1. Introdução - A dimensão do problema
A esquizofrenia foi classificada em 2016 como a 12.ª causa mais importante de carga da doença no mundo, medida pelo número total de anos vividos com incapacidade. Acarreta custos diretos significativos (hospitalizações e tratamento farmacológico) e custos indiretos ainda mais elevados, como, por exemplo, perda de produtividade laboral.1
A esquizofrenia representa problemas importantes para as pessoas doentes, para as famílias e para a sociedade, e as respostas são ainda, na maioria das vezes, insuficientes. É expectável que, numa “lista padrão” de cerca de 1.750 pessoas, um médico de família (MF) receba cinco a quinze pessoas com diagnóstico de esquizofrenia ou que virão a desenvolver a doença. 1
O presente artigo sublinha a importância dos cuidados centrados na pessoa. Procura, através da reflexão e debate, sensibilizar os médicos de família para a problemática associada ao diagnóstico de esquizofrenia, contribuir para a melhoria dos cuidados prestados ao doente e sua família, através da proposta de formas de atuação clínica que permitam uma maior e mais eficaz integração e continuidade entre os cuidados de saúde primários e hospitalares.
2. Integração e continuidade de cuidados
Na perturbação mental, e em particular na esquizofrenia, há questões fundamentais a considerar para o sucesso na prestação de cuidados, nomeadamente a morbilidade múltipla (fisica e mental), os fatores psicossociais (onde se inclui o estigma), o contexto familiar e a adesão ao plano terapêutico. 2-3 Sendo a esquizofrenia uma doença crónica, os cuidados de saúde primários (CSP) devem participar no seguimento destas pessoas, dada a cobertura universal, a abrangência e a continuidade dos seus cuidados de saúde. 4-5 Na Tabela 1 apresentam-se os pilares da gestão clínica das pessoas com esquizofrenia e respetivos exemplos de cuidados a prestar no âmbito dos CSP.
3. Identificar e acompanhar as pessoas com esquizofrenia
A sinalização proativa de pessoas com esquizofrenia permite uma atempada deteção de casos e, consequentemente, a intervenção precoce, contribuindo para um prognóstico mais favorável. 6-7
Nos homens, o início da doença ocorre mais frequentemente entre os 15-25 anos e nas mulheres entre os 25-30 anos, com um segundo pico por volta dos 40 anos. Habitualmente, a fase inicial é progressiva e insidiosa, predominando o compromisso cognitivo e social (mais isolados, calados, introvertidos, passivos), podendo vivenciar estados de apreensão e de perplexidade, muitas vezes acompanhados de alteração do comportamento e crenças bizarras. Frequentemente, a doença evolui por surtos psicóticos; outras formas de apresentação da doença caracterizam-se pela presença de sintomas distintos, nomeadamente negativos (como “ausência” de função, que pode incluir afeto restrito, pobreza de pensamento, apatia e anedonia), catatónicos ou com marcada desorganização formal do pensamento. 8-9
Perante um episódio psicótico (em que surgem delírios e/ou alucinações), particularmente no inaugural, há que excluir a possibilidade de sintomatologia psicótica secundária a substâncias psicoativas e decorrente da presença de doença física. Devem ponderar-se também outras perturbações do espectro da esquizofrenia e afetivas, que podem cursar com sintomatologia psicótica. Para o diagnóstico é necessário atender não só à sintomatologia como aos elementos da anamnese - a evolução nosológica, os antecedentes pessoais e familiares, os aspetos biográficos e sociais - e aos resultados dos exames complementares. 9
3.1. Vigilância da saúde geral, incluindo estado mental
Em média, as pessoas com esquizofrenia morrem cerca de 15-20 anos mais cedo do que as pessoas sem perturbação mental grave e têm uma taxa de mortalidade 1,6 vezes superior à população geral. 10 Contudo, apenas 20% das mortes prematuras são por suicídio ou acidente. A maioria resulta de doenças cardiovasculares (risco 15 vezes superior ao da população geral), diabetes, DPOC, neoplasias ou infeções (e.g., tuberculose, hepatites, VIH-SIDA). 11 Além das características próprias da doença e da iatrogenia (e.g., síndroma metabólico secundário a antipsicóticos), os cuidados inadequados e o estigma social da esquizofrenia dificultam o controlo daquelas comorbilidades.
