Introdução
O síndroma de Saethre-Chotzen é uma doença genética rara, autossómica dominante,1 que se caracteriza por deformidades cranianas e faciais.1-4 Dentro destas deformidades incluem-se a assimetria facial, craniossinostose, principalmente coronal (unilateral ou bilateral), linha frontal do couro cabeludo e implantação das orelhas baixas, pregas helicoidais das orelhas proeminentes, podendo ainda estar presentes estrabismo, ptose e sindactilia. 1-4 Outras manifestações menos comuns incluem alterações músculo-esqueléticas, hipertelorismo, anomalias do palato, baixa estatura e malformações cardíacas. 1-3 O desenvolvimento cognitivo é geralmente normal; no entanto, se ocorrer uma grande deleção genómica, este pode ficar comprometido. Estima-se que a prevalência deste síndroma seja de 1 em cada 25.000 a 50.000 nascimentos. 4 A maior parte dos doentes com síndroma de Saethre-Chotzen apresenta mutações no gene TWIST, cromossoma 7p21.2. 2,5-6
O médico de família, como primeiro ponto de contacto com o sistema de saúde, assume um papel fundamental na identificação precoce de características clínicas sugestivas de síndromas genéticas, devendo estar atento a sinais que o possam sugerir no exame clínico. Para além disso, tem um papel crucial no acompanhamento longitudinal destes casos dado o seu impacto individual, familiar e na descendência futura.
Com este caso pretende-se apresentar um síndroma genético raro, alertando para os sinais que o caracterizam e para a importância do médico de família na gestão dos cuidados de saúde destes doentes e das suas famílias.
Descrição do caso
Caracterização do utente
ADTG, sexo masculino, quatro anos de idade, família nuclear - vive com pai e mãe. Tem uma irmã uterina de 18 anos, que vive com a tia materna. O genograma está representado na Figura 1. Trata-se de uma família de classe média baixa, segundo a classificação de Graffar.
Em relação aos antecedentes pessoais, tratou-se de uma gravidez de baixo risco, vigiada nos cuidados de saúde primários, sem intercorrências. Apgar 5-10-10 ao nascimento com necessidade de ventilação assistida.
Desconheciam-se, à data do nascimento da criança, antecedentes familiares de relevo. A criança não faz medicação habitual e não apresenta alergias medicamentosas ou alimentares conhecidas.
História da situação
A criança foi observada na primeira consulta de vigilância nos cuidados de saúde primários aos 15 dias de vida. Ao exame objetivo observou-se assimetria facial e ocular, características semelhantes à mãe. Dada esta assimetria foi referenciado a consulta de pediatria para estudo. Após observação e confirmação das alterações no exame físico foi referenciado a consulta de genética médica, onde se confirmou a mutação genética do síndroma de Saethre-Chotzen. Na sequência do resultado foi realizado estudo genético à família, tendo-se confirmado que a mãe da criança é portadora da mesma variante. A irmã uterina não apresenta síndroma de Saethre-Chotzen. A tia materna e o avô materno da criança não foram estudados; no entanto, clinicamente apresentam as mesmas assimetrias craniofaciais e oculares.
A Figura 2 apresenta uma fotografia da criança com 20 dias de vida e a Figura 3 apresenta uma fotografia da mãe com cerca de dois anos de idade, ambas prévias ao diagnóstico. As Figuras 4 e 5 apresentam fotografias mais recentes da criança. Todas estas evidenciam as alterações craniofaciais e oculares características do síndroma de Saethre-Chotzen.
Aos dois anos de idade, a criança foi referenciada a neurocirurgia pediátrica, onde se mantém em seguimento. Aos três anos de idade foi submetida a cirurgia de craniossinostose bicoronal, uma vez que a sutura sagital, que até então estava completamente patente, se apresentava encerrada e com crista óssea. Na consulta de reavaliação após cirurgia verificou-se desenvolvimento de turrencefalia que a neurocirurgia considerou que não justificava intervenção. Mantém-se em vigilância nesta consulta.
Aos três anos de idade, na consulta de vigilância de saúde infantil e juvenil, na Unidade de Saúde Familiar, a criança apresentava boa progressão estaturoponderal; no entanto, evidenciava dificuldades ao nível da concentração e atenção e dificuldades na linguagem. Estas alterações foram posteriormente corroboradas pela educadora de infância. Neste âmbito, foi solicitada avaliação psicológica. Dos subtestes que foi possível aplicar, a psicóloga relatou que a criança apresentava muita dificuldade em compreender as instruções e em completar as tarefas. Em todos os testes obtiveram-se resultados inferiores à média esperada para a sua idade. Em termos de motricidade fina, a criança demonstrava também limitações em copiar uma imagem, não possuindo um traçado firme e o seu desenho encontrava-se ainda na fase de rabisco simples. Considerando as limitações identificadas e a necessidade de intervenção precoce, o médico de família encaminhou a criança para a Equipa Local de Intervenção (ELI) da área de residência, iniciando também acompanhamento em terapia da fala e terapia ocupacional.
Aos quatro anos de idade, na consulta de seguimento de pediatria, verificou-se que cumpria apenas os requisitos para os três anos de idade. No entanto, apresentava já melhorias na linguagem com as sessões de terapia da fala. Nesta consulta foi referenciado a consulta de pediatria do desenvolvimento.
Comentário
O médico de família conhece o indivíduo, a família e a comunidade onde este se insere, adaptando a sua prática para uma abordagem centrada na pessoa.
A criança com síndroma de Saethre-Chotzen pode constituir um grande desafio clínico, dada a complexidade que exige ao nível da gestão dos cuidados ao doente e apoio à família. Não se tratando de um caso inédito, pois já existem alguns casos relatados na literatura,1 é importante realçar o papel fundamental que o médico de família assume neste processo, nomeadamente na identificação precoce de sinais ou sintomas que caracterizam o síndroma genético, no acompanhamento longitudinal da criança, na sincronização dos diversos cuidados e na realização das referenciações necessárias. É-lhe ainda depositada a confiança dos pais que recorrem frequentemente com dúvidas. No caso em apreço, a mãe da criança recorreu múltiplas vezes aos cuidados de saúde para tirar dúvidas relacionadas com o filho.
A realização de consultas de vigilância no âmbito da medicina geral e familiar é, por isso, fundamental, considerando os autores que este caso reflete competências do médico de família, nomeadamente de gestão dos cuidados de saúde primários, e evidencia o seu papel como primeiro ponto de contacto na prestação de cuidados.
Contributo dos autores
Conceptualização, PA; metodologia, PA; software, PA; análise formal, PA e TC; investigação, PA; recursos, PA e LP; curadoria de dados, PA; redação do draft original, PA; revisão, validação e edição do texto final, PA, TC, LP e AB. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.