O homem acredita mais com os olhos do que com os ouvidos.
Por isso longo é o caminho através de regras e normas, curto e eficaz através do exemplo.
Séneca, século I d.C.
Legado é uma palavra de origem latina que nos remete para um duplo significado: legatum que é algo deixado em testamento e legare que significa delegar, enviar como representante, encarregar. O legado na Medicina é um testemunho de vida que cria nova vida, ou seja, é uma construção de escola enquanto conjunto de processos doutrinais que recriam e renovam o saber instituído e as práticas vigentes.
Alberto Pinto Hespanhol construiu Escola na clínica, no ensino e na investigação. Afirmou-se como uma figura incontornável na Medicina Geral e Familiar portuguesa e contribuiu significativamente para a implementação desta forma muito especial de olhar pela pessoa através das doenças e para lá das doenças.
O Professor Alberto Hespanhol nasceu em 1956, em Vila Nova de Gaia, licenciou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1979 e no último ano como estudante iniciou funções como docente convidado de Anatomia. Prosseguiu a sua carreira médica como médico de Clínica Geral em Espinho, onde foi diretor do centro de saúde durante vários anos. Manteve atividade como docente e abriu o Departamento de Clínica Geral, em 1984, sob a direção do Professor Alexandre Sousa Pinto. Foi o primeiro departamento académico em Portugal dedicado ao ensino e investigação da Clínica Geral, onde em 1986 se iniciou o ensino universitário desta especialidade e em 1999 se implementou o Centro de Saúde de S. João, no Porto, a primeira experiência de um centro de saúde enquadrado nos objetivos e na rede do Serviço Nacional de Saúde, mas completamente autónomo do ponto de vista da gestão clínica, administrativa e financeira. Concluiu o seu doutoramento na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1995, com a defesa da tese Condições de exercício da Clínica Geral no Norte do País, onde estudou a satisfação profissional nos médicos de família da região norte do país, procurando avaliar determinantes e formas de ajudar na melhoria de desempenho dos profissionais. Em 2004 concluiu o mestrado em Gestão e Economia da Saúde, com a defesa da dissertação Motivações na procura de cuidados e satisfação dos utentes do Centro de Saúde São João. Em 2005 prestou provas de agregação baseadas em toda esta experiência, alicerçada numa atividade científica alargada e de qualidade.
Pelo caminho foram muitas as participações em atividades relacionadas com a Medicina Geral e Familiar, a Geriatria e a gestão de serviços de saúde na Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), na Missão para os Cuidados de Saúde Primários, na Universidade Sénior de Espinho, na Associação Portuguesa de Bioética, na Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte, na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, na direção do Departamento de Clínica Geral, no Conselho Científico da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, na Ordem dos Médicos, entre muitas outras. Em cada cargo colocou o seu engenho e o seu empenho, numa atitude exemplar de missão e de trabalho. Em 2023 foi condecorado com a medalha de mérito da Ordem dos Médicos.
Porém, resumir uma carreira às posições ocupadas é uma simplificação grosseira da realidade. Mais do que a responsabilidade assumida em cada cargo que desempenhou, Alberto Hespanhol foi um exemplo de inovação. Na implementação da carreira de Clínica Geral demonstra no seu exercício que a Medicina Geral e Familiar, como mais tarde foi denominada, é mais do que uma versão básica do tratamento das doenças e que a sua posição primária (ou primeira) a coloca sobretudo perto da pessoa no seu contexto biopsicossocial.1 O médico aparece como um elemento ativo e atento, garantindo a acessibilidade, a globalidade e a continuidade de cuidados, num perfil profissional muito marcado pelo contexto em que atua, caracteristicamente mais próximo das pessoas do que das doenças que episodicamente apresentam. Estabelece que é nesse contexto que o médico de família se realiza pela força da relação com os doentes e do trabalho em equipa e que identifica como ameaças a organização e remuneração do trabalho e a deficiente capacidade de gestão dos serviços e de liderança. Desenvolve esta linha de pensamento no projeto que institui no Centro de Saúde de S. João, (2 onde aplica o modelo da orquestra na lógica de produção orientada para os resultados, tendo em conta a satisfação dos doentes como barómetro principal da resolução das necessidades individuais de saúde e de garantia da liberdade e de autonomia do exercício como fator de motivação dos profissionais, com uma liderança que incentiva o desenvolvimento de cada um e ajusta os objetivos ao todo coletivo. Define o acesso como primordial na relação dos Cuidados de Saúde Primários com a população, (3-4 complementando a agenda diária com espaços abertos de consulta sem uma predefinição rígida, mas com regras claras e uma estrutura organizada. Percebe o sentimento de injustiça pela aplicação dos vencimentos fixos que a proletarização da saúde impôs e desenha um modelo misto de pagamento baseado na produtividade, que indexa à racionalidade da prescrição diagnóstica e terapêutica mais do que à simples contagem dos atos praticados, (5 estabelecendo as bases para o modelo que viria a ser adotado na Reforma dos Cuidados de Saúde Primários de 2006, ainda que de forma parcial, o que aliás lhe conferiu a instabilidade conhecida na forma de contabilizar e ponderar o peso específico das diferentes dimensões do trabalho médico nos centros de saúde. (6
É esta medicina orientada para as pessoas, e feita com as pessoas, que aplicou na sua prática diária e que ensinou aos estudantes de Medicina Preventiva, de Medicina Geral e Familiar e de Medicina Comunitária, desde o pré-graduado até à formação contínua, aos mestrados e aos doutoramentos que orientou. Usou o diálogo e o compromisso como ferramentas estratégicas para o desenvolvimento, estabelecendo pontes de entendimento em torno de objetivos comuns capazes de maximizar o potencial individual numa perspetiva de equipa, onde fazia imperar o consenso e o bom senso. Esta atitude reflete também um compromisso com os pilares éticos e deontológicos do exercício médico, demonstrados nas participações em diversas Comissões de Ética para a Saúde na academia e na ARS-Norte, no Registo Nacional do Testamento Vital, no Núcleo de Bioética e Ética Médica da APMGF e no Fundo Solidariedade da Ordem dos Médicos. Mais do que uma ética normalista, advoga uma ética de valores, casuística, baseada nos princípios essenciais e, a partir destes, para uma prática de abordagem possível e desejável. Chama-lhe liderança pelo exemplo e obriga-se à melhor postura capaz de transportar a equipa a níveis superiores de eficiência e efetividade. (7-8
Alberto Pinto Hespanhol é um exemplo, um bom médico e um bom médico de família, que estrutura a sua prática num pensamento ético, alicerçado na experiência histórica acumulada, fundamentado numa prática baseada na evidência e capaz de alavancar a relação entre médico e doentes, percebendo e enquadrando os diferentes papéis e provendo para consolidar os processos que promovem a saúde. É este exemplo que nos deixa e que nos desafia a seguir. É este o seu legado.