SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39 número5Rastreio da pré-eclâmpsia com doppler ou algoritmos preditivos: a sua realização é recomendada de acordo com a prática clínica baseada na evidência?Testamento vital: uma ferramenta para fim de vida em todas as fases da vida índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.39 no.5 Lisboa out. 2023  Epub 31-Out-2023

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v39i5.13476 

Prática

Consulta de modificação de estilos de vida nos cuidados de saúde primários

Lifestyle changes appointment in primary health care setting

Marta Freitas1 
http://orcid.org/0000-0001-6465-5784

Joana Marinho2 

Gabriel Nogueira3 

Filipa Mendes4 

Marta Marquês1 

1. Médico de Medicina Geral e Familiar. USF Cova da Piedade - ACeS Almada-Seixal. Almada, Portugal.

2. Médica de Medicina Geral e Familiar. UCSP Santo António e Laranjeiro - ACeS Almada-Seixal. Laranjeiro, Portugal.

3. Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. USF Cova da Piedade - ACeS Almada-Seixal. Almada, Portugal.

4. Enfermeira de Família. USF Cova da Piedade - ACeS Almada-Seixal. Almada, Portugal.


Resumo

A obesidade constitui um dos principais problemas de saúde pública no mundo. O aconselhamento para a mudança de estilos de vida é uma competência fundamental dos médicos de família (MF) e pode contribuir para a prevenção, controlo e redução do risco de complicações de doenças crónicas. A falta de recursos face às necessidades dificultam uma abordagem concertada. Neste sentido, um grupo de profissionais de cuidados de saúde primários organizou-se para implementar uma consulta dedicada a modificação de estilos de vida (MEV), visando um impacto positivo na saúde da sua população. No presente artigo descreve-se o projeto e a sua operacionalização. A consulta de MEV pretende, de forma estruturada, intervir no controlo e alteração de estilos de vida prejudiciais à saúde dos utentes, com o objetivo de reduzir a prevalência do excesso de peso e obesidade na população e, consequentemente, reduzir a incidência de doenças ligadas ao estilo de vida a médio e longo prazo. Este tipo de intervenção, realizada por profissionais treinados, permite individualizar e intensificar a intervenção com recurso a técnicas de entrevista motivacional, o que pode aumentar a taxa de sucesso da mudança comportamental. No futuro seria proveitoso replicar o projeto, estabelecendo novos polos de consulta.

Palavras-chave: Estilo-de-vida saudável; Cuidados de saúde primários; Obesidade; Excesso de peso; Comportamentos em saúde

Abstract

Obesity is an increasing public health issue around the world. Lifestyle counselling is one of the core competencies of family doctors and can contribute to the prevention, control, and counteract of chronic disease complications. The paucity of resources in primary care practices makes an adequate response challenging. Therefore, a group of health professionals from a primary care public Family Health Unit managed to implement a lifestyle change (LC) consultation. Our aim was to have a positive impact on our patient’s health, as a result of patients’ lifestyle improvement. Our aim is to describe the project; analyse its’ local implementation and contribute to facilitating LC consultations’ implementation in other primary care settings. LC consultations intend a structured approach to unhealthy lifestyles, aiming to decrease excess weight and obesity prevalence and therefore decrease noncommunicable disease incidence in the mid-term and long term. This sort of intervention, carried out by trained professionals applying motivational interview techniques makes it possible to individualize and intensify the intervention, which could improve behaviour change success rate. In the future, it would be important to replicate the project.

