Introdução
A sífilis é uma infeção de notificação obrigatória causada pela bactéria Treponema pallidum, de transmissão vertical e sexual, sendo esta última a principal via de transmissão.1-2 Constitui um problema de saúde pública, com uma incidência crescente nos últimos anos1-2 e, no caso particular de Portugal, entre 2015 e 2017 verificou-se um aumento de 16% de casos de sífilis. (3
O seu diagnóstico e tratamento constitui um desafio devido às diversas manifestações clínicas inespecíficas - sendo conhecida como “a grande imitadora” - e à difícil interpretação dos testes serológicos. (2 O tratamento precoce previne a progressão da doença e complicações potencialmente graves, nomeadamente ao nível cardiovascular e neurológico. (1-2 A sintomatologia varia de acordo com o estadio da infeção, podendo ser classificada em sífilis precoce - fase contagiosa -, que inclui a doença primária e secundária, e sífilis tardia, que pode ser latente (assintomática) ou terciária, fase em que o contágio é raro. (1-2 A sífilis primária surge como uma lesão habitualmente genital, ulcerada, indolor com resolução espontânea. Quando não tratada nesta fase, cerca de 25% dos casos evoluem para sífilis secundária em semanas ou meses. (1 Nesta última, as manifestações clínicas são variadas e refletem o envolvimento multissistémico da infeção, podendo incluir sintomas constitucionais (fadiga, anorexia, febre); adenopatias indolores; manifestações cutâneas (muito prevalentes) com erupções maculopapulares eritematosas com descamação periférica, simétricas, com atingimento palmoplantar; alterações dos parâmetros hepáticos e renais; sintomas neurológicos (cefaleias, défices neurológicos); e/ou manifestações visuais/auditivas. (1 O diagnóstico é maioritariamente realizado através de dois testes serológicos positivos (excluindo infeção prévia), recorrendo a um teste não treponémico [RPR (rapid plasma reagin), VDRL (venereal disease research laboratory)] e um teste treponémico [FTA-abs (fluorescent treponemal antibody absorption), TPHA (Treponema pallidum hemaglutination assay), CMIA (ensaio imunológico quimioluminescente magnético)], apesar do método direto através do PCR (polymerase chain reaction) ser o mais fidedigno para o diagnóstico, mas de difícil acesso e inadequado para rastreio. (1,5 A interpretação correta dos vários testes serológicos exige experiência e torna-se um desafio. Após a confirmação diagnóstica, o tratamento de primeira linha é penicilina G benzatínica 2,4 M UI intramuscular em dose única. (4 Por se tratar de uma doença com clínica inespecífica com potencial atingimento multissistémico e relativamente incomum no quotidiano do médico de família pretende-se alertar para esta infeção, com o intuito de tornar o diagnóstico mais célere e instituir tratamento adequado, a fim de reduzir complicações potencialmente graves.
Descrição do caso
Homem, 55 anos, caucasiano, autónomo, vive com a mulher e o filho, repositor num supermercado. Antecedentes de obesidade, anomalia da glicemia em jejum, hábitos etílicos moderados e perturbação da ansiedade, com seguimento hospitalar em medicina interna.
Medicado diariamente com alprazolam 1 mg por dia, metformina 500 mg duas vezes por dia e propanolol 10 mg por dia. Recorre à consulta aberta no centro de saúde em 9/novembro/2022 por quadro de edema inaugural dos membros inferiores, bilateral e simétrico, com cerca de três semanas de evolução e noção de distensão abdominal. Associadamente com agravamento de cansaço generalizado nas últimas semanas. Nega febre, toracalgia, dispneia, queixas urinárias, dor abdominal, náuseas ou vómitos. Apresenta lesões nas palmas das mãos e plantas dos pés, não pruriginosas, desde há duas semanas. Quando questionado refere história de lesão peniana ulcerada, endurecida e indolor, cerca de três meses antes do início do quadro clínico, com resolução espontânea. Nega comportamentos sexuais de risco ou consumo de drogas de abuso. Ao exame objetivo encontra-se consciente, orientado e colaborante, eupneico, apirético, com tensão arterial 187/106 mmHg; escleróticas discretamente ictéricas; telangiectasias malares; auscultação cardíaca sem alterações e pulmonar com ligeira diminuição na base direita, sem ruídos adventícios; abdómen globoso, ascítico, com sinal de Godet francamente positivo (Figura 1), sem circulação colateral; membros inferiores com rarefação pilosa e edema indolor muito marcado e simétrico (Figura 2), até à região inguinal; lesões maculopapulares eritematosas, com descamação periférica, não pruriginosas, nas regiões palmares e plantares (Figuras 3 e 4). Não se identificou qualquer alteração no exame dos órgãos genitais externos.
O doente é referenciado ao serviço de urgência (SU) para avaliação, colocando-se como hipótese diagnóstica descompensação de doença hepática em contexto de sífilis secundária/hepatite sifilítica. No SU são solicitados alguns exames complementares de diagnóstico (Tabela 1), destacando-se analiticamente trombocitopenia com provas de coagulação alteradas, hiperbilirrubinemia, aumento dos parâmetros hepáticos e serologias positivas para sífilis. Na radiografia torácica apresenta derrame pleural à direita (Figura 5) e na ecografia abdominal destacam-se fígado com alterações compatíveis com cirrose hepática, estigmas de doença hepática crónica e esplenomegalia, volumosa ascite e moderado derrame pleural direito.