Embora os efeitos metabólicos sejam mais evidentes nos doentes que tomam antipsicóticos atípicos há que avaliar com regularidade todos os doentes quanto ao risco metabólico (índice de massa corporal, lipidemia, glicemia, hemoglobina A1c), como sugerido na Tabela 2.
Cerca de 70% das pessoas com esquizofrenia são fumadoras, percentagem parcialmente atribuída ao efeito atenuador da nicotina sobre os efeitos secundários dos antipsicóticos. Estes doentes apresentam outros hábitos nocivos, dieta alimentar desadequada, sedentarismo e, em alguns casos, aumento de comportamentos de risco. Por esse motivo, as recomendações NICE para estes doentes reforçam a promoção da saúde (atividade física, alimentação, cessação tabágica), bem como a monitorização regular de fatores de risco associados às doenças mais prevalentes. 12-14 No caso particular das mulheres deve-se ainda realizar a vigilância da saúde reprodutiva e planeamento familiar. É importante dosear a prolactinemia em mulheres em idade fértil, sobretudo se estão a ser utilizados alguns antipsicóticos, como a risperidona, a amissulprida e a paliperidona (Tabela 6). Antes da prescrição de um antipsicótico é importante ter um ECG basal, para avaliação do intervalo QT, pelo risco de prolongamento. 13 Paradoxalmente, diversos estudos evidenciam taxas de prescrição de fármacos para comorbilidades frequentes muito inferiores às esperadas, indiciando subdiagnóstico e/ou subtratamento. 11 O estigma associado às doenças psiquiátricas, conjugado com desafios na comunicação, pode limitar as intervenções necessárias. O reconhecimento e tratamento das diversas comorbilidades e a atenção ao contexto e fatores sociais podem contribuir para diminuir a morbilidade e a mortalidade prematura. 12
A heterogeneidade da esquizofrenia pode tornar a avaliação clínica difícil e complexa. É essencial que o MF saiba identificar alterações do estado mental e a necessidade de ajustar o plano terapêutico ou solicitar a intervenção da equipa de saúde mental.
No exame do estado mental (EEM), conforme descrito na Tabela 3, deve incluir-se: nível de consciência; comportamento motor; contacto e atitude no decorrer da observação; orientação temporo-espacial em relação a si próprio e aos outros; memória; atenção; discurso; pensamento - importante incluir na avaliação do conteúdo do pensamento a existência de ideação delirante, ideação suicida e de comportamentos heteroagressivos; perceção - avaliar existência de alucinações; humor; sono, apetite e vida sexual; e, por fim, o juízo crítico para a doença e para a necessidade de tratamento. 15 É imprescindível avaliar o risco que o doente pode apresentar para si e/ou para terceiros, questionando: “Tem pensado em fazer mal a si próprio?; “Sente-se em perigo ou ameaçado por alguém? Precisa de se defender de alguma forma?”; “O que já pensou fazer?”
A fase de estabilização da doença caracteriza-se predominantemente pela presença de sintomas negativos, podendo coexistir sintomatologia psicótica residual e sintomatologia afetiva, que deve ser reconhecida pelo risco aumentado de suicídio, sobretudo nas fases iniciais da doença, sem suporte social e familiar, com maiores funcionalidade e QI prévio, com insight e consequente medo de deterioração e pouca confiança no tratamento. Questionar os doentes sobre ideação suicida não aumenta o risco e pode permitir intervenções preventivas.
As alterações cognitivas encontram-se habitualmente presentes desde a fase inicial da doença e são consideradas determinantes na evolução do funcionamento global da pessoa e do potencial de reabilitação (e.g., défices a nível verbal, atenção, memória de trabalho, coeficiente intelectual, linguagem e funções executivas).
Estima-se que apenas 20-30% dos doentes tenham uma evolução favorável, permanecendo integrados na comunidade e com qualidade de vida satisfatória. 16-17 Os restantes apresentam numa grande percentagem a designada síndroma deficitária definida pela presença de sintomas negativos primários, proeminentes e persistentes, que se traduzem por incapacidade parcial ou mesmo total.
3.2. Adesão à terapêutica - Supervisão
Mais de 60% dos episódios de descompensação devem-se à inadequada adesão ao plano terapêutico e/ou ao consumo de substâncias psicoativas. 14 Entre os determinantes da não adesão à terapêutica, o principal é a falta de insight para a doença, à qual se juntam: crenças em relação aos fármacos, efeitos adversos e dificuldades inerentes (e.g., limitações cognitivas). Isto contrasta com a melhor adesão que se observa nos doentes com melhor funcionamento pré-mórbido, com maior instrução, que conhecem e aceitam a sua doença e que estabelecem boa relação terapêutica com a equipa de saúde. 18 É importante que o MF estratifique o nível de adesão dos doentes e recorra a intervenções psicoeducativas para facilitar mudanças de atitudes em relação ao plano terapêutico, veiculando informação sobre a doença e o tratamento. Outras intervenções como lembretes telefónicos e envolvimento dos doentes e familiares podem trazer benefícios significativos. 18 No caso de não adesão ao tratamento, esta deve ser reportada à equipa comunitária/hospitalar de saúde mental para, em conjunto com o doente, explorar outras opções e prevenir recaídas - por exemplo, a opção por antipsicóticos injetáveis com periodicidade quinzenal, mensal ou trimestral.
3.3. Aferição das condições sociais
A aferição das condições sociais ocupa um papel central no plano de cuidados. A pobreza, o desemprego, o isolamento e a exclusão social atuam como precipitantes e predisponentes, aumentando o risco de evolução desfavorável da doença. 19 A pessoa com doença mental grave apresenta um risco superior de pobreza, marginalização e estigma, havendo circularidade entre fatores sociais e doença mental. 2 Na esquizofrenia sobressaem as dificuldades na integração do mercado de trabalho, com aumento da exclusão social. 2 Devem ser sempre avaliadas: a existência de rede de suporte familiar/social; as condições de alojamento; o status socioeconómico e as possíveis fontes de rendimento (salário, reforma, heranças, subsídios).
3.4. Comunicação e aconselhamento de doentes e familiares
O estigma da doença, as limitações associadas, bem como o sofrimento e as vivências psicóticas podem dificultar a comunicação e a relação terapêutica.
A capacidade de bem comunicar (compreender e empatizar) é fulcral para facilitar o processo terapêutico. São princípios essenciais da comunicação verbal e não verbal com doentes e famílias: utilizar frases curtas, reiterativas e simples; concentrar-se na mensagem central; manter uma postura atenta, um semblante recetivo e prestável, que demonstre disponibilidade e interesse; adequar a distância física conforme a situação; e assegurar um ambiente tranquilo. 20
Em muitos casos, é importante contar com os dados fornecidos pelos familiares. Neste caso deve solicitar-se autorização para uma entrevista conjunta ou em dois momentos distintos. Passos fundamentais: 1. Ouvir sem criticar, aceitando a situação tal qual a descreve, sem tentar convencê-lo do contrário, evitando perda de confiança no médico; 2. Compreender, com a flexibilidade suficiente para se inserir naquilo que são as experiências vividas pelo doente, identificando as mensagens explícitas e implícitas, emoções e também o contexto em que as vive; 3. Informar a pessoa sobre o diagnóstico, tratamento e prognóstico, sem desvalorizar nem catastrofizar; 4. Desculpabilizar, dada a especificidade da doença, comportamentos desadequados ocorridos no período de crise; 5. Avisar sobre potênciais fatores de risco (consumos, não adesão à terapêutica, etc.) para recaídas e sublinhar os sinais de alerta principais (e.g., descuido a nível de higiene e autocuidados, inquietude psicomotora, alterações comportamentais, mudança de rotinas, modificação do padrão de sono, maior isolamento social); 6. Aconselhar sobre benefícios da atividade física, alimentação saudável e hábitos de sono; 7. Promover leituras e convívio, contacto com amigos e familiares, ver televisão e ouvir rádio, atualizando-se sobre o mundo à sua volta; 8. Estimular a recuperação e, se possível, o regresso à escola/atividade laboral, consoante as capacidades, a fase e a severidade da doença; contactar as associações de apoio aos doentes com esquizofrenia e seus familiares (Tabela 4), de forma a superar o problema da estigmatização e discriminação social; 9. Em crise/descompensação, a comunicação com o doente deve ser ajustada, evitando conflituosidade. A falta de insight presente nos surtos psicóticos leva o doente a considerar as intervenções médicas desnecessárias e abusivas. Nestas circunstâncias, o doente pode apresentar-se hostil e não cooperante. Esta situação pode ser complicada e de difícil controlo até para um psiquiatra experiente, sendo prudente otimizar a estratégia de controlo dos sintomas o mais rapidamente possível, preferencialmente com recurso a fármacos, e considerar colocar em marcha o plano de crise (vide ponto 4.1).
A incerteza quanto à evolução da doença incute insegurança no doente e na família. Devemos tranquilizar, sem criar falsas expectativas, esclarecendo familiares e cuidadores de forma a minimizar estes sentimentos e a promover atitudes terapêuticas. Os familiares geralmente desempenham um papel essencial no tratamento e cuidado destes doentes e na sua recuperação, devendo estar envolvidos ao longo da evolução da doença. Contudo, este papel representa uma sobrecarga habitualmente acompanhada de sintomatologia ansiosa e depressiva, o que exige sensibilidade dos serviços às necessidades específicas dos cuidadores. 13,21
Os cuidadores têm necessidades tanto em relação ao lidar com o doente quanto na necessidade de apoio para si. Precisam de informação detalhada sobre esquizofrenia para colaborarem melhor no tratamento do doente e precisam também de apoio para si mesmos, porque podem ser afetados psicologicamente, com impacto negativo na sua qualidade de vida. Na maioria destes casos pode ser suficiente uma intervenção psicossocial estruturada ou algumas das estratégias que a incorporem. O conceito de avaliação de necessidades, como exposto na Tabela 5, pode ser aplicado tanto a familiares como doentes e mesmo a profissionais de saúde, não sendo incomum que as necessidades identificadas por cada grupo de pessoas são muitas vezes não coincidentes. Contudo, é indispensável aferir as necessidades identificadas e principalmente as não cobertas para que as respostas possam adequar-se às expectativas das pessoas, melhorando a sua situação e satisfação com o serviço prestado e/ou recebido. 22
4. Articulação na prestação de cuidados entre os CSP e as equipas de psiquiatria e saúde mental
Na redação da informação clínica para o psiquiatra/equipa de saúde mental, o MF deve ser tão detalhado quanto possível. Se o doente não tiver história prévia de seguimento em consulta de psiquiatria é essencial que a informação clínica inclua uma breve descrição do quadro atual, os antecedentes pessoais, o nível prévio de funcionamento, a terapêutica em curso, os hábitos toxicológicos, as situações de violência perpetrada pelo doente ou dirigida a este, a história e o ambiente familiar.
Num doente com diagnóstico conhecido de esquizofrenia pode ser necessária a estratificação do grau de urgência de prestação de cuidados, explicitando com precisão o(s) problema(s) emergentes: má resposta ao tratamento; dificuldade na adesão terapêutica com a presença de efeitos secundários intoleráveis; existência de nova perturbação psiquiátrica; e/ou sinais de descompensação de doença. Nestes casos, a interligação entre os CSP e as equipas comunitárias/hospitalares de psiquiatria e saúde mental deverá fazer-se por contacto direto para discussão do caso e definição do plano. Nos casos de descompensação mais severa, o doente deve ser encaminhado de forma célere para uma avaliação especializada, sendo o serviço de urgência de psiquiatria o local preferencial. A posteriori, a deteção dos fatores precipitantes poder-se-á revelar essencial ao possibilitar intervenções psicoeducativas dirigidas aos doentes e seus familiares na tentativa de prevenir futuras crises.