Keywords: Healthy lifestyle; Primary health care; Obesity; Overweight; Health behaviour

Introdução

A obesidade é uma condição crescente que constitui um dos principais problemas de saúde pública em todo o mundo.1-2 Portugal encontra-se numa das posições mais desfavoráveis do cenário europeu, com 3,5 milhões de pessoas com excesso de peso e 1,4 milhões com obesidade. 1

A obesidade resulta de uma interação de múltiplos fatores, entre os quais fatores genéticos, hormonais, psicológicos e socioculturais. 2 No entanto, o aumento de peso parece assentar muitas vezes num desequilíbrio do balanço energético, isto é, numa ingestão excessiva face ao dispêndio. 1-2 Globalmente assiste-se a um aumento da ingestão de alimentos com elevada densidade energética, industrialmente processados, ricos em gorduras, açúcares e sal, e pobres em vitaminas e minerais. Por outro lado, a diminuição dos níveis de atividade física, resultantes da crescente urbanização, sedentarismo das formas laborais e dos meios de transporte, não contrapesam as alterações no padrão alimentar.2 Efetivamente, os fatores de risco metabólicos associados a estilos de vida pouco saudáveis representam cerca de 60% das mortes anuais. 3

O excesso de peso e a obesidade podem representar uma importante causa de morbimortalidade, influenciando o aparecimento e o desenvolvimento de múltiplas patologias como, por exemplo, a diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial, doença isquémica cardíaca, osteoartrose e algumas neoplasias. 1-2 Além disso, existem consequências psicossociais que devem ser valorizadas, como a diminuição da autoestima, depressão, ansiedade, alterações do comportamento alimentar, isolamento social e discriminação laboral. 1-2

Pelo contrário, conhecem-se inúmeros benefícios da adoção de estilos de vida saudável e da redução ponderal. Sabe-se que em pessoas obesas uma redução de, pelo menos, 5% do peso corporal inicial é suficiente para se conseguirem melhorias clinicamente significativas - e.g., no perfil lipídico, com redução dos níveis de colesterol total, colesterol LDL e triglicerídeos e aumento dos níveis do colesterol HDL, perfil metabólico, com aumento da sensibilidade à insulina e diminuição da glicose plasmática e ainda redução da pressão arterial, aumento da longevidade e melhoria da autoestima e do humor. 1

Existem métodos efetivos disponíveis para o tratamento da obesidade e excesso de peso, mas à medida que a doença se instala e agrava, os custos associados à obesidade e as taxas de insucesso no tratamento são progressivamente mais elevadas. 1-2 Em primeira linha, o foco devem ser mudanças positivas na alimentação e atividade física.

Mudar não é, em regra, um processo fácil. Habitualmente a mudança acontece após um processo de decisão marcado por sucessivos avanços e recuos. 4

No estudo de Searight é realizada uma revisão de estratégias de aconselhamento em saúde, estruturadas e eficazes, disponíveis para utilização nos cuidados de saúde primários (CSP) - e.g., a entrevista motivacional. 5 Quando comparado com a abordagem habitual, o uso dessas estratégias resultou num benefício adicional de 10 a 15% em resultados orientados para o utente, como a redução do peso corporal. 6 Adicionalmente, a promoção da literacia em saúde também provou ser uma estratégia eficiente para a autogestão de doenças crónicas, incluindo a obesidade. 5

Todos os profissionais de saúde têm a responsabilidade de promover estilos de vida saudáveis e de prestar cuidados preventivos à população, mas os profissionais de CSP, incluindo os médicos e enfermeiros de família, encontram-se numa posição privilegiada para esse efeito. 7-8 Por um lado, contactam com uma porção significativa da população e têm oportunidade de detetar a doença e intervir num estadio precoce da sua história natural, 7 onde há maior probabilidade de sucesso terapêutico; 1-2 efetivamente, a intervenção precoce ao nível dos CSP pode contribuir tanto para a prevenção e controlo de doenças crónicas como para a redução do risco de complicações das mesmas. 3 Por outro lado, as equipas de família prestam cuidados longitudinais de forma contínua, estabelecendo uma relação terapêutica ao longo do tempo, 4,7-8 relevante no processo de mudança.9 Por último, conhecem os recursos da comunidade e conseguem envolver outros familiares no comportamento do utente. 7-8

Mais, o aconselhamento para a mudança de estilos de vida é uma competência fundamental dos médicos e enfermeiros de família e é recomendado de forma transversal na prevenção e terapêutica das doenças crónicas mais prevalentes. 6,10-14 Além disso, o domínio das técnicas de entrevista motivacional pelo médico de família é de grande importância na abordagem de várias problemáticas comuns nos CSP (e.g., adesão a medicação crónica, perda de peso, evicção da exposição a substâncias nocivas, etc.). 15

Compreende-se que o excesso de peso, obesidade e suas consequências configurem um enorme desafio ao Serviço Nacional de Saúde e que é da maior importância que os serviços de saúde assegurem uma intervenção adequada para o seu correto diagnóstico, tratamento e monitorização clínica. 1,15 Efetivamente, a Direção-Geral da Saúde (DGS) tem desenvolvido programas de saúde prioritários, nomeadamente na área da promoção da alimentação saudável e atividade física, com a criação de documentos orientadores e facilitadores da atuação dos profissionais de saúde. 16

É essencial que as intervenções sejam realizadas por equipas diversificadas e multidisciplinares, consoante os recursos localmente disponíveis. 1-2 Na opinião dos autores, a falta de recursos face às necessidades, designadamente a escassez de tempo nas consultas de medicina geral e familiar (MGF) e a carência de recursos humanos (e.g., três nutricionistas, onze psicólogos e nenhum profissional de exercício físico para uma população de 346.864 utentes inscritos frequentadores na nossa região de saúde) dificulta uma abordagem multidisciplinar concertada e eficaz. 17-18 Neste contexto, um grupo de profissionais de uma Unidade de Saúde Familiar (USF) organizou-se para implementar uma consulta dedicada à modificação de estilos de vida, com o objetivo de melhorar a resposta a este problema na sua área de influência. Conhecem-se outras unidades de saúde que sentiram a mesma necessidade de intervenção, tendo implementado consultas com designações variadas. No presente caso optou-se pela designação de “Consulta de Modificação de Estilos de Vida” por, na opinião dos autores, melhor transmitir a visão idealizada para a consulta, ou seja, que a perda ponderal não fosse o foco principal, mas a aquisição de hábitos de vida mais saudáveis de uma forma sustentável, sendo a perda ponderal apenas uma das consequências dessas mudanças. Este modelo de consulta não pretende substituir a necessária intervenção de cuidados especializados de nutrição, psicologia ou dos cuidados de saúde secundários, mas aumentar a eficiência de todos os recursos disponíveis e maximizar oportunidades para a promoção de estilos de vida saudáveis e consequente prevenção e controlo de doenças crónicas.

Com o presente artigo pretende-se descrever o projeto e sua operacionalização, de forma a facilitar a replicação da consulta de modificação de estilos de vida (MEV) noutros contextos dos CSP.

Descrição do projeto

A consulta de MEVs consiste num acompanhamento estruturado ao longo de vários meses do adulto com excesso de peso ou obesidade que deseje mudar comportamentos relacionados com alimentação e/ou atividade física. Assenta numa compreensão global do utente, do seu contexto, motivações e dificuldades à implementação da mudança.

Como o próprio nome da consulta indica, o seu foco principal está na adesão a estilos de vida mais saudáveis (e sua manutenção a longo prazo), assumindo-se a perda de peso como um objetivo secundário desta mudança. Assim, estimulam-se escolhas alimentares saudáveis, analisando formas de ir ao encontro das recomendações nutricionais. Promove-se um estilo de vida ativo, discutindo estratégias para reduzir comportamentos sedentários no dia-a-dia e incentivando o envolvimento em atividade física estruturada. Além disso, procura-se identificar recursos da comunidade e pessoas que apoiem o utente no processo de mudança, de forma a reforçar a sua rede de apoio. Ao longo de todo o processo adota-se uma abordagem motivacional, estimulando a motivação intrínseca para a mudança de estilo de vida e aposta-se na componente educacional e de literacia em saúde de forma a capacitar o utente na definição de objetivos individualizados e na autogestão do controlo de peso. Utilizam-se como documentos de apoio vários materiais educacionais elaborados pela DGS (e.g., Processo Assistencial Integrado da Pré-obesidade no Adulto, 1 Manual de Aconselhamento para a Mudança Comportamental, 4 Descodificador de Rótulos, 19 Recomendações para a Atividade Física, 20 entre outros), assim como documentos para o utente e material de apoio à consulta concebidos pelos profissionais que integram a consulta.

O projeto foi idealizado por uma médica, na altura interna de 4.º ano de formação específica em MGF, como forma de implementação na USF do Processo Assistencial Integrado da Pré-Obesidade. Em 2020, o projeto foi integrado no Programa de Alimentação Saudável e Atividade Física, do Departamento de Saúde Pública do Agrupamento de Centros de Saúde de Almada-Seixal (ACeS-AS), que considerou a “Alimentação, obesidade e diabetes” uma das suas áreas de trabalho prioritárias. 1,21

A equipa foi inicialmente constituída por duas médicas internas de MGF, uma enfermeira e uma secretária clínica. No início de 2020, um novo interno de MGF com formação em medicina desportiva integrou a equipa. Como formação prévia, as médicas realizaram um estágio curto observacional de duas semanas com as nutricionistas do ACeS. Esta formação teve como objetivos a capacitação das profissionais para delinearem um plano alimentar em linhas gerais, o aprimorar de técnicas de exame físico, nomeadamente a avaliação de medidas antropométricas de forma correta e a revisão dos critérios de referência para a consulta de nutrição do ACeS, de forma a melhorar a articulação de cuidados. Por ser uma área de interesse pessoal, as duas médicas tinham também concluído o curso pós-graduado de Nutrição Clínica na Medicina Geral e Familiar (da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto), entre outras formações curtas vocacionadas para o tema.

As consultas tiveram início em fevereiro/2019 e decorrem num gabinete médico da USF, em horário específico para o efeito. As primeiras consultas têm a duração aproximada de sessenta minutos e as subsequentes de trinta minutos.

Os utentes podem ser referenciados pelos seus médicos ou enfermeiros de família (Figura 1). Todos os utentes que o desejem e/ou em que seja identificada a necessidade de aconselhamento sobre estilos de vida saudáveis podem ser atendidos na consulta. Contudo, a eficiência será maior se forem utilizados critérios de acesso prioritário. Assim, definiu-se que deveriam ter acesso preferencial a estas consultas:

  • Adultos com excesso de peso (Índice de massa corporal - IMC - entre 25,0 e 29,9 kg/m2 e perímetro da cintura (PC) superior a metade da estatura (perímetro da cintura/estatura > 0,5), com ou sem comorbilidade;

  • Adultos com obesidade (IMC superior ou igual a 30 kg/m2), com ou sem comorbilidades, sem critério clínico ou interesse na referenciação a consulta especializada de nutrição e/ou consulta de cirurgia bariátrica);

  • Os utentes referenciados devem encontrar-se motivados para mudar o seu comportamento (em fase de preparação/ação, ou seja, que encarem seriamente a possibilidade de mudar determinados hábitos nos trinta dias seguintes). No entanto, caso o profissional de saúde que referencia considere justificado, pode ser pontualmente realizada avaliação em consulta a utentes noutros estadios de mudança.

Figura 1 Circuito de acesso à consulta de Modificação de Estilo de Vida. 

A secretária clínica realiza a inscrição do utente, agenda as primeiras consultas e presta informações de tipo administrativo sobre a consulta, presencial ou telefonicamente.

Na primeira consulta (Figura 2) estão presentes idealmente dois profissionais de saúde, incluindo um médico. Optou-se por este método para assegurar um atendimento personalizado e em continuidade (por um dos profissionais presentes na primeira consulta) e para permitir o treino mais intensivo dos profissionais envolvidos no protocolo da consulta MEVs. O médico e o enfermeiro têm ambos um papel ativo na colheita de informação, na medição dos parâmetros físicos e no aconselhamento realizado. Na primeira consulta é o médico que colhe preferencialmente a informação, incluindo o motivo de consulta, os dados pessoais e sociais, assim como os antecedentes pessoais, incluindo hábitos toxicófilos e terapêutica farmacológica, e antecedentes familiares relevantes. Apura-se também a evolução ponderal ao longo da vida e as tentativas prévias de perda de peso. O médico ou enfermeiro colhem a história alimentar (incluindo bebidas ingeridas), horários de sono, hábitos de atividade física e avaliam o grau de motivação para a mudança. A Tabela 1 resume os pontos abordados numa primeira consulta de MEVs.

Figura 2 Circuito de acompanhamento do utente na consulta de Modificação de Estilo de Vida. 

Tabela 1 Proposta de dados a recolher na primeira consulta MEVs 

Ao exame objetivo avalia-se a presença de estigmas de doença endócrina e colhem-se os dados antropométricos (preferencialmente realizados pelo enfermeiro): peso, altura e perímetro da cintura e calcula-se o IMC e o ratio/razão Perímetro cintura/Altura. Quando este ratio/razão é superior a 0,5 considera‐se que existe um risco acrescido para a saúde, relacionado com o aparecimento de doenças crónicas não transmissíveis. 1

No final procuram-se estabelecer objetivos e expectativas realistas, ajustados a cada indivíduo e é elaborado um plano das mudanças acordadas, de forma partilhada. Define-se também a data da consulta seguinte com periodicidade ajustada de acordo com a necessidade e disponibilidade do utente (em média um a dois meses depois). Caso apure essa necessidade, o médico realiza referenciação para consulta especializada em psicologia, nutrição ou cuidados de saúde secundários. É disponibilizado o endereço eletrónico dos profissionais envolvidos na consulta para acompanhamento intercalar e esclarecimento de dúvidas.

Nas consultas subsequentes poderá estar presente apenas um elemento (médico ou enfermeiro) dos presentes na primeira consulta. Nessas consultas, além da avaliação dos dados antropométricos e motivação para a mudança, identificam-se e reforçam-se os comportamentos/objetivos atingidos e discutem-se as dificuldades sentidas. Procura-se antecipar potenciais obstáculos, analisam-se possíveis soluções e ajusta-se o plano e objetivos para a próxima consulta.

Tanto na primeira consulta como nas subsequentes existe uma grande componente de educação para a saúde e de capacitação do utente, conceitos base para que as mudanças possam ser mantidas a longo prazo. Recorre-se a vários instrumentos, como folhetos informativos, como mencionado anteriormente, que se fornecem oportunamente aos utentes, mediante os tópicos que vão sendo abordados. Também se utilizam imagens ilustrativas (e.g., quantidade de açúcar presente nos alimentos) e são utilizadas embalagens/invólucros de vários produtos para análise da tabela nutricional e lista de ingredientes.

Os registos são realizados em SClínico®, pelo que os restantes médicos e enfermeiros da unidade têm acesso ao plano terapêutico acordado nas consultas MEVs, possibilitando a realização de intervenções oportunísticas quando os utentes são observados noutras consultas na unidade.

Realizam-se avaliações semestrais da atividade da consulta, com recurso a dados de utilizadores e indicadores mensuráveis selecionados (evolução do peso, IMC, ratio PC/Altura), trabalhados em ficheiro Excel®.

Entre fevereiro/2019 e fevereiro/2020 foram realizadas 116 consultas: 62 primeiras consultas e 54 consultas subsequentes. Existiu um acompanhamento de 30 utentes (tiveram duas ou mais consultas). Caracterizando os utentes na primeira consulta em relação ao sexo e idade: a maioria dos utentes era do sexo feminino (64,5%) e do grupo etário 41-50 anos (44,4%) ou 61-70 anos (44,4%) - Tabela 2. A Figura 3 permite conhecer a população de acordo com o IMC. As Figuras 4 e 5 ilustram a evolução do IMC e ratio PC/altura nas consultas subsequentes. A maioria dos utentes perdeu peso (que se traduziu numa redução do IMC em 60% dos utentes) e reduziu o perímetro da cintura (que se traduziu numa redução do ratio PC/altura em 70% dos utentes).

Tabela 2 Caracterização de utentes na primeira consulta por sexo e idade (n=62) 

Figura 3 Caracterização de utentes na primeira consulta - IMC (n=62). 

Figura 4 Caracterização de utentes - evolução ratio perímetro da cintura/altura na consulta subsequente (n=30). Legenda: PC = Perímetro da cintura. 

Figura 5 Caracterização utentes - evolução IMC na consulta subsequente (n=30). Legenda: IMC = Índice de massa corporal.  

Desde março/2020, a pandemia COVID-19 condicionou uma reorganização profunda e contínua dos CSP, impossibilitando a continuação do projeto das consultas MEVs nos moldes idealizados. Efetivamente, deparamo-nos com limitações físicas em termos de capacidade máxima nas salas de espera, aumento dos tempos de consulta e inúmeras novas solicitações aos profissionais de saúde envolvidos com realocação dos mesmos a múltiplas tarefas relacionadas com a pandemia. Consequentemente, ao longo de 2020 e 2021 foram realizadas consultas de aconselhamento apenas de forma pontual, sem seguimento estruturado, pelo que não foram objeto de análise.

Ao longo do ano de 2019 quatro internos de MGF demonstraram interesse no projeto e assistiram a consultas, recebendo formação de forma a poderem replicar as aprendizagens nas suas consultas. Foram também tutorados três estudantes de medicina e uma de enfermagem. Em 2020 e 2021, pela falta de estrutura e previsibilidade de horário para a consulta, não se aceitaram pedidos de formação. Salienta-se a importância desta vertente formativa, pois pode contribuir para garantir a longevidade do projeto com o alargamento da equipa a novos profissionais. Efetivamente, alguns dos internos manifestaram interesse em estabelecer novos polos de consulta MEVs, pelo que se encontra em fase de construção um Manual Breve da Consulta de MEVs, de forma a facilitar a replicação do modelo.

Conclusões

O excesso de peso é um problema complexo e de tratamento desafiante. Idealmente, para combater a obesidade, urgia reforçar os recursos locais, facilitando por exemplo o acesso a consultas de nutrição, psicologia e a programas de exercício físico, de modo a permitir uma abordagem verdadeiramente multidisciplinar. 2 Não obstante, os médicos e enfermeiros de família têm um papel basilar na promoção da saúde, prevenção e tratamento de doenças crónicas e na capacitação dos utentes. 7

À semelhança dos programas de apoio intensivo à cessação tabágica, uma consulta de MEVs, realizada por profissionais treinados, poderia ajudar a colmatar algumas das dificuldades sentidas na prática clínica. 6,22 Este tipo de intervenção, ao disponibilizar um espaço para abordar de forma específica este tema, proporciona mais tempo de interação entre o profissional de saúde e o utente que quer mudar o estilo de vida, o que permite individualizar e intensificar a intervenção com recurso a técnicas de entrevista motivacional, o que pode aumentar a taxa de sucesso da mudança comportamental. 6 Além disso, parece fomentar o aumento da literacia em saúde, um aspeto importante na autogestão do excesso de peso.5 Assim, a consulta de MEVs pretende estabelecer uma forma das equipas de família intervirem de forma mais ativa e eficaz no combate à pandemia da obesidade. Esta consulta permite não só potenciar a primeira abordagem pelos CSP, mas também otimizar os recursos da Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados e dos cuidados de saúde secundários, o que se pode traduzir numa maior disponibilidade para o acompanhamento de situações mais complexas. Os autores consideram muito encorajador os resultados obtidos no projeto, que parecem mostrar eficácia deste modelo de consulta em objetivos orientados para o doente.

Além disso, este modelo de consulta oferece um campo privilegiado para o treino de técnicas de entrevista motivacional e aconselhamento em saúde, competências fundamentais do médico de família e de extrema utilidade na prática clínica diária.

No futuro, e apesar dos retrocessos impostos pela situação extraordinária da pandemia COVID-19, os autores continuam a considerar, dado o sucesso obtido, tratar-se de um formato válido e merecedor de replicação noutros contextos, de forma a aferir da sua sustentabilidade e eficácia em números maiores de doentes. Parece possível maximizar a eficiência do processo, reforçando o acompanhamento, ao intercalar as avaliações presenciais com contactos não presenciais (por telefone e/ou e-mail), de modo a conseguir um seguimento mais próximo e uma maior resposta.

Dada a relevância do problema, propõe-se, assim, a replicação do modelo noutras regiões e contextos de CSP, desejavelmente com análise de resultados que permitam a comparação com os do atual estudo e alargando o leque de resultados estudados de entre os dados dos utentes consultados, colhidos nas consultas, por exemplo, incluindo o padrão sociodemográfico, hábitos de vida e sua variação e alguns dados de saúde/doença. De acordo com a oferta localmente disponível, os autores consideram formações prévias pertinentes aquelas que dotem os profissionais de conhecimentos e competências em entrevista motivacional, aconselhamento nutricional e prescrição de exercício físico, para além do protocolo de interligação do ACeS (e.g., formações curtas com psicólogos e nutricionistas do ACeS; e algumas formações e pequenos cursos disponíveis em congressos de MGF). Planeia-se desenvolver uma formação teórico-prática estruturada que permita habilitar outros colegas que tenham interesse em replicar o projeto nas suas unidades, com base no Manual da Consulta MEVs. Dessa forma, seria possível estabelecer outros polos de consulta, alargando o projeto a um maior número de utentes com excesso de peso e obesidade e aferir da utilidade desta estratégia para a população em geral.

Contributo dos autores

Conceptualização, MF, JM, GN e MM; metodologia, MF, JM e MM; validação, MF, JM, GN, FM e MM; investigação, MF, JM, GN, FM e MM; recursos, MF, JM, GN, FM e MM; redação do draft original, MF e JM; revisão, edição e validação do texto final, MF, JM, GN, FM e MM.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O trabalho relatado neste manuscrito não foi objeto de qualquer tipo de financiamento externo (incluindo bolsas e investigação).

Referências bibliográficas

1. Direção-Geral da Saúde. Processo assistencial integrado da pré-obesidade no adulto [Internet]. 2ª ed. Lisboa: DGS; 2016. Available from: https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/processo-assistencial-integrado-da-pre-obesidade-no-adulto1.aspx [ Links ]

2. Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade. Tratamento não cirúrgico da obesidade do adulto: recomendações da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade [Internet]. Lisboa: SPEO; 2018. Available from: https://www.speo-obesidade.pt/wp-content/uploads/2020/06/Ap_Livro-SPEO_v7-.pdf [ Links ]

3. Direção-Geral da Saúde. Aconselhamento breve para a alimentação saudável nos cuidados de saúde primários: modelo de intervenção e ferramentas [Internet]. Lisboa: DGS; 2020. Available from: https://nutrimento.pt/activeapp/wp-content/uploads/2021/01/PNPAS_aconselhamentobreve-.pdf [ Links ]

4. Silva MN, Godinho C, Silva CS, Carvalho L, Teixeira P. Manual de aconselhamento para a mudança comportamental. Lisboa: Direção-Geral da Saúde; 2018. [ Links ]

5. Pedro AR, Amaral O, Escoval A. Literacia em saúde, dos dados à ação: tradução, validação e aplicação do European Health Literacy Survey. Rev Port Saude Publica. 2016;34(3):259-75. [ Links ]

6. Searight HR. Counseling patients in primary care: evidence-based strategies. Am Fam Physician. 2018;98(12):719-28. [ Links ]

7. Allen J, Gay B, Crebolder H, Heyrman J, Svab I, Ram P, et al. A definição europeia de medicina geral e familiar (clínica geral/medicina familiar) [The European definition of family medicine (general practice/family medicine)]. Rev Port Clin Geral. 2005;21(5):511-6. Portuguese [ Links ]

8. Ordem dos Enfermeiros. Regulamento dos padrões de qualidade dos cuidados especializados em enfermagem de saúde familiar [Internet]. Ordem dos Enfermeiros; 2011. Available from: https://www.ordemenfermeiros.pt/arquivo/colegios/Documents/PQCEESaudeFamiliar.pdfLinks ]

9. Watson JC, Steckley PL, McMullen EJ. The role of empathy in promoting change. Psychother Res. 2014;24(3):286-98. [ Links ]

10. Ministério da Saúde. Regulamento do exercício profissional dos enfermeiros: Decreto-Lei nº 161/96, de 4 de setembro (com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 104/98, de 21 de abril) [Internet]. Ordem dos Enfermeiros; 1996. Available from: https://www.ordemenfermeiros.pt/arquivo/AEnfermagem/Documents/REPE.pdfLinks ]

11. Williams B, Mancia G, Spiering W, Rosei EA, Azizi M, Burnier M, et al. 2018 ESC/ESH Guidelines for the management of arterial hypertension. Eur Heart J. 2018;39(33):3021-104. [ Links ]

12. American Diabetes Association. Facilitating behavior change and well-being to improve health outcomes: standards of medical care in diabetes. Diabetes Care. 2021;44(Suppl 1):S53-72. [ Links ]

13. Singh D, Agusti A, Anzueto A, Barnes PJ, Bourbeau J, Celli BR, et al. Global strategy for the diagnosis, management, and prevention of chronic obstructive lung disease: the GOLD science committee report 2019. Eur Respir J. 2019;53(5):1900164. [ Links ]

14. Eckel RH, Jakicic JM, Ard JD, de Jesus JM, Miller NH, Hubbard VS, et al. 2013 AHA/ACC guideline on lifestyle management to reduce cardiovascular risk: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation. 2014;129(25 Suppl 2):S76-99. [ Links ]

15. VanBuskirk KA, Wetherell JL. Motivational interviewing with primary care populations: a systematic review and meta-analysis. J Behav Med. 2014;37(4):768-80. [ Links ]

16. Despacho n.º 6401/2016, de 16 de maio. Diário da República. 2016. II Série;(94). [ Links ]

17. ACeS Almada-Seixal. Relatório anual sobre o acesso a cuidados de saúde - ACeS Almada-Seixal. Lisboa: Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo; 2018. [ Links ]

18. Serviço Nacional de Saúde. Bilhete de identidade dos cuidados de saúde primários: URAP Almada-Seixal [homepage]. Lisboa: SNS; 2021 [cited 2021 Aug 8]. Available from: https://bicsp.min-saude.pt/pt/biufs/3/30033/3150303/Pages/default.aspx [ Links ]

19. Direção-Geral da Saúde. Descodificador de rótulos [homepage]. Lisboa: DGS; 2020 Jan 27 [cited 2022 Aug 26]. Available from: https://alimentacaosaudavel.dgs.pt/descodificador-de-rotulos/ [ Links ]

20. Direção-Geral da Saúde. Atividade física em adultos e idosos [Internet]. Lisboa: DGS; 2018 [cited 2022 Aug 26]. Available from: http://www.panaf.gov.pt/wp-content/uploads/2018/04/PNPAF_Adultos-e-idosos.jpgLinks ]

21. Cosme M, editor. Plano local de saúde - Almada e Seixal 2017-2020. Almada: USP Higeia (ACeS Almada-Seixal); 2017. [ Links ]

22. Anstiss T. Motivational interviewing in primary care. J Clin Psychol Med Settings. 2009;16(1):87-93. [ Links ]

Recebido: 21 de Abril de 2022; Aceito: 17 de Maio de 2023

Endereço para correspondência Marta Freitas E-mail: martaigfreitas@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons