Introdução
O acidente vascular cerebral (AVC) é atualmente a principal causa de morte em Portugal.1 O AVC isquémico em idade jovem é incomum e apresenta fisiopatologia mais variável. A etiologia cardioembólica é uma importante causa de AVC no jovem, contrariamente à etiologia isquémica que se associa a fatores de risco tradicionais e idade avançada. 2-3 O papel do ecocardiograma no screening de fontes potenciais de cardioembolismo e prevenção secundária de AVC continua a ser alvo de debate, mas em doentes selecionados poderá ter o seu benefício. 4
O objetivo do presente relato de caso é refletir sobre uma causa rara que passa despercebida se não houver um estudo dirigido e que, ao passar despercebida, não é tratada de forma adequada e atempadamente.
Descrição do caso
Mulher de 37 anos, profissional de saúde, pertencente a família nuclear no estádio III no ciclo de Duvall e Apgar familiar funcional. Com antecedentes de hipotiroidismo e AVC isquémico da circulação posterior, aos 22 anos, considerado criptogénicoidiopático, após estudo extenso negativo. Sem fatores de risco cardiovascular tradicionais, hábitos tabágicos ou alcoólicos. Com vida ativa, incluindo prática de exercício físico regular e uma alimentação saudável. Sem antecedentes familiares de doença cardiovascular ou cerebrovascular de relevo. Medicada cronicamente com levotiroxina 0,125 miligramas e ácido acetilsalicílico 100 miligramas.
Recorreu ao serviço de urgência por quadro agudo de hemi-hipostesia esquerda com duas horas de evolução, associado a visão turva bilateral. Ao exame físico encontrava-se apirética, hemodinamicamente estável e sem alterações na auscultação cardíaca e pulmonar. O exame neurológico revelou hemi-hipostesia da sensibilidade superficial álgica à esquerda, prova dos braços estendidos com queda e pronação do membro superior esquerdo em grau 4+ e marcha com desequilíbrio preferencial esquerdo de base discretamente alargada. Analiticamente sem alterações significativas (hemograma, coagulação, ionograma, função renal e hepática e marcadores de necrose do miocárdio) e apresentava um eletrocardiograma de 12 derivações em ritmo sinusal sem qualquer alteração. Realizou uma tomografia computorizada crânio-encefálica, que revelou uma lesão isquémica tálamo-capsular direita recente, confirmada em ressonância magnética crânio-encefálica, sendo posteriormente admitida em internamento com o diagnóstico de AVC isquémico.
Durante o internamento foi submetida a estudo complementar. As análises revelaram um perfil lipídico sem dislipidemia, função tiroideia controlada, pesquisa negativa para mutações associadas a elevado risco trombótico (fator V Leiden, protrombinemia G20210, metilenotetrahidrofolato redutase) e doseamentos de proteína C e S e antitrombina III dentro da normalidade. Serologias de sífilis, vírus da imunodeficiência humana 1 e 2 e hepatites B e C negativas. Estudo de autoimunidade negativo e exame sumário de urina tipo 2 sem alterações.
O eco-doppler carotídeo não demonstrou alterações. O ecocardiograma na modalidade transtorácico (ETT) (Figura 1) revelou uma massa suspeita na aurícula esquerda e o ecocardiograma transesofágico (ETE) (Figura 2) confirmou a presença de uma massa ecodensa aderente ao septo interauricular por um pedículo, móvel, e de dimensões 23x17x15mm, com características sugestivas de mixoma auricular.
Iniciou hipocoagulação com enoxaparina em doses terapêuticas e completou o estudo pré-operatório com uma coronariografia que não revelou doença coronária.
Cumpriu programa de reabilitação, em internamento, com recuperação total dos défices neurológicos e quatro semanas após o evento cerebrovascular foi submetida a cirurgia cardíaca com exérese completa do tumor, sem complicações associadas. A histologia da peça cirúrgica confirmou o diagnóstico de mixoma auricular. A recuperação após cirurgia decorreu sem complicações, com seguimento posterior em consulta de cardiologia e cuidados de saúde primários até aos dois anos de follow-up, sem sintomas do foro cardiovascular, novo evento cerebrovascular ou evidência de recorrência de mixoma. Desde então, mantém seguimento em consulta semestral de medicina geral e familiar, permanecendo assintomática, profissionalmente ativa e mantendo terapêutica com AAS 100 miligramas por dia.
Comentário
Os tumores intracardíacos representam um grupo heterogéneo com apresentação clínica variada e potencial de envolvimento de diferentes estruturas cardíacas. Os tumores primários do coração são raros, com uma incidência de 0,02% e na sua maioria benignos. O mixoma é o mais comum dos tumores intracardíacos (cerca de 50% dos tumores benignos) e acomete frequentemente mulheres entre a terceira e a sexta décadas de vida. 5 Apesar de a maioria dos casos ser esporádica, cerca de 10% surgem em contexto familiar (complexo de Carney). 6 Localiza-se mais frequentemente na aurícula esquerda e é caracterizado por um pedículo de ligação ao septo interauricular na fossa ovalis.7
O presente caso demonstra uma manifestação cardioembólica como forma de apresentação de mixoma auricular. Este tipo de tumores pode ainda manifestar-se por sintomas constitucionais e obstrução intracardíaca.
A doente teria antecedentes de AVC cujo estudo tinha sido inconclusivo, incluindo um ecocardiograma transtorácico que não revelou alterações, nomeadamente fóramen oval patente ou comunicação interauricular. A imagem cardíaca, como a ecocardiografia, a tomografia computorizada e a ressonância magnética cardíaca, é o método de diagnóstico de primeira linha. O ecocardiograma transtorácico apresenta uma sensibilidade de cerca de 90% e especificidade de 95% para deteção de massas intracardíacas, mas as características ecocardiográficas do mixoma são variáveis (ecogenecidade heterogénea com áreas ecoluscentes, aspeto friável, forma globular ou multilobular, superfície lisa ou irregular e, por vezes, calcificações), o que juntamente com o seu crescimento indolente pode dificultar o diagnóstico.
A idade jovem da doente, que vai ao encontro da literatura descrita, e a recorrência de um evento cerebrovascular despoletou um estudo alargado com recurso a imagem cardíaca. As possíveis etiologias de AVC isquémico em adultos jovens encontram-se enumeradas na Tabela 1. Este caso é pertinente pela recorrência de um evento cerebrovascular que foi considerado embólico pela deteção do mixoma auricular. A deteção de mixoma auricular é difícil na ausência de alterações na imagem cardíaca e o atraso no diagnóstico pode levar a consequências devastadoras. A modalidade transesofágica, com uma sensibilidade de quase 100%, é fundamental para o diagnóstico de pequenos mixomas não detetáveis pelo transtorácico, assim como para visualização mais pormenorizada das estruturas anatómicas, determinação do tamanho, localização, local de implantação do tumor (pedículo), relação com estruturas vizinhas, mobilidade da massa e a sua extensão para os grandes vasos, permitindo avaliar a sua ressecabilidade durante a cirurgia. 7 O diagnóstico final é anatomopatológico.
O embolismo ocorre em cerca de 30% dos doentes e relaciona-se com a sua localização intracardíaca e friabilidade do tecido. 8 Pelo risco de recorrência do evento cardioembólico, a resseção cirúrgica total do mixoma é o tratamento de primeira linha, devendo ser realizada precocemente.
O presente caso é raro e demonstra a importância da identificação do mecanismo do AVC através de exames complementares de diagnóstico (Tabela 2), nomeadamente o ecocardiograma cujo tratamento, se atempado e dirigido à causa, evita a recorrência de novo evento cerebrovascular, melhorando o prognóstico dos doentes. Por último, este caso evidencia que perante uma suspeita elevada, por evento cerebrovascular repetido, idade jovem e sexo feminino, a imagem cardíaca - neste caso, o ecocardiograma - tem uma utilidade inegável na investigação diagnóstica de eventos embólicos originados no coração, nomeadamente os tumores de crescimento indolente, como é o caso do mixoma auricular.
Após a cirurgia, o risco de recorrência, ainda que baixo nos casos isolados, obriga a um seguimento regular com ETT, sendo que a maioria dos mixomas recorre nos primeiros quatro anos após a cirurgia. 2-3 O caso descrito trata-se de uma recorrência de um segundo evento cerebrovascular em quinze anos de seguimento. Embora o primeiro evento tenha sido considerado idiopático, o segundo foi associado a cardioembolismo por mixoma auricular. Entre os dois eventos cerebrovasculares a doente encontra-se assintomática, mas a aferição de sintomas compatíveis com tumores intracardíacos, como febre, palpitações ou síncope, são importantes questões a serem colocadas em consultas regulares nos cuidados de saúde primários no contexto de AVC idiopático. Possivelmente um seguimento imagiológico mais minucioso, ao nível dos cuidados de saúde primários, poderia revelar a massa de crescimento indolente.
Por este motivo, a continuidade de seguimento que é promovida ao nível dos cuidados de saúde primários e a articulação com a cardiologia, assume um papel de destaque na deteção de recorrência e gestão deste tipo de patologia.
O seguimento a longo prazo, da doente em questão, nos cuidados de saúde primários é importante para reduzir o impacto do AVC na vida da doente - quer ao nível psicológico quer ao nível das alterações na dinâmica familiar -, apesar da recuperação total dos défices neurológicos e da ausência de sequelas físicas. Além disso, ultrapassada a fase aguda de tratamento, o seguimento da doente pela sua equipa de saúde familiar (médico e enfermeiro de família) é crucial para a prevenção secundária, através do controlo e prevenção dos fatores de risco cardiovascular.
Contributo dos autores
Conceptualização, SM e LG; metodologia, SM e LG; investigação, SM e LG; recursos, SM, LG e NO; redação do draft original, SM e LG; revisão, edição e validação do texto final, SM, LG e NO; visualização, SM, LG e NO; supervisão, LG. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.