Introdução
Os cuidados de saúde primários são a principal via de acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, como tal, o estudo do acesso deve identificar eventuais lacunas, contribuindo para melhorar o seu funcionamento e a prestação de cuidados de saúde.
Não há muita informação sobre a prevalência, os motivos e o perfil dos utentes que faltam às consultas de medicina geral e familiar (MGF), tanto em Portugal como no resto da Europa.1 É necessário obter dados que permitam identificar os principais motivos, desenvolvendo intervenções eficazes para as diminuir e, consequentemente, melhorar a eficiência das Unidades de Saúde Familiar (USF). 2-3
A falta a uma consulta, isto é, a ausência de comparência a uma consulta agendada sem aviso prévio, 4 para além do impacto financeiro para os sistemas de saúde, 2,5-7 tem também impacto na saúde pública,3 nomeadamente através do comprometimento da gestão de doentes crónicos, o aumento das listas de espera, o maior número de internamentos e também um maior recurso ao serviço de urgência (SU). 8 Assim, os motivos das faltas às consultas são um espelho da qualidade da prestação de cuidados de saúde2,5 e também da gestão de recursos. 9 Permitem também perceber a dinâmica do prestador de cuidados de saúde em MGF e o seu funcionamento. A falta a consultas poderá ainda surgir como um indicador de risco de um doente: a falta sistemática de uma criança a consultas de rotina de saúde infanto-juvenil poderá indicar negligência parental. 5
Segundo a literatura, os principais motivos apresentados para a falta a uma consulta são o esquecimento, 2,5-7,10 a incompatibilidade de horários e a incompatibilidade laboral. 5-7,10 O perfil do utente que falta tende a ser mais jovem, 1-2,7-8,10 desempregado2,10 e de classes socioeconómicas mais baixas. 2,7 Quanto ao sexo não existe concordância entre estudos. Em relação ao intervalo de tempo entre o agendamento e a consulta, estudos apontam para um maior número de faltas quando o intervalo é superior a uma ou duas semanas. 2 Além do conhecimento já existente, falta saber as razões expressas por utentes para a falta a consulta, bem como a perspetiva de tempo que o utente julga ter decorrido entre a marcação e a falta.
O objetivo do presente estudo foi perceber e analisar os principais motivos explicitados por utentes para a falta a consultas em MGF e caracterizar a população que mais frequentemente não compareceu à consulta em três unidades de saúde em MGF no centro de Portugal, comparando com os motivos já conhecidos.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional transversal sobre os principais motivos para a falta a consultas em três USF no centro de Portugal que foram, em conveniência, convidadas e que aceitaram: as USF Topázio, Coimbra Centro e Vagos.
Após parecer positivo da Comissão de Ética da ARS Centro e das USF foram obtidos, por investigadores locais designados pelas unidades de saúde, os dados de utentes com consulta agendada e não realizada entre maio e julho de 2022, pela consulta das listagens de consulta do SClínico®. Após esclarecimento sobre a finalidade da investigação e garantia de sigilo, anonimato e confidencialidade das respostas, estes elementos inquiriram os utentes que aceitaram participar através de contacto telefónico efetuado em agosto, de forma a evitar o viés de esquecimento. Foram obtidos dados como idade (depois transformada em variável categórica), sexo, índice Graffar, estado civil, atividade profissional e tipo de família através da consulta de processo e posterior confirmação em entrevista telefónica. Foram também obtidos dados acerca do slot horário da falta, definindo-se, para homogeneização arbitrária consensual pelos horários dos vários médicos, os 8-10, 10-14, 14-18 e 18-20 horas. Foi também questionado há quanto tempo tinha realizado o agendamento e o motivo da falta à consulta, especificando «Esquecimento», «O motivo para ter marcado tinha desaparecido», «Dificuldades de transporte», «Julgar o motivo como não merecendo consulta», «O problema já tinha sido solucionado» e «Outro motivo», podendo o inquirido indicar mais que um. Estes dados foram fornecidos em anonimato à equipa de investigação, que depois os analisou.
Realizou-se estatística descritiva e inferencial, utilizando o teste Kruskal Wallis, com o auxílio do programa SPSS, definindo-se p<0,05 para diferença estatisticamente significativa.
Resultados
Foram contactados 617 utentes que faltaram à consulta agendada, tendo 455 atendido a chamada (73,7%), com aceitação de participação de todos.
Na Tabela 1 identificam-se as associações das variáveis avaliadas nas três USF que apresentam diferença significativa. A USF Topázio foi a que obteve uma frequência de atendimento mais alta (85,9%), seguindo-se a USF Coimbra Centro (75,8%) e a USF Senhora de Vagos (62%). O sexo feminino foi o que mais faltou (59,2%), não sendo a diferença significativa quanto ao sexo (p=0,851). Relativamente ao grupo etário, 44,4% dos utentes que faltaram situavam-se na faixa etária entre os 35 e os 64 anos, 31,4% na faixa com idade inferior a 34 anos e 24,1% na com idade igual ou superior a 65 anos. Quanto ao índice de Graffar destaca-se a classe III com 58,7% dos utentes, classe IV com 22,9% e classe II com 16,5%. Analisando o estado civil verificou-se que 46,3% dos utentes que faltaram eram casados e 36,5% eram solteiros. Relativamente à atividade profissional, 43,9% dos utentes eram trabalhadores a tempo inteiro e 24,1% reformados. Os tipos de família mais frequentes foram a nuclear (67,1%) e a unitária (20,6%).
Verificou-se que marcações no intervalo entre 15 a 30 dias e entre um a dois meses apresentaram uma maior percentagem de faltas (33,2% e 22,7%, respetivamente). As consultas marcadas no próprio dia tiveram menor percentagem de faltas (2,7%).
Os motivos mais frequentes foram o esquecimento (27,6%), as dificuldades de transporte, o problema já ter sido solucionado (8,9% para cada variável) e «julgar o motivo já não merecer consulta» (8,1%). O grupo «outros motivos» teve uma prevalência de 42,8%. Destes, 37,4% foram problemas relacionados com a USF, entre os quais se incluíram doença da(o) médica(o), remarcação de consulta e problemas de comunicação, 18,4% foi a incompatibilidade de horário e 14,7% a incompatibilidade laboral.
Trinta e quatro utentes faltaram por «o problema já ter sido solucionado», sendo que 27 justificaram esta situação. Recorreram a consulta com médico privado 29,6%, 25,9% a outra consulta na unidade, 18,5% a consulta noutra unidade, 18,5% à urgência hospitalar e 7,4% à farmácia ou a outras terapias.
Na Tabela 2 apresenta-se a relação dos motivos para falta a consultas com o grupo etário. O motivo de dificuldades de transporte foi mais frequente nos utentes até aos 34 anos. Verificou-se que os outros motivos apresentados (problemas com a marcação, incompatibilidade laboral e incompatibilidade de horários) e o esquecimento foram mais frequentes na faixa etária entre os 35 e os 64 anos. Já «o motivo do agendamento ter desaparecido» foi mais frequente nos utentes com idade igual ou superior a 65 anos.
Na Tabela 3 apresentam-se as associações grupo etário e índice de Graffar com o horário da falta. Verificou-se que independentemente da idade, o período das 10 às 14 horas foi aquele onde mais utentes faltaram (301 utentes). O período entre as 18 e as 20 horas foi o que teve um menor número de faltas (12 utentes). Relativamente ao índice de Graffar, os utentes de classe média e classe média baixa tiveram um maior número de faltas (58,7% e 22,9%, respetivamente) e que este foi superior no período das 10 horas às 14 horas.
Na Tabela 4 descreve-se a associação «motivo para a falta à consulta» com o «intervalo de tempo de marcação da consulta», verificando-se diferença significativa (p<0,001). Dos utentes que justificaram a falta por esquecimento, 47,3% tinha a consulta marcada entre 15 e 30 dias e 17,6% entre um e dois meses. Em relação às dificuldades de transporte verificou-se que 40% tinham marcação entre 15 e 30 dias. O motivo para consultar «já não merecer consulta» foi referido por 48,3% dos entrevistados com consulta marcada há um e dois meses. Relativamente ao problema solucionado observou-se que 34,5% tinham marcação entre 15 e 30 dias, 27,6% no próprio dia e 20,7% há menos de 15 dias.
A associação entre o intervalo de tempo de marcação da consulta não foi significativamente diferente para o sexo (p=0,721), grupo etário (p=0,765), índice de Graffar (p=0,084) e slot horário (p=0,084).
