Introdução
A instabilidade do ecossistema vaginal pode ter origem em diferentes fatores psicológicos ou externos. A flora vaginal é constituída por diferentes microorganismos que promovem uma interação equilibrada entre o microbioma vaginal, o estado hormonal, os produtos do metabolismo microbiano e a resposta imune do hospedeiro.1 As vulvovaginites são um motivo de consulta frequente nos cuidados de saúde primários. A vaginose bacteriana, candidíase vaginal e tricomoníase constituem cerca de 90% de todos os diagnósticos. Contudo, existe um número considerável de mulheres que podem ter uma apresentação clínica semelhante a uma candidíase vaginal, mas que sofrem de uma patologia designada vaginose citolítica. (2
A vaginose citolítica caracteriza-se por uma proliferação excessiva de lactobacilos, sendo que a etiologia deste aumento ainda não foi devidamente esclarecida. Este aumento desmesurado isoladamente ou em associação com outros microorganismos causa uma extensa citólise das células da camada intermédia da vagina. As mulheres referem habitualmente corrimento excessivo, prurido e/ou ardor vulvovaginais, dispareunia e disúria. (3-4 Estes sintomas podem ainda ser mais marcados na fase lútea do ciclo menstrual, atingindo um pico antes da menstruação. Para o diagnóstico desta entidade deve ser realizada uma colheita cuidadosa da história clínica, bem como o exame ginecológico que deve incluir a recolha de amostra de corrimento vaginal para exame microscópico. O tratamento da vaginose citolítica consiste no alívio dos sintomas, sendo que para tal é necessária a redução de lactobacilos e, consequentemente, aumento do pH vaginal. O tratamento compreende modificações nos cuidados íntimos da mulher e banhos de assento ou irrigações vaginais com bicarbonato de sódio. (2
A vaginose citolítica é uma entidade subdiagnosticada e que pode constituir um verdadeiro desafio diagnóstico tanto nos cuidados de saúde primários como nas consultas de ginecologia, podendo levar a diagnósticos errados e escolhas de tratamento inadequadas. Assim, é fundamental o conhecimento desta patologia para que seja realizado um correto diagnóstico e tratamento, de forma a serem prestados os melhores cuidados de saúde à doente.
Descrição do caso
Caso clínico
Descreve-se o caso de uma mulher de 20 anos de idade, solteira, caucasiana, que completou o 12.º ano de escolaridade e profissionalmente é empregada de limpeza. Vive com os pais e integra-se numa família nuclear na fase V do ciclo de Duvall. Como antecedentes ginecológicos menarca aos 14 anos de idade, com ciclos regulares. Atualmente usa como método contracetivo o implante subcutâneo de etonogestrel 68 mg Implanon NXT®, sem outra medicação habitual. Coitarca aos 16 anos, tendo um parceiro sexual. Atualmente sem vida sexual ativa. A citologia cervicovaginal realizada em 2018 foi negativa para lesão intraepitelial ou malignidade, apresentando vaginose bacteriana, que foi medicada e resolvida com sucesso. Sem outros antecedentes pessoais ou familiares de relevo. Apresenta hábitos tabágicos de quatro cigarros por dia há dois anos 0,4 Unidades Maço Ano. Sem consumos de álcool ou outras drogas.
História da doença atual
A utente recorre a uma consulta de planeamento familiar por queixas de corrimento vaginal abundante, com necessidade de uso de penso diário, prurido e alteração de odor com um mês de evolução. Nega comportamentos sexuais de risco.
Ao exame objetivo apresentava grandes lábios e introito vaginal ruborizados, sem lesões; no exame com espéculo evidenciava colo aparentemente sem lesões, com corrimento mucoso abundante, não aderente, não arejado e sem cheiro; toque bimanual sem alterações de relevo. É efetuada citologia cervico-vaginal em lâmina. Pelas queixas inespecíficas, a utente foi medicada empiricamente com cloreto dequalínio 10 mg, uma vez dia, durante seis dias.
