Introdução
No contexto dos cuidados de saúde primários, 1 a multimorbilidade (MM) é definida como a combinação de uma doença crónica com pelo menos uma outra doença, aguda ou crónica, ou com um fator biopsicossocial ou um fator de risco somático. 2
Na Europa existem 50 milhões de pessoas afetadas por este problema. 3 Em Portugal vários estudos foram feitos sobre MM, tendo sido utilizadas metodologias distintas e com populações alvo e grupos etários diferentes. 3-4
Em Portugal, a prevalência de MM na população portuguesa com idades compreendidas entre os 25 e os 74 anos seria de 38,3%, através de estudos de 2015. 5
Um menor grau de escolaridade, a idade mais avançada, o sexo feminino e algumas zonas do país (Lisboa e Vale do Tejo, Norte, Algarve e Alentejo) foram identificados como fatores de risco para MM nos portugueses. 5 Não foi observada associação estatisticamente significativa entre MM e o rendimento económico mensal dos portugueses. 5
Sendo a idade avançada um fator de risco para MM e tendo em conta o envelhecimento crescente da população portuguesa, é expectável que a prevalência de MM na população adulta que recorre às consultas de medicina geral e familiar (MGF) aumente nos próximos anos.
Naturalmente, a MM surge acompanhada de um aumento na procura dos cuidados de saúde primários, 6-7 uma maior despesa em saúde6 e, inegavelmente, pior qualidade de vida. 8 Logicamente, é natural equacionar a associação entre MM com uma maior necessidade de consultas com profissionais de saúde diferentes para tratar as diversas patologias9 e também com um maior grau de dependência em familiares/amigos dada a natureza desta condição, 10-12 o que levanta problemas na sua gestão. 3
Assim sendo, colocam-se as seguintes questões: qual será a carga de doença dos portugueses? Ou de que forma é que a vida diária dos portugueses é afetada pela MM, como é que os mesmos lidam com esta condição e com o tratamento que dela advém?
Uma forma bastante fácil e intuitiva para avaliar o esforço dos portugueses para lidarem com as suas doenças é o preenchimento de um questionário simples, direto e passível de ser compreendido por todos, independentemente do grau académico.
Na Universidade de Bristol, no Reino Unido, em 2017, foi desenvolvido e avaliado um questionário de 10 itens para avaliar a carga terapêutica em pessoas com MM (Multimorbidity Treatment Burden Questionnaire - MTBQ). Depois de demonstrada elevada fiabilidade e validade do questionário, o MTBQ revelou-se um bom instrumento de avaliação da carga terapêutica nestes doentes. 13
Posteriormente, dada a relevância do questionário, este foi adaptado e aplicado noutros países como Dinamarca, 14 China15 e Alemanha, 16 não se tendo encontrado versão em português europeu.
Pelas várias pesquisas efetuadas sobre o tema verificou-se que este questionário não tem versão na língua portuguesa europeia - daí a originalidade do presente estudo.
Considerando a elevada prevalência de MM na população portuguesa e como a área de MGF é das mais afetadas por este problema17-18 é muito importante realizar a adaptação cultural deste questionário aos cidadãos portugueses com MM.
Além de perceber a carga terapêutica da população portuguesa é também importante perceber se existe associação entre esta carga terapêutica e o número de doenças, a idade, o sexo, o contexto familiar, o nível de escolaridade e o rendimento mensal destas pessoas.
É objetivo do presente estudo a adaptação de um questionário com características quantitativas (MTBQ) e sua validação como um instrumento útil para identificar a carga terapêutica que a MM representa em portugueses que padecem desta condição.
Método
Obteve-se parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro em dezembro de 2022.
Para a fase de adaptação cultural foi obtida autorização do autor da escala original em inglês, seguindo-se uma tradução do inglês para o português por dois peritos de língua inglesa e fluentes em português. Seguiu-se a análise das duas versões em português, para perceção de qual seria a mais adequada quanto ao sentido do texto em inglês e com a seleção pela de menor número de palavras por frase e de sílabas por palavra para uma melhor compreensão. Um conjunto de quatro peritos, todos eles doutorados (dois em medicina, um em enfermagem e outro em sociologia) realizou essa análise. Seguiu-se tradução para o inglês por perito nativo de língua portuguesa e fluente em inglês.
Para a fase de validação convergente realizou-se estudo observacional transversal em amostra de conveniência, entre janeiro e fevereiro de 2023, pela aplicação da versão em português do MTBQ, o STPM, em conjunto com um pedido de dados de contexto.