Relativamente ao estudo do capítulo «outros motivos» (n=163), considerando as variáveis sexo, grupo etário, índice de Graffar e slot horário não se verificou diferença significativa, sendo os mais frequentes a incompatibilidade laboral (14,7%), a incompatibilidade de horários (18,4%), relacionado com a marcação (37,4%) e o isolamento por infeção SARS-CoV-2 (3,1%).
Discussão
Os dados recolhidos e os resultados apresentados fornecem-nos informações importantes que permitirão intervir em cada unidade de saúde estudada, no sentido de diminuir o número de faltas a consultas. Não foi objeto deste trabalho estudar o valor relativo da falta à consulta, mas as razões para tal falta.
Verificou-se que durante três meses, em três USF diferentes, faltaram 617 utentes. Observou-se que utentes do sexo feminino faltaram mais; contudo, também recorreram mais aos serviços de saúde e não se verificou diferença significativa comparando com o sexo masculino.
Ao contrário de outros estudos, 1-2,7-8,10 em Portugal os adultos tendem a faltar mais e os idosos a faltar menos. Poderão ser colocadas algumas hipóteses para justificar esta discrepância, nomeadamente o facto de doentes idosos sofrerem de multimorbilidade11 e, consequentemente, terem mais consultas de forma regular, com marcação sucessiva. Também a informação através dos media sobre a situação pandémica e o alerta para a vulnerabilidade desta faixa etária criou a necessidade urgente de serem avaliados por um médico pelo medo e risco de complicações, pela infeção SARS-CoV-2 e outras doenças. Relativamente à classe socioeconómica e à atividade profissional tendem a faltar mais utentes de classe média e média baixa e trabalhadores a tempo inteiro. A maioria dos utentes que não compareceram à consulta viviam em família nuclear, não tendo sido este dado discutido previamente na literatura.
Assim, percebe-se que o sexo feminino é propício a faltar, nem como a faixa etária entre os 35 e os 64 anos, os casados e em família nuclear, quem está em classe socioeconómica média (índice de Graffar III) e os trabalhadores a tempo inteiro.
Após a caracterização da população era importante perceber os motivos que condicionaram um maior número de faltas. Consultas marcadas há mais de duas semanas tenderam a aumentar o número de faltas, principalmente por motivos de esquecimento, ao contrário das marcações no próprio dia, que apresentaram um número mais baixo de faltas. Será motivo de estudos futuros a falta a consultas com marcação no próprio dia: marcar e não poder ou querer esperar?
Relativamente aos restantes motivos observa-se que as dificuldades de transporte e o facto de o problema já ter sido solucionado também foram dos principais motivos de falta. Quanto ao motivo de dificuldade de transporte, este teve particular incidência nos mais jovens. Poder-se-á questionar a veracidade destes dados ou refletir sobre a possibilidade de ser a faixa etária com maiores dificuldades económicas. Será também importante estudar as razões que levam os utentes com o problema já solucionado a não informar os serviços das unidades de saúde. Será por esquecimento? Será por dificuldades de contacto com a unidade de saúde? Importa também perceber a razão pela qual, havendo uma consulta alternativa na unidade de saúde, não existiu desmarcação da consulta agendada pelos setores administrativos, caso tal consulta tenha sido frequentada. E também saber como é que alguns utentes referem ter tido o problema resolvido por outro médico da unidade de saúde. O conhecimento de desmarcação de consultas será importante, em particular quando estes casos possam ter sido resolvidos por consulta não presencial, por telefone ou email.
Quase 50% dos utentes com consulta marcada há mais de um ou dois meses faltaram por o motivo já não merecer consulta. Alguns motivos de procura de consulta médica são autolimitados, necessitando de uma resposta temporal adequada para abordar o problema na sua fase ativa. A oferta de diversas tipologias de consulta poderá permitir uma resolução destes problemas, podendo contribuir futuramente para uma redução deste motivo de falta.
Já nos outros motivos apresentados verifica-se que problemas relacionados com a USF, a incompatibilidade de horários e a incompatibilidade laboral foram os mais prevalentes. Relativamente ao horário da falta constata-se que o período entre as 10 e as 14 horas foi o que apresentou maior número de faltas em todas as faixas etárias. O horário das 18h às 20h apresentou um menor número de faltas; contudo, um dos motivos que poderá contribuir para esta diminuição é o encerramento da USF Topázio e da USF Senhora de Vagos às 18h.
Assim, tendo em conta os motivos apresentados, poderão ser propostas medidas para minimizar o número e o impacto das faltas nos serviços de saúde. Em relação ao motivo de esquecimento, estudos apontam para o envio de lembretes via telefónica; 7,10 contudo, as taxas de atendimento, especialmente na USF Senhora de Vagos, não se mostraram muito elevadas, sendo necessário recorrer a outros meios para alertar a população e podendo estas medidas reduzir em 60% o número de faltas a consultas. 10 Apesar da efetividade demonstrada desta medida é importante alertar para a questão da confidencialidade, considerando o risco do envio do alerta ou a chamada realizada para aviso serem efetuados para outra pessoa e não para a própria pessoa por não atualização de dados. 2 Em Portugal, em particular em alguns ACeS da área da ARS do Centro, já se encontra implementado, desde setembro de 2021, o envio de lembrete via SMS. Contudo, este pode não ser lido, ser esquecido, ou mesmo ser enviado para um número não existente ou a pessoa não o entender.
A possibilidade de marcação de consultas extra poderá colmatar o número de faltas; contudo, sobrecarregará os horários médicos e aumentará os tempos de espera, podendo afetar os compromissos do utente e não garantido a sua comparência. 10
No Reino Unido foram exibidos cartazes a alertar para o número de faltas a consultas, mas ainda não foi verificada a efetividade desta medida. 2
Além destas medidas, verificou-se que relembrar os utentes da possibilidade de cancelar as marcações reduziu o número de faltas, principalmente nos motivos que permitem um aviso atempado. É importante relembrar que isto só terá efeito caso haja acesso e resposta a contactos com a unidade de saúde. 2
Para tentar minimizar o número de faltas por incompatibilidade de horários e por incompatibilidade laboral poderá ser proposto ao utente que opte pelo horário mais conveniente. 10 O reforço da relação e da comunicação entre o médico e o doente poderá ajudar na identificação de problemas que possam interferir nos horários, permitindo em conjunto arranjar soluções. 7
Estudos sugeriram o pagamento de uma penalização pela falta; contudo, verificou-se que o número de faltas em países como os Estados Unidos, onde a maioria das consultas envolve custos financeiros para o utente, é idêntico. 6 Nem todos as faltas são por esquecimento, existindo razões que de facto impossibilitam o doente de se deslocar à unidade de saúde. 2
É importante o reforço da educação para a saúde dos utentes, utilizando informação de fácil compreensão, promovendo conhecimento e evolução de situações autolimitadas e de situações que não constituam motivos que necessitem de agendamento. É ainda importante relembrar as pessoas que existem diferentes tipos de consulta com diferentes regras de agendamento, permitindo uma melhor utilização das diversas tipologias, um correto acompanhamento médico e, consequentemente, um benefício na sua saúde. A falta a consultas pode comprometer esse objetivo.
Será interessante no futuro e após implementação de algumas das medidas apresentadas ser realizado um estudo para avaliar a eficácia das medidas adotadas.
Como viéses sistemáticos, este trabalho apresenta o da qualidade da resposta dos inquiridos, desejabilidade social e/ou de memória e a qualidade da inquirição pelo médico responsável em cada unidade. O recurso a entidade externa para inquirição teria também outros viéses, não fazendo parte do protocolo aprovado e retirando o interesse à existência de comunicação entre médicos de MGF e os seus utentes.
A obtenção de mais dados, nomeadamente a tipologia de consulta a que os utentes faltaram, o número de patologias ativas por cada utente faltoso, o número de faltas já ocorrida no ano de estudo e a iniciativa da marcação da consulta, se pelo utente, se pelo médico ou pela enfermagem, poderá vir a enriquecer futuros trabalhos.
Conclusão
Os motivos mais frequentes para a falta a consultas em MGF nas três unidades de saúde estudadas, nos meses de maio a julho de 2022, foram, por ordem decrescente, esquecimento, dificuldades de transporte e o problema já ter sido solucionado. Além disso, a incompatibilidade laboral e a incompatibilidade de horários foram também motivos frequentes que implicam a necessidade de encontrar diferentes slots horários para poder acomodar as necessidades. A atualização dos contactos telefónicos, entre outros dados, pelas equipas é importante para uma comunicação com maior eficiência.