Introdução
O condiloma gigante acuminatum ou tumor de Buschke-Löwenstein é uma lesão tumoral que representa um estadio de progressão da doença de condiloma acuminado simples para carcinoma espinocelular.1 Está associado ao serotipo 6 e 11 do vírus do papiloma humano (HPV). 2 É uma lesão de crescimento indolente, podendo levar a um tumor localmente destrutivo, 3 pelo que a deteção precoce é de suma importância. Cerca de um terço das lesões tem potencial de transformação maligna em adenocarcinoma de células escamosas, sendo por isso a cirurgia radical o tratamento de eleição. 4
Os autores propõem-se relatar um caso clínico, com o objetivo de ilustrar a importância para a prática clínica da consulta de saúde da mulher em medicina geral e familiar na prevenção e deteção precoce de problemas de saúde com elevado impacto na qualidade de vida. Pretende-se ainda divulgar uma rara expressão da infeção por HPV, numa utente do género feminino sem aparentes fatores predisponentes.
Descrição do caso
Relata-se o caso de uma utente de 49 anos, sexo feminino, caucasiana, que exerce a profissão de assistente operacional de educação. É casada desde 1987, mora com o marido em residência própria, com quem considera ter uma excelente relação. O casal teve dois filhos: sexo feminino em 1988 e sexo masculino em 1991, ambos por parto eutócico; a família encontra-se na fase 7 do ciclo de Duvall. Como problemas de saúde apresenta fibromialgia e hipertensão arterial sem complicações. Apresenta também hábitos tabágicos de 15 cigarros/dia, com carga tabágica de 18 unidades/maço/ano. A sua lista de medicação crónica inclui: duloxetina 30 mg/dia, enalapril + hidroclorotiazida 20 mg + 12,5 mg, ciclobenzaprina em SOS e loflazepato de etilo em SOS. Tem o plano nacional de vacinação atualizado, não tendo realizado a vacina contra o HPV. Não apresenta antecedentes familiares relevantes para o caso clínico atual.
Quanto à sua história ginecológica salienta-se a menarca aos 11 anos, ciclos regulares de 28 dias, com cataménio de três dias com fluxo normal, coitarca aos 18 anos, um parceiro sexual (atual), método contracetivo progestativo oral, sem uso regular de preservativo e menopausa aos 48 anos. Nega seguimento regular em consulta de planeamento familiar ou de ginecologia, tendo realizado o último exame ginecológico e colpocitologia em 1994.
É acompanhada em consulta de reumatologia e em consulta de medicina geral e familiar (MGF) num hospital privado desde há vários anos. Em junho/2016 foi-lhe atribuída uma médica de família numa instituição pública, a quem começou a recorrer em situações de doença aguda, preferindo manter a sua vigilância de saúde com o seu médico assistente de MGF no hospital privado.
Em janeiro/2018 recorre a uma consulta de urgência com a sua médica de família, na instituição pública, por apresentar uma lesão vulvar e anal com cheiro fétido e ligeiro prurido. Nega dor local, alterações do trânsito intestinal, incontinência urinária ou fecal, retorragia ou hemorragia vaginal. Ao exame objetivo observam-se duas massas condilomatosas de grandes dimensões, uma lesão condilomatosa com 9 × 6 cm na região vulvar que ocupa todo o lábio esquerdo, estendendo-se desde a região supra-clitóris envolvendo o clitóris, com lesão sobreposta na face externa do pequeno lábio direito (Figura 1) e outra lesão condilomatosa com 5 × 7,5 cm que ocupa 360° da região perianal (Figura 2).
No exame ao espéculo, a vagina e o colo não apresentavam lesões macroscópicas. O exame objetivo mamário e do abdómen não apresentava alterações e não se palpavam adenomegalias inguinais.
Quando questionada há quanto tempo tinha estas lesões referiu que surgiram em 1992, tendo sido identificada a primeira lesão ao nível do grande lábio esquerdo durante o parto do segundo filho. Segundo a utente, foi referenciada a consulta de ginecologia após o parto, que classificou a lesão como um fibroma pêndulo, tendo-a tranquilizado. O último exame ginecológico que realizou foi em 1994, onde a lesão foi observada e, segundo a utente, não foi valorizada, tendo realizado também colpocitologia, cujo resultado foi negativo para lesão intraepitelial ou neoplasia maligna (NILM). Quando questionada sobre a evolução da lesão desde o último exame ginecológico, a utente refere que a lesão se manteve estável até ao ano 2015, com cerca de 2 cm de diâmetro, quando a mesma começou a crescer em sentido cefálico, tendo notado pela mesma altura uma saliência anal, que atribuiu a doença hemorroidária. Após a última menstruação, em maio/2017, verificou um crescimento abrupto das duas lesões. Durante a consulta explicou-se à utente as hipóteses diagnósticas e o circuito que iria iniciar para a avaliação diagnóstica e orientação terapêutica. Foi feita a colheita de colpocitologia em lâmina e referenciada com urgência à consulta de ginecologia do hospital de referência. O resultado da colpocitologia foi negativo para lesão intra-epitelial ou malignidade (NILM).
Na consulta de ginecologia realizou colposcopia que demonstrou achados de condilomatose que se estendia ao endocolo; a biópsia do colo evidenciou fragmentos de mucosa exocervical, com hiper e paraqueratose, alterações nucleares sugestivas de efeito citopático viral e sinais de cervicite crónica, sem evidência de lesão intraepitelial. Realizou serologias para outras IST, que foram negativas. Foi pedida ressonância magnética pélvica, que demonstrou uma lesão expansiva sólida, heterogénea, com captação de contraste, com 86 × 61 × 49 mm, ao nível da região vulvar anterior, com extensão profunda ao tecido lipomatoso perineal na linha média até à sínfise púbica, mas sem envolver esta estrutura óssea e sem sinais evidentes de envolvimento da uretra e da vagina. Verificou-se ainda a presença de outra lesão, com as mesmas características de sinal ao nível da região anal, medindo 76 × 40 × 39 mm, com extensão ao canal anal com envolvimento dos esfíncteres interno e externo, sem extensão ao reto; útero, anexos e bexiga sem alterações. A utente foi transferida para o hospital oncológico de referência.
No hospital oncológico, a utente foi observada por uma equipa multidisciplinar (ginecologia, cirurgia geral e cirurgia plástica) e foi submetida a vulvectomia radical modificada, com excisão de lesão perianal e da parede anterior do canal anal, plastia vulvar e perianal com retalhos cutâneos e colostomia derivativa de proteção. O exame anatomopatológico da peça operatória revelou uma lesão escamosa intraepitelial de baixo grau com displasia e efeito citopático viral relacionado com HPV do tipo 6. O período pós-operatório decorreu sem intercorrências, com colostomia funcionante, com boa evolução da cicatrização vulvar e anal, mas com estenose do orifício anal externo. Iniciou acompanhamento em consulta de estomaterapia para programa de dilatação controlada. Um ano após o início do seguimento, a utente foi submetida a cirurgia de encerramento da colostomia, que decorreu sem intercorrências. Atualmente mantém acompanhamento em consulta de cirurgia geral, tendo tido alta da consulta de cirurgia plástica e de ginecologia.
Ao longo do processo manteve um acompanhamento mensal com a sua médica de família, com a qual estabeleceu uma boa relação médico-doente. Ao longo destas consultas, a utente manifestou dificuldade em aceitar a sua imagem corporal logo após a cirurgia. Apesar de lhe ser explicado que estava com boa evolução da cicatrização da região vulvar e anal (Figura 3), a utente manteve a não aceitação ao longo do seguimento pós-intervenção, o que lhe causava um grande sofrimento psíquico.