Após três semanas, a utente mantinha as queixas de prurido e corrimento vaginal abundante, sem qualquer melhoria com a medicação prescrita, que cumpriu. A citologia cervico-vaginal apresentava inflamação e foi negativa para lesão intraepitelial ou malignidade, sem outras alterações. Foi então pedida cultura de exsudado vaginal e agendada nova consulta em quatro semanas.
Nesta consulta a utente traz o resultado do exsudado, que apresentava ao exame direto numerosas células epiteliais e, com a coloração de Gram, numerosos bacilos de Doderlein. De realçar a ausência de bactérias, fungos ou parasitas Tabela 1. Tendo em conta a sintomatologia da utente, os achados no exame objetivo e os exames complementares de diagnóstico foi assumido como diagnóstico mais provável a vaginose citolítica.
Foram dadas recomendações adequadas para o tratamento da vaginose citolítica, sendo estas a de evitar o uso de roupa interior quando possível e, quando necessária, preferir tecidos naturais como o algodão, o uso de produto de higiene íntima adequado e descontinuar o uso de tampões até ficar assintomática. O tratamento prescrito foram banhos de acento realizados com a mistura de 30-60 g de bicarbonato de sódio em 5 cm de água na bacia ou bidé, duas vezes por dia durante 15 minutos, durante uma semana. Foi agendada consulta de reavaliação em três semanas, sendo que a utente cumpriu a terapêutica e encontrava-se assintomática.
Comentário
A vagina é um ecossistema dinâmico, sendo que a sua homeostasia depende de interações mutuamente benéficas entre a mulher e os microorganismos que nela residem. Este pode ser desequilibrado por uma grande variedade de fatores intrínsecos ou extrínsecos. As alterações hormonais que definem as diferentes fases reprodutivas da vida da mulher são uma forte influência da microbiota vaginal. Contudo, existem outras possíveis influências, como a escolha de diferentes métodos contracetivos, uso de produtos de higiene pessoal, medicamentos, presença de doenças sexualmente transmissíveis, bem como inúmeros fatores relacionados com os comportamentos sexuais. (5 Os Lactobacillus são constituintes fundamentais do ecossistema vaginal, sendo que já foram identificadas várias espécies. A depleção destes microorganismos pode favorecer o aparecimento de infeções. (6 Esta bactéria gram-positiva tem um papel fundamental na manutenção do pH ácido da vagina, pois é responsável pela conversão de glicogénio em ácido lático. Adicionalmente, os Lactobacillus inibem o crescimento excessivo de outros microorganismos presentes no ecossistema vaginal, como a Gardnerella vaginalis, E. Coli, Candida albicans e Mobiluncus spp, através da produção de substâncias antimicrobianas, como o peróxido de hidrogénio e bacteriocinas, inibição da aderência de fungos às células epiteliais da vagina e competição por recetores e por nutrientes. Sabe-se hoje que a presença destes Lactobacillus parece ter um papel protetor contra a candidíase vaginal. (7 Contudo, a proliferação excessiva destes microorganismos, que pode acontecer em algumas mulheres em idade reprodutiva, promove uma extensa citólise das células da camada intermédia da vagina levando ao desenvolvimento da vaginose citolítica. (4 Esta é uma entidade pouco frequente, apresentando uma prevalência de 1 a 7%, tendo um pico de incidência entre os 25 e os 40 anos. Esta entidade caracteriza-se por corrimento vaginal excessivo, prurido, ardor vulvovaginal, dispareunia e disúria. Dado que a apresentação clínica é em tudo semelhante a outras infeções vulvovaginais, para um correto diagnóstico é necessário um elevado nível de suspeição. (2
Face a um caso clínico como o apresentado, com sintomas de corrimento vaginal e prurido, a primeira hipótese diagnóstica deverá considerar a prevalência das infeções vulvovaginais mais frequentemente associadas a corrimento vaginal. (2
A tricomoníase é causada pelo protozoário flagelado Trichomonas vaginalis. Nos adultos é exclusivamente transmitido por via sexual. As mulheres podem apresentar diversos sintomas desde corrimento vaginal, que pode ser espumoso e arejado ou amarelo-esverdeado, eritema vulvar e vaginite, colo «framboesa-like», prurido vulvar, disúria ou ainda serem assintomáticas 10-50%.8-9 Apesar do eritema vulvar e prurido, o corrimento apresentado não tinha características concordantes. Assim, esta patologia foi apontada como menos provável.