No SU o doente é medicado com furosemida 40 mg e espironolactona 25 mg intravenosos, com melhoria tensional e dos edemas dos membros inferiores. É realizada notificação no SINAVE e feita referenciação para consulta de infeciologia e o doente tem alta para o domicílio com indicação para cumprir dose única de penicilina G benzatínica 2.4 M UI intramuscular nos cuidados de saúde primários. No dia seguinte dirige-se ao centro de saúde e cumpre o tratamento antibiótico, sendo objetivada melhoria marcada dos edemas; é dada indicação para realização de teste serológico à sua companheira, a quem é prescrita a mesma terapêutica. Teve consulta de infeciologia em 20/dezembro, verificando-se resolução quase total das lesões cutâneas e foi agendada nova consulta dentro de dois meses, com novo estudo analítico, para monitorização serológica.
Comentário
Nos últimos anos tem-se verificado, a nível mundial, uma incidência crescente de sífilis, em ambos os sexos, sendo mais acentuada em homens que têm sexo com homens. (5-6 De realçar que quase metade destes casos no sexo masculino têm coinfeção de VIH. (1 Apesar de a sífilis ser uma doença infeciosa bem reconhecida pela comunidade médica, o largo espetro de manifestações que surgem nas diferentes fases clínicas contribuem para que a sífilis continue ainda a ser subdiagnosticada, podendo progredir para complicações fatais. Segundo um estudo realizado em Portugal, relativo ao período entre 2015 e 2017, a maior parte dos casos de sífilis ocorre em homens e atinge maioritariamente pessoas entre os 45 e os 64 anos. (3
No caso apresentado, o doente recorreu ao centro de saúde principalmente pelos edemas dos membros inferiores, tendo desvalorizado as lesões cutâneas, por não serem pruriginosas ou dolorosas. As principais hipóteses levantadas foram eritema multiforme e sífilis. Todavia, no decorrer da entrevista clínica, o doente referiu episódio de lesão peniana ulcerada e indolor, cerca de três meses antes, que resolveu espontaneamente sem tratamento, tornando-se mais provável o diagnóstico de sífilis secundária. O doente foi questionado acerca de potenciais comportamentos sexuais de risco, que foram negados. Sendo uma lesão indolor de resolução espontânea não é por vezes valorizada pelo doente, protelando o diagnóstico, e tornando-se uma infeção sistémica em cerca de 1/4 destes indivíduos. (1
Num caso suspeito de sífilis existe indicação para rastrear outras doenças sexualmente transmissíveis (DST), entre as quais se destacam VIH 1 e 2, vírus herpes simplex (HSV), clamídia e gonorreia, (7 estudo que foi parcialmente realizado no SU, com resultado negativo. Além das manifestações cutâneas, o doente apresentava estigmas de doença hepática crónica, como telangiectasias na face e rarefação pilosa que, associados a ascite, edema dos membros inferiores e escleróticas ictéricas, sugerem descompensação da doença subjacente. Ao nível ecográfico eram também evidentes sinais de cirrose hepática e esplenomegalia que corroboram esta hipótese. As alterações analíticas das provas de função hepática podem ocorrer com alguma frequência na sífilis, demonstrando atingimento sistémico da doença. (5 Embora seja mais frequente verificar-se um aumento desproporcional da fosfatase alcalina em relação à bilirrubina e valores de aminotransferases normais ou apenas moderadamente aumentados, neste caso o doente apresentava níveis de fosfatase alcalina sérica borderline com ligeira elevação das aminotransferases. (1 Constituem critérios de diagnóstico de uma hepatite sifilítica: a elevação das enzimas hepáticas e serologia positiva para sífilis, associadas a manifestações clínicas sugestivas de sífilis secundária, tendo sido excluídas outras causas passíveis de causar dano hepático; e recuperação célere da função hepática após tratamento antibiótico. (5
No caso apresentado, para além da sífilis como possível causa de dano hepático, deve igualmente ser considerada outra causa: alcoolismo crónico, suportada por alterações analíticas (macrocitose, trombocitopenia, aumento do tempo de tempo de protrombina) e ecográficas (doença hepática crónica, esplenomegalia), podendo a sífilis ter contribuído como fator de descompensação da doença hepática crónica de base. O diagnóstico célere de sífilis permite a instituição de terapêutica disponível e de baixo custo, cuja administração atempada possibilita a recuperação favorável na maioria dos doentes e evita a progressão da infeção, potenciais complicações graves e ainda a disseminação populacional da infeção. Frequentemente o diagnóstico destas infeções é realizado em doentes com sintomatologia sugestiva, mas também ocorre no rastreio durante a gravidez e no contexto oportunístico de grupos de risco e dadores de sangue. (6 O tratamento realizado neste doente com penicilina G benzatínica intramuscular é o tratamento recomendado de primeira linha, embora devesse ter sido administrada aquando do diagnóstico no SU, de forma a evitar a progressão da doença e a sua disseminação. (6,8 A monitorização pós-terapêutica é clínica e serológica através de testes não-treponémicos aos seis e doze meses; todavia, os doseamentos devem ser mais frequentes caso se trate de um indivíduo VIH positivo, follow-up desconhecido ou perante um caso suspeito de reinfeção. (1,6 Por se tratar de uma DST com elevado risco de transmissão nas primeiras fases da infeção, os(as) parceiros(as) de doentes infetados com sífilis têm indicação para tratamento preventivo, mesmo na ausência dos resultados serológicos disponíveis, (8 como se procedeu na consulta no centro de saúde.
Contributo dos autores
Conceptualização, ARL e ARR; metodologia, ARL, ARR e MM; análise formal, ARL, ARR e MM; investigação, ARL, ARR e MM; recursos, ARL, ARR e MM; redação do draft original, ARL e MM; revisão, validação e edição do texto final, ARL, ALM, ARR, ACF e MM; supervisão, ALM e ACF. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.