A médica de família fez um ajuste da dose de duloxetina para 60 mg e iniciou bupropiom 150 mg. Por não se verificar melhoria do quadro emocional iniciou seguimento em consulta de psiquiatria e consulta de psicologia. Na consulta de psiquiatria foi feito ajuste terapêutico para duloxetina 90 mg e agendada nova consulta. No entanto, a utente abandonou o seguimento em psiquiatria, após uma única consulta, pois a mesma considerou que não foi estabelecida uma relação empática com o colega e que se sentia mais confortável em abordar este assunto com a sua médica de família. Quanto às consultas de psicologia manteve seguimento por três consultas, com periodicidade mensal, mas abandonou igualmente o seguimento. A utente preferiu manter o acompanhamento mensal com a sua médica de família, onde abordava a sua dificuldade em aceitar a sua imagem corporal após a cirurgia, que se mantém até ao presente. Nestas consultas foi também abordado o tema da sexualidade, em que a utente referiu que o casal mantinha uma boa relação emocional; sentia-se apoiada pelo marido, com quem mantinha uma relação sexual satisfatória tanto previamente como após a intervenção cirúrgica. Por outro lado, a utente referiu uma boa aceitação da colostomia, cumprindo os cuidados em consulta de estomaterapia e posteriormente o acompanhamento após o encerramento da colostomia. A médica de família colocou a hipótese diagnóstica de perturbação de adaptação com humor deprimido, tendo em conta os critérios propostos pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais-V (DSM-V). 5 Foi ainda colocada a hipótese diagnóstica de perturbação dismórfica corporal dado o curso crónico da sintomatologia. Assim, foi mantido o seguimento regular da utente para acompanhar a evolução do quadro clínico dado que em algumas situações as perturbações de adaptação podem ter um curso crónico e até evoluir para outras perturbações psiquiátricas, requerendo uma intervenção clínica multidisciplinar em conformidade. 6
Comentário
O tumor de Buschke-Löwenstein é uma forma rara de carcinoma de células escamosas associado ao serotipo 6 e 11. 2 Pode ocorrer coinfeção de vários serotipos nas lesões condilomatosas. 1 O tumor de Buschke-Löwenstein representa um estadio de progressão do condiloma acuminado simples para carcinoma de células escamosas. 1 Como acontece nas restantes doenças causadas pelo HPV, esta evolução depende da interação entre o efeito citopático do vírus e as características do indivíduo. 1 Os fatores facilitadores para esta progressão são o tabagismo, o uso de contraceção oral, a gravidez, a diabetes mellitus, outras doenças sexualmente transmissíveis e um estado de imunossupressão do indivíduo. 3 A transformação maligna é mais característica em indivíduos imunocomprometidos. 2 As lesões podem surgir na glande e prepúcio, parecendo existir uma redução de risco de infeção por HPV em homens circuncisados. 2 As lesões podem também surgir na uretra, vulva, região perianal e anal. 2 O tumor caracteriza-se por uma lesão condilomatosa do tipo “couve-flor”, de grande dimensão e exsudativa. 3 Pode apresentar uma extensa invasão locorregional, com destruição dos tecidos adjacentes levando a um elevado impacto na qualidade de vida do indivíduo. 3 O tratamento gold-standard do tumor de Buschke-Löwenstein é a excisão tumoral alargada com margens cirúrgicas livres. 7 Tem um muito baixo potencial de metastização, mas o risco de progressão para carcinoma de células escamosas situa-se entre os 30% e 50%.4 O risco de recorrência é elevado, por volta de 50%, sendo por isso de extrema importância as margens cirúrgicas livres para o bom prognóstico da doença. 7
A identificação precoce e tratamento das lesões de condiloma acuminado simples previne o desenvolvimento do tumor de Buschke-Löwenstein. Assim, a saúde preventiva assume um papel fundamental na saúde individual, bem como na saúde pública. Em 1990 entrou em vigor o primeiro Plano Nacional de Vigilância Oncológica, que definiu como área prioritária o rastreio do cancro colo do útero e do cancro da mama ao nível dos cuidados de saúde primários. 8 No entanto, a sua aplicação não era uniforme nas diversas regiões do país e os fatores apontados para esta disparidade eram a não uniformização de conceitos dentro do mesmo sistema de saúde em Portugal, tanto por parte dos médicos como por parte dos utentes do sistema, gerando uma fraca adesão na década de 90. 8 Nas décadas seguintes verificou-se um maior investimento e divulgação da saúde preventiva, com os sucessivos planos nacionais implementados, bem como através da reforma dos cuidados de saúde primários com início formal em 2005. No caso clínico apresentado, a utente afirma que a lesão vulvar surgiu em 1992, identificada durante o parto do segundo filho, motivo pelo qual foi referenciada para consulta de ginecologia. A utente alega que nessa consulta foi colocado o diagnóstico de fibroma pêndulo. Uma das limitações deste caso clínico prende-se com a ausência de registo clínico médico disponível, bem como a ausência de avaliação da lesão por anatomia patológica, perante a qual não é possível perceber se a lesão descrita em 1992 correspondia a um condiloma acuminado simples ou a um fibroma pêndulo. No entanto, o seguimento desta utente em consulta de saúde da mulher nos cuidados de saúde primários poderia ter permitido uma identificação precoce da lesão de condiloma e alterado a história natural da doença.