A candidíase vulvovaginal é uma das infeções mais frequentes, sendo que 75% das mulheres terão pelo menos um episódio na sua vida. (10 É causada em 90% das vezes por um sobrecrescimento de Candida albicans. As restantes surgem devido a outras espécies de Candida sp. (9 Manifesta-se por um corrimento vaginal branco, grumoso e espesso, inodoro, que forma placas aderentes às paredes vaginais, eritema, edema e fissuras vulvares. Frequentemente há queixas de ardor, prurido vulvar e dispareunia. (8-10 Apesar do corrimento apresentado pela utente não ser semelhante ao típico apresentado numa candidíase, esta hipótese foi considerada devido à elevada frequência da infeção, da existência de prurido e eritema vulvovaginal.
A vaginose bacteriana é um síndroma clínico polimicrobiano causado pela substituição da flora por comunidades bacterianas complexas, muitas delas não cultiváveis e com metabolismo interdependente, onde populações anaeróbicas provavelmente desempenham um papel importante. (11 Há sintomas e sinais clássicos, mas estes estão frequentemente ausentes 50% das mulheres ou são inespecíficos. Pode existir um corrimento branco-acinzentado, fino e homogéneo, com odor intenso a peixe, não irritativo. A recorrência da infeção é frequente, qualquer que seja a terapêutica usada. (9,11 Pela referência da utente a um odor desagradável do corrimento, pelas queixas inespecíficas apresentadas e ainda pela infeção prévia por vaginose bacteriana, esta identidade foi assumida como o diagnóstico mais provável. A utente foi, por isso, medicada com cloreto dequalínio. Apesar do cumprimento terapêutico, os sintomas da utente mantiveram-se. A cultura do exsudado permitiu excluir a presença de bactérias, fungos e parasitas e, desta forma, excluir as três infeções vulvovaginais mais frequentes. (2,9,11 Este facto poderia ter levado à desvalorização das queixas da utente. Contudo, é de realçar a necessidade de explorar a sintomatologia e procurar outras hipóteses de diagnóstico que justifiquem o quadro apresentado. No exsudado, na coloração de Gram foram encontrados numerosos bacilos de Doderlein. Esta informação permitiu que a hipótese diagnóstica de vaginose citolítica fosse colocada. Após revisão de literatura foi possível compreender que os sintomas, o exame objetivo e os exames complementares de diagnóstico corroboravam esta hipótese clínica. A sintomatologia apresentada pela doente de corrimento vaginal abundante e prurido vulvovaginal são característicos da vaginose citolítica. Ao exame objetivo desta entidade, a aparência vulvar pode ser normal ou apresentar edema e eritema, sendo que no exame com espéculo é característico o corrimento vaginal branco, espumoso ou com aspeto de “requeijão”. No caso clínico exposto, a doente apresentava eritema vulvar e corrimento vaginal abundante, não aderente, não arejado e sem cheiro. Tendo em conta os resultados da análise microscópica de corrimento vaginal e a clínica apresentada assumiu-se o diagnóstico de vaginose citolítica como o mais provável. Para um diagnóstico definitivo seria necessário recolher uma amostra de corrimento vaginal e realizar um exame microscópico a fresco. Assim, foi realizada a prova terapêutica. Foram sugeridas alterações nos cuidados de higiene íntima, bem como banhos de assento com bicarbonato de sódio, de acordo com a preferência da doente. À data de reavaliação, a doente apresentava remissão da sintomatologia.
A vaginose citolítica é uma entidade que pode levar a complicações psicológicas e sexuais e que pode interferir na qualidade de vida de uma mulher.2 Quando comparada com as outras infeções vulvovaginais existentes, a prevalência da vaginose citolítica faz com que esta seja uma identidade pouco frequente nos cuidados de saúde primários. Contudo, com este caso pretende-se alertar os clínicos para a existência desta patologia que pode muitas vezes passar despercebida ou ser diagnosticada erradamente, comprometendo a saúde da mulher.