A anemia na gravidez, definida por uma hemoglobina (Hb) inferior a 11 g/dl no primeiro e terceiro trimestres, a 10,5 g/dl no segundo trimestre e a 10 g/dl no puerpério, constitui um problema de saúde importante, quer pelas suas consequências quer pela sua prevalência.1 A Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou uma prevalência de 38% a nível global e de 26% na Europa. 2 Em Portugal, o estudo EMPIRE descreveu uma prevalência de anemia gestacional de 54,2%.3 Neste sentido, o rastreio da anemia na gestação é universalmente aceite, de acordo com as orientações internacionais, através de um hemograma, pelo menos na primeira consulta pré-natal. Em Portugal, de acordo com o Programa Nacional de Vigilância de Gravidez de Baixo Risco, o hemograma deve também ser realizado entre as 24 e 28 e entre as 32 e 34 semanas de gestação. 4
A ferropenia na gravidez, definida por um ferro sérico inferior a 30 ng/ml, é a causa mais comum de anemia gestacional, estimando-se uma prevalência de 42%.2 Num estudo prospetivo realizado em Portugal e publicado em 2016 observou-se que 38% das mulheres grávidas tinham ferropenia, mas apenas 2,5% tinham anemia. 5 O défice de ferro inclui um espectro que vai desde a depleção de ferro sem anemia até à anemia ferropénica, que se associa a resultados adversos na saúde materna, aumentando o risco da necessidade de transfusão sanguínea periparto, pré-eclâmpsia, descolamento prematuro da placenta normalmente inserida, falência cardíaca e até morte na grávida. 1,6 No feto, as consequências da ferropenia são raras, porque a placenta é responsável pelo transporte ativo de ferro. Contudo, anemias ferropénicas graves, com Hb inferior a 7 g/dl, associam-se a parto pré-termo, restrição do crescimento intrauterino e até morte fetal.1 No entanto, o doseamento de ferritina por rotina na gravidez para rastreio de ferropenia não é consensual. 7 De acordo com as recomendações publicadas pela United States Preventive Services Task Force (USPSTF) em 2015, não existe evidência suficiente para recomendar o rastreio universal de ferropenia nas grávidas na ausência de anemia. 8 Outros autores, por sua vez, defendem este procedimento, justificando que uma percentagem importante de grávidas com ferropenia sem anemia podem ser privadas de tratamento adequado com ferro, não havendo prejuízo materno e fetal em dosear ferritina. 9-10 Num estudo de coorte retrospetivo, que incluiu 44.552 grávidas no Canadá, publicado em 2021, observou-se que a ferritina foi doseada em 59%, maioritariamente no primeiro trimestre (71,4%) quando o risco de ferropenia é mais baixo. Dos dados recolhidos verificou-se que 25,2% das mulheres grávidas tinham insuficiência de ferro (30-44 µg/L) e que 52,8% tinham défice de ferro (≤29 µg/L). A anemia (Hb ≤10,5 g/dl) foi observada em apenas 8,3% e a ferritina avaliada em 22 a 67% dos casos, dependendo da categoria de gravidade da anemia, correspondendo o valor percentual mais baixo a uma categoria mais ligeira de anemia e o mais elevado a uma categoria mais grave. Verificou-se ainda que a avaliação de ferritina foi menos frequente entre as grávidas de estatuto socioeconómico mais baixo, sugerindo disparidades no acesso a cuidados de saúde. 9 Outro estudo neste âmbito, publicado em 2019, avaliou prospetivamente 102 grávidas não anémicas no primeiro trimestre, adicionando aos exames de vigilância a ferritina e a saturação da transferrina. Observou-se que 42% das grávidas tinham deficiência de ferro, pelo que estes autores defendem que uma vez que não existem riscos em rastrear a deficiência de ferro na gravidez, parece prudente errar por cautela e rastrear todas as grávidas até que exista evidência robusta nesta matéria, referindo que as recomendações da USPSTF podem necessitar de ser revistas. 10
Na mesma medida em que o rastreio da ferropenia gestacional não é consensual, também a suplementação universal com ferro na gravidez causa divergências entre autores. Várias entidades internacionais como a OMS, a International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO), o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) ou o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) recomendam a suplementação universal com ferro na gravidez, atendendo à elevada prevalência de ferropenia na gravidez e aos riscos maternos e fetais que podem decorrer de uma anemia ferropénica.7 No entanto, outros autores advogam que, apesar do inequívoco aumento das necessidades de ferro na gravidez, não é clara a evidência de que a suplementação com ferro por rotina melhore a saúde materna e fetal. A USPSTF, na revisão publicada em 2015, concluiu que apesar de poder haver uma melhoria nos índices hematológicos maternos não existia evidência robusta do benefício clínico materno e/ou fetal da suplementação universal com ferro. 7 No mesmo ano, um trabalho publicado na base de dados da Cochrane concluiu que a suplementação com ferro na gravidez reduz o risco de anemia e ferropenia materna, mas que outros benefícios clínicos na saúde materna e infantil são menos claros. 11
Em Portugal, as recomendações para o rastreio de ferropenia e suplementação com ferro na gravidez também não são consensuais, podendo-se verificar muitas discrepâncias na prática clínica. Ao abrigo do Programa Nacional de Vigilância de Gravidez de Baixo Risco, o rastreio universal de ferropenia na gravidez não está preconizado, sugerindo-se a suplementação universal com ferro, 30 a 60 mg de ferro elementar/dia, na ausência de contraindicações, como a elevação dos valores de Hb e a presença de fatores de risco para pré-eclâmpsia. 4 No entanto, de acordo com a Norma da Direção-Geral da Saúde n.º 030/2013, atualizada em 2015, na gravidez está recomendado o doseamento de ferritina antes de se iniciar a suplementação com ferro (nível de evidência B, grau de recomendação I), que deverá ser iniciado se os valores de ferritina forem inferiores a 70 ng/ml (nível de evidência A, grau de recomendação II). 12 A Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal (SPOMMF), por sua vez, advoga o rastreio universal de ferropenia na gravidez através do doseamento de ferritina na pré-conceção e/ou no primeiro trimestre, entre as 24 e 28 semanas de gestação e no terceiro trimestre, justificado pela elevada prevalência de ferropenia, mesmo na ausência de anemia. 1 No que respeita à suplementação com ferro na gravidez defende que não existe consenso que a suplementação universal com ferro na gravidez melhore os desfechos maternos e neonatais, referindo ainda que a suplementação desnecessária com ferro pode mesmo associar-se a desfechos adversos, como parto pré-termo, baixo peso ao nascer e diabetes gestacional. 13 Assim, relativamente à suplementação com ferro, a SPOMMF defende que se destina apenas a grávidas com ferritina inferior a 30 ng/dl, a quem deve ser oferecido ferro na dose mínima de 60 mg de ferro elementar/dia. 1
Desta forma, observa-se uma heterