevalência de doentes polimedicados encontrada foi superior à relatada noutros estudos realizados em contexto de cuidados de saúde primários, 7-8 entre os quais o estudo de Castilho e colaboradores, que revelou uma frequência de polifarmácia na amostra de utentes com idade igual ou superior a 75 anos de 62,3%.9 Todos os médicos de família sobrestimaram a percentagem de utentes da sua lista medicados com benzodiazepinas. Esta sobrestimação da realidade poderá estar relacionada com a presença do indicador dos cuidados de saúde primários que procura monitorizar a prescrição prolongada de ansiolíticos, sedativos e hipnóticos, o que poderá contribuir para uma maior consciencialização dos clínicos face a esta classe terapêutica. A elaboração do presente estudo permitiu também evidenciar a necessidade de registos clínicos cuidados e completos, uma vez que muitos utentes não apresentavam de forma explícita a sua medicação completa registada nas plataformas. Uma das limitações do estudo foi o número de classes farmacológicas potencialmente inapropriadas pesquisadas e a não investigação da pertinência dos utentes se encontrarem a realizar essas terapêuticas. No entanto, o estudo permitiu discutir a temática da polimedicação do utente muito idoso com a equipa de saúde, sensibilizar os clínicos para a necessidade da reconciliação terapêutica e do combate à inércia da desprescrição, assim como ter representado um momento de autoavaliação dos médicos de família no que respeita a esta temática e do reconhecimento da necessidade de maior formação na área. As investigadoras concluem que é imperativo desenvolver estratégias de combate à polimedicação, nomeadamente com formação contínua na área da desprescrição terapêutica.