Foi determinado o tamanho da amostra para 10 respostas por cada item em avaliação. O questionário foi aplicado a 100 pessoas, com pelo menos 18 anos, em unidades de saúde e também fora das mesmas, sendo considerado como único critério de exclusão a ausência de MM.
A todos os participantes foi entregue documento de consentimento informado e só depois de assinado foi preenchido o questionário, garantindo-se anonimato, sigilo e confidencialidade das respostas a todos os voluntários participantes.
O questionário foi respondido em dois momentos (10 minutos de intervalo mínimo entre cada um) para verificação de diferentes respostas em diferentes ocasiões. Os participantes foram também questionados sobre eventuais dificuldades de preenchimento e de compreensão, sendo determinado o tempo de resposta.
Para cada questão do STPM, as respostas foram solicitadas em escala Linkert com distribuição: 0. Não se me aplica; 1. Não é difícil; 2. Um pouco difícil; 3. Bastante difícil; 4. Muito difícil; e 5. Extremamente difícil. De forma a tornar os graus de dificuldade da escala mais percetíveis foram adicionados emojis adaptados ao tipo de resposta. Assim, os valores a atingir podem estar entre os limiares 0 e 50.
Realizou-se análise fatorial procedida do conhecimento da aplicabilidade pelo tamanho da amostra pelos testes de KMO (Kaiser Meyer Olkin) e de Esfericidade de Bartlett.
Além das dez questões do MTBQ foram incluídas perguntas quanto ao número de doenças de que o respondente julgava sofrer (duas a quatro ou mais que quatro), ao seu grupo etário (até 34 anos inclusive, 35 a 64 anos e igual ou mais de 65 anos), sexo masculino ou feminino, viver só ou acompanhado, formação académica (abaixo ou acima do 9.º ano de escolaridade) e ter rendimento mensal financeiro inferior ou superior ao ordenado mínimo nacional. Com estas três últimas questões construiu-se o Socio Economic Deprivation Index (SEDI) que se usou, como medida numérica entre 0 e 6, para a avaliação socioeconómica. Realizou-se validação convergente com o SEDI.
Os dados recolhidos foram analisados através do Statistical Package for the Social Sciences software (SPSS, v. 27) com estatística descritiva, inferencial e fatorial.
De forma a perceber se existia normalidade na distribuição das variáveis numéricas aplicou-se o teste Kolmogorov-Smirnov que revelou não-normalidade, pelo que se utilizaram o teste Exato de Fisher e os testes U de Mann-Whitney e de Kruskal-Wallis, sendo definido como significado estatístico um valor p<0,05.
Para avaliar a confiabilidade do questionário foi aplicado o teste alfa de Cronbach de forma a perceber que perguntas deviam ser consideradas, aceitando-se um valor >0,7. Pelo cálculo do coeficiente de correlação intraclasse avaliou-se se as respostas interferiam umas com as outras ou se seriam independentes entre si, definindo-se como aceitável o valor superior a 0,7.
Para medir a fiabilidade efetuou-se a correlação entre o primeiro e o segundo momento de resposta, sendo calculado o coeficiente de Spearman. Para verificação de validade convergente calculou-se a correlação entre STPM e o valor de SEDI.
Resultados
Para análise estatística da amostra foram comparadas as seguintes variáveis: número de doenças, contexto vivencial, idade, nível de escolaridade e rendimento mensal médio (Tabela 1). Para analisar a distribuição dos grupos etários por sexo foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis já que a variável «idade» estava organizada em três grupos etários. Para as restantes variáveis, tendo em conta que eram constituídas por dois grupos, foi utilizado o teste exato de Fisher. Apenas se verificou diferença significativa para o rendimento mensal, que foi mais frequentemente elevado no sexo masculino e mais frequente o valor mais baixo no sexo feminino.
A validação do MTBQ realizou-se em função dos valores de SEDI (valores entre 3 a 6) e dos valores da análise em função da MM.
O teste Kolmogorov-Smirnov com a correção de Lillefors verificou que as variáveis numéricas não tinham distribuição normal, utilizando-se estatística não paramétrica.
Para avaliar a confiabilidade do questionário calculou-se o valor do coeficiente alfa de Cronbach, cujo valor foi de 0,742, tendo sido superior a 0,7 em todas as perguntas (Tabela 2).
O coeficiente de correlação intraclasse obteve um valor de 0,742 sendo, assim, moderado.