4.1. Plano e intervenção na crise
Nos períodos de crise, o doente e/ou familiar ou cuidador devem seguir um plano onde se encontrem as instruções sobre como atuar e quem informar. Neste plano deve constar a identificação e os contactos dos técnicos de saúde de referência, do delegado de saúde e das autoridades. Estes dois últimos devem ser utilizados se o doente estiver agitado e/ou agressivo, sem crítica para a situação e seja imperativa a necessidade de avaliação por psiquiatra, mesmo que contra a vontade do doente. Em situações de crise pode o MF, o familiar ou outra pessoa próxima do doente fazer chegar uma informação ao delegado de saúde da área de residência para que seja elaborado o mandado de condução do doente ao serviço de urgência para uma avaliação especializada. 23
De um modo geral, após a avaliação psiquiátrica podem ocorrer três cenários: a) o doente não tem indicação para internamento, é efetuado ajuste terapêutico e permanece no domicílio; b) tem indicação para internamento e aceita ficar hospitalizado; c) tem indicação para ficar hospitalizado e não aceita, ficando internado contra a sua vontade ao abrigo da Lei de Saúde Mental. Decidida a necessidade de tratamento compulsivo, está prevista uma série de procedimentos que salvaguardam o melhor interesse do doente, como: a avaliação periódica e revisão do seu estado de saúde por outros médicos psiquiatras; a possibilidade de defesa do doente e contestação da decisão; as avaliações conjuntas; entre outras medidas. 23 Após a alta do internamento hospitalar, nos casos em que não é viável a passagem a tratamento ambulatório voluntário pela ausência de crítica para a doença e da necessidade de cumprir terapêutica, o doente passa ao regime de tratamento ambulatório compulsivo, ficando obrigado a comparecer regularmente a avaliações clínico-psiquiátricas e a tomar a medicação prescrita (maioritariamente na forma de injetável de longa-duração).23 Em qualquer dos cenários deve o MF estar a par da ocorrência e das decisões tomadas (ajustes terapêuticos realizados, etc.).
5. Papel das equipas comunitárias de psiquiatria e saúde mental
Às equipas especializadas em saúde e doença mental cabem as responsabilidades de prevenção secundária, terciária e quaternária que impliquem diagnosticar, tratar e acompanhar a evolução do doente com esquizofrenia através de estratégicas terapêuticas que garantam a estabilidade clínica, previnam recaídas e reduzam incapacidades, integrando os doentes em programas de reabilitação, sempre que necessário.
5.1. Uso criterioso de antipsicóticos e de intervenções psicossociais
A componente de saúde mental do plano terapêutico deve ser coordenada pelo psiquiatra com a participação do doente, da família e de outros elementos da equipa de saúde mental, com envolvimento da equipa de CSP, com decisões consideradas caso a caso. 24
Os antipsicóticos de segunda e terceira geração ou “atípicos” são na maioria dos casos a primeira escolha farmacológica pela menor probabilidade de efeitos extrapiramidais, como identificado na Tabela 6. 24 Os efeitos adversos variam, mas a maioria provoca sedação e ganho ponderal, este último por alterações do metabolismo lipídico e glucídico. 8,24
Os antipsicóticos são eficazes no tratamento dos sintomas positivos da esquizofrenia. Contudo, tal não se verifica em relação aos sintomas negativos que habitualmente se tornam mais proeminentes com a evolução da doença. Para fazer face a este declínio têm surgido abordagens mais amplas, combinando opções de tratamento farmacológico e intervenções psicossociais. 13,26-27 A terapia cognitivo-comportamental, a intervenção psicoterapêutica familiar e a terapia ocupacional têm comprovado benefício terapêutico em complementaridade com a farmacoterapia. 12
As intervenções psicossociais na esquizofrenia permitem ao doente ter um papel ativo no seu tratamento, nomeadamente reorientar os seus objetivos de vida e preservar o melhor funcionamento possível face às circunstâncias inerentes à própria doença e aos seus recursos. Várias intervenções focalizam-se na prevenção do declínio cognitivo. Outras têm por objetivo que o doente desenvolva estratégias e aptidões que lhe permitam lidar melhor com os fatores de stress e assim reduzir o risco de recaídas. Estas intervenções devem ser escolhidas em função das necessidades de cada doente e das fases da doença. Durante o pródromo, os principais objetivos são a prevenção da psicose e a redução de sintomas. Na fase psicótica, a redução da gravidade e da duração da psicose são centrais. A prevenção de recaídas e de comorbilidades, incluindo redução do risco de suicídio, é crítica para a fase transitória.
Em relação à prevenção de recaídas, o consumo de substâncias psicoativas, nomeadamente de canábis e de outras drogas, é considerado um dos principais desencadeantes de primeiros episódios psicóticos em pessoas vulneráveis e perpetuador de crises com agravamento do quadro e do prognóstico associado. Por este motivo, as equipas que se dedicam ao acompanhamento de doentes com esquizofrenia munir-se de profissionais experientes para o tratamento e desabituação de drogas ou, em alternativa, organizar a intervenção terapêutica com o apoio das Equipas de Tratamento de Comportamentos Aditivos, uma vez que estas intervenções podem constituir-se como elemento modificador do curso natural da história da doença.
Finalmente, a reabilitação e a reintegração na comunidade são os objetivos principais da fase estável e crónica.
Para além dos doentes, os familiares e/ou cuidadores podem necessitar de suporte emocional ou de orientações práticas para redução da emoção expressa (quando presente) e melhor relação com o doente. O conceito de emoção expressa (EE) tem sido utilizado na avaliação do ambiente familiar e compreende um conjunto de atitudes, como sobre-envolvimento, hipercriticismo e hostilidade para com o doente. Intervenções como a terapia comportamental familiar ou a aplicação de estratégias práticas de treino de comunicação e treino de resolução de problemas podem ser um auxílio precioso na ajuda e resposta às necessidades manifestadas pelos familiares, reduzindo a emoção expressa e melhorando o prognóstico da doença. 13,26-27 Infelizmente, os recursos para intervenções psicossociais específicas são ainda escassos ou mesmo inexistentes, com iniquidades acentuadas, contribuindo para um pior panorama geral na gestão da doença.
Conclusão
Para cuidar melhor destes doentes é necessária uma articulação eficaz entre equipas, superando a simples referenciação. O reconhecimento e a mobilização das competências de todos, a partilha do conhecimento sobre o doente e o trabalho em equipa multidisciplinar/interdisciplinar são pilares deste processo.
É necessário dispor de um sistema eficiente para a circulação da informação assente em relações de confiança entre profissionais, com definição personalizada de interlocutores e previsão de tempo próprio para reunir e discutir casos mais complexos.
É premente conciliar proximidade com diferenciação, considerando a substituição de consultas isoladas por programas com vários niveis de resposta, que sejam flexíveis e tenham em consideração o contexto onde vão ser implementados e as necessidades reais da comunidades que irão servir e que coloquem os doentes e as suas famílias no centro da prestação de cuidados.
Algumas das propostas de práticas médicas apresentadas pressupõem que as mesmas sejam aplicadas, ajustando-se à realidade particular de cada cenário, compreendendo um intervalo razoável de uniformidade sobre as mesmas.
Contudo, como princípios fundamentais que devem alicerçar a prestação de cuidados integrados à pessoa com esquizofrenia, destacam-se:
equidade no acesso a serviços com cuidados multidisciplinares e planos de tratamento que envolvam a participação de doentes, famílias e outras estruturas significativas da comunidade;
atenção aos fatores sociais que contribuem para agravar a doença psiquiátrica e ao estigma dirigido a estes doentes, alvos fáceis de violência e de marginalização;
ativação de fatores protetores com vista a reduzir a gravidade da perturbação e a aumentar a resiliência da pessoa, promovendo o seu bem-estar e a integração social;
disponibilizar oportunidades para que os doentes possam recuperar (personal recovery), o que implica: encontrar uma vida com significado, otimismo, esperança e empoderamento da pessoa (capacidade de ser autónomo e de lidar com a adversidade), contribuindo para a sociedade de forma global.
É necessário mudar o paradigma da prestação de cuidados que atualmente consiste primordialmente na medicalização destes doentes. Contudo, resolvidos os episódios de descompensação, a cronicidade da doença condiciona o declínio funcional progressivo que atinge vários domínios da esfera individual, incluindo a forma como pensa, sente e se comporta, e do qual resulta a incapacidade da pessoa se integrar e interagir com o mundo e com os outros. Existem intervenções terapêuticas que quando efetuadas no momento certo, de forma coordenada e sustentada, permitem à pessoa integrar-se na comunidade e desenvolver um trajeto de vida (pessoal e profissional) satisfatório.
Mais do que nunca, a educação médica pré e pós-graduada dos médicos de família e dos psiquiatras deve romper com a compartimentalização de cuidados e garantir a aquisição de saberes transversais em áreas como a das intervenções psicossociais, com comprovada eficácia na melhoria da saúde global, cujas respostas de qualidade continuam, em muitos casos, a escassear.