Por outro lado, é importante a responsabilização dos utentes na gestão da sua saúde. Como definido pela Lei de Bases da Saúde, 9 os cidadãos são os primeiros responsáveis pela própria saúde, individual e coletiva, tendo o dever de a defender e promover. Para tal, é necessário investir na literacia em saúde, capacitar os utentes com conhecimento e competências que lhes permitam controlar decisões que afetam a sua saúde. Neste caso, a utente poderia ter recorrido aos cuidados de saúde mais precocemente, nomeadamente quando reconheceu o crescimento da lesão vulvar em 2015 e, posteriormente, em 2017 com o crescimento abrupto das lesões. A utente reconheceu a sua corresponsabilidade quando foi colhida a história clínica e consentiu na publicação do seu caso clínico de forma a ilustrar a importância da educação para a saúde na saúde preventiva. Promover o empowerment e a capacitação dos utentes representa uma componente fundamental da prestação integrada de cuidados em saúde preventiva e o médico de família tem um papel fundamental na concretização dos mesmos. 10
O estabelecimento de uma boa relação médico-doente constitui um dos pilares para facilitar a prestação de cuidados de saúde. A utente referiu à sua médica de família que não recorreu ao seu médico assistente de MGF no hospital privado quando verificou o crescimento abrupto das lesões por ter receio que a sua relação com o médico ficasse comprometida, visto que tinha vergonha de abordar a vertente ginecológica nas suas consultas. Segundo a utente, a mesma só recorreu aos cuidados de saúde quando a sua qualidade de vida ficou comprometida, nomeadamente devido ao cheiro fétido das lesões. Ao longo deste processo foi construída uma relação médico-doente entre a utente e a médica de família, tendo sido desmistificada a abordagem da saúde da mulher e da sexualidade feminina.
As várias valências de consulta em MGF permitem uma abordagem holística do utente e da família, numa visão integrativa de todas as dimensões humanas. A cirurgia com remoção de uma extensa área corporal e a colostomia condicionaram uma alteração da imagem corporal da utente, com grande impacto na sua saúde mental e na sua qualidade de vida. Ao longo das consultas, quer no hospital oncológico quer com a sua médica de família, a utente manifesta desagrado quanto à sua imagem corporal na região pélvica, apesar de não ter existido complicações com o retalho cutâneo da plastia vulvar e anal. Assim, a perceção da utente quanto à sua imagem corporal condiciona um grande sofrimento psíquico, com necessidade de ajuste terapêutico e acompanhamento em consulta de psicologia e psiquiatria. Ao longo deste processo foi explorado o motivo do desagrado da utente quanto à sua imagem corporal, a sua perceção da importância da remoção extensa de área corporal no prognóstico; foi ainda explorado o impacto na sua autoestima, na relação conjugal e na sexualidade do casal.
No caso clínico apresentado o seguimento regular em consulta de saúde da mulher, uma relação médico-doente centrada na pessoa, bem como a melhoria da literacia em saúde da utente, poderia ter permitido uma identificação precoce da lesão de condiloma e alterado a história natural da doença, reduzindo a morbilidade física e mental da utente.
Agradecimentos
À utente que permitiu a partilha da sua história clínica, com intuito de promover o enriquecimento de conhecimento e o exercício da medicina preventiva, à qual se retribui com a publicação deste artigo.