Para calcular a fiabilidade aplicou-se a escala em dois tempos distintos, tendo a correlação de Spearman revelado ser muito forte e significativa - ρ=0,916 e p<0,001. Verificou-se para a resposta inicial uma média de 17,2±7,2, mediana de 16 [0-50], variância de 51,5 mínimo de 6 e máximo de 37. E na segunda aplicação uma média de 17,5±7,2, mediana de 16 [0-50], variância de 51,6 mínimo de 8 e máximo de 39.
A análise fatorial revelou teste de Esfericidade de Bartlett com p<0,001 e adequação da utilização da análise fatorial com o teste KMO de 0,791. Três componentes representavam 58,3% da variância total das respostas, sendo eles, de acordo com a Tabela 3, «Sobrecarga terapêutica», «Autovigilância» e «Marcação de consultas».
Para efeito de validação estudou-se a correlação entre a aplicação do questionário MTBQ e o valor de SEDI, que revelou ser uma correlação negativa, muito fraca e não significativa - ρ=-0,117 e p=0,246.
A distribuição do somatório do MTBQ pelo teste U de Mann-Whitney foi não significativa por sexo (p=0,750), grupo etário (p=0,853), viver só ou acompanhado (p=0,745), grau de formação académica (p=0,340) e rendimento mensal (p=0,177).
Na análise por número de doenças verificou-se diferença significativa (p<0,001) - entre duas a quatro doenças, valor médio de MTBQ de 15,1±5,9, mediana de 13,0; para mais de quatro doenças, valor médio de 22,2±7,6, mediana de 21,0 -, mostrando que uma maior carga de doenças se associa a um maior valor de score do MTBQ.
Discussão
Com o aumento da prevalência da MM surge a necessidade de estudar o impacto desta condição na população. Em Portugal ainda existem poucos estudos relativamente à carga terapêutica provocada pela MM. O médico de MGF inserido nos cuidados de saúde primários desempenha um papel fulcral no seguimento e orientação destes doentes e daí a importância deste trabalho. 17-18
No decurso do trabalho de validação, quando questionados sobre eventuais dificuldades de preenchimento, os participantes mostraram dúvidas nas seguintes questões: “Comprar os medicamentos receitados” e “Marcar consultas com profissionais de saúde”. Na primeira questionaram se a dificuldade seria relativa ao preço dos medicamentos ou se estaria relacionada com as idas à farmácia para comprar a medicação. Na segunda surgiram dúvidas se a dificuldade em marcar consultas incluía a falta de disponibilidade por parte dos médicos em ajustar novas consultas às suas agendas já tão preenchidas.
O tempo de resposta registado foi de cinco a sete minutos, o que demonstra a facilidade em responder ao questionário independentemente da faixa etária e do nível de escolaridade dos respondentes.
O questionário MTBQ, originalmente desenvolvido no Reino Unido para avaliação da carga terapêutica em doentes com MM, foi no presente estudo traduzido, adaptado culturalmente e validado seguindo uma metodologia bem definida para a sua utilização em Portugal. Utilizou-se linguagem simples e passível de compreensão, independentemente da faixa etária e do grau académico dos participantes. Desconhecem-se outros instrumentos com o mesmo objetivo na língua portuguesa europeia.
O questionário MTBQ manteve as dez questões originais. Para a sua validação e perceção do impacto individual e social foram adicionadas questões, três delas constituindo o instrumento SEDI e as outras três caracterizando a idade pelo grupo etário, o número de doenças e o sexo. O estudo avaliou a relação entre a carga terapêutica e o estatuto socioeconómico através do valor de SEDI, procurando perceber se uma carga terapêutica mais elevada na gestão de MM se correlaciona com o nível socioeconómico, tornando-se um instrumento pioneiro neste sentido.
Comparativamente ao questionário original, no presente estudo foram incluídos participantes com pelo menos duas doenças, enquanto na investigação do Reino Unido apenas foram incluídas pessoas com pelo menos três doenças, o que torna este estudo mais abrangente. Além disso, o facto de ter incluído pessoas com pelo menos 18 anos e não limitar o estudo à população idosa, como ocorreu nos estudos desenvolvidos na Alemanha e na China, também permitiu uma maior variedade da amostra populacional.
Como era expectável, através da análise da amostra utilizada verificou-se um rendimento mensal médio superior no sexo masculino, não se verificando diferenças significativas, por sexo, quanto ao número de doenças, faixa etária, contexto familiar e grau académico.
Constatou-se que as respostas às perguntas do questionário não interferiam entre si e eram independentes umas das outras pelo valor do ICC calculado (0,742), considerado moderado.
Foi demonstrada uma correlação muito forte e significativa entre o somatório total do questionário nos dois tempos de aplicação do MTBQ, significando fiabilidade.
Na análise fatorial realizada verificou-se a existência de três fatores. As explicações possíveis para estes três fatores, em vez de um só como na investigação original, podem residir na desigualdade da dimensão amostral (100 pessoas no presente estudo e cerca de 1.500 participantes no Reino Unido), em diferenças culturais entre as duas populações em estudo, Portugal e o Reino Unido, na dilação temporal entre ambos os estudos e, porventura, também na prática médica.
Nos estudos realizados na Dinamarca e na China também foi realizada análise fatorial em três componentes. No entanto, a divisão das questões pelos três fatores não foi semelhante em nenhum dos estudos. Na Dinamarca, o fator 1 denominou-se «Medicação e automonitorização», o fator 2 «Contacto com cuidados de saúde e informação sobre saúde» e o fator 3 «Capacidade de superação». Na versão chinesa, os fatores foram denominados de: fator 1 «Medicação e tratamento», fator 2 «Questões médicas» e fator 3 «Gestão diária da própria saúde».
Verificou-se uma correlação negativa, muito fraca e não significativa entre o somatório total do MTBQ e o valor de SEDI, mostrando que a carga terapêutica não se relaciona com o estatuto socioeconómico dos doentes. Este achado é muito importante, uma vez que permite a aplicação deste questionário a qualquer pessoa independentemente do nível socioeconómico, ou seja, pode ser utilizado de forma transversal na população. Verificou-se que o estatuto socioeconómico, inferido pelo valor de SEDI, não tem associação estatisticamente significativa com o número de doenças, o sexo e o grupo etário.
Verificou-se ainda associação significativa entre um maior número de doenças e a carga terapêutica, como em estudos anteriores, 13-14,16 pessoas com MM revelando sobrecarga pelo tratamento da mesma.
Não foi observada associação significativa entre a carga terapêutica e as variáveis sexo e grupo etário, ao contrário de estudos anteriores que demonstraram carga terapêutica superior em idades mais jovens13-14,19 e no sexo feminino. 13,16 Na versão dinamarquesa, a carga terapêutica foi superior no sexo masculino. 14
Apesar de no presente estudo o MTBQ ter demonstrado ser uma boa ferramenta para avaliação da carga terapêutica, com uma boa consistência interna e de fácil compreensão, existem algumas limitações importantes, como por exemplo ter sido escolhida uma amostra de conveniência com um número limitado, mas de tamanho representativo, de participantes e ser questionado apenas o nível de dificuldade.
Será importante estudar qual das questões do MTBQ tem maior carga explicativa da sobrecarga, encontrando assim um instrumento mais simples de aplicar e também quais as morbilidades associadas a uma maior carga terapêutica, como já foi estudado na Europa. No Reino Unido, 13 Dinamarca14 e Alemanha16 verificou-se uma maior associação significativa entre doenças do foro psiquiátrico e uma maior carga terapêutica. Na Dinamarca também se verificou significância estatística entre carga terapêutica mais elevada e enfarte agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e diabetes mellitus.
O trabalho e validação deverá ser prosseguido em Portugal, aplicando este instrumento noutras áreas geográficas.
Conclusão
Realizou-se a adaptação cultural e validação para o português europeu do MTBQ. A versão portuguesa do MTBQ é útil para avaliar a carga terapêutica em doentes com MM, demonstrando boa consistência interna e fiabilidade.
Conclui-se que pessoas com maior número de doenças têm maior carga terapêutica e que o sexo, idade e estatuto socioeconómico não se correlacionam com a carga terapêutica.
Este é o primeiro estudo de adaptação cultural do questionário MTBQ na avaliação de doentes com MM em Portugal. É importante continuar este trabalho, aplicando o MTBQ noutras áreas geográficas do país e estudando qual dos fatores encontrados tem maior influência na sobrecarga terapêutica.
Contributo dos autores
Conceptualização, CB, LMS e JAS; validação, CB, LMS e JAS; análise formal, CB, LMS e JAS; investigação, CB e LMS; recursos, CB e LMS; gestão de dados, CB e LMS; redação do draft original, CB, LMS e JAS; revisão, validação e edição do texto final, CB, LMS e JAS; visualização, CB, LMS e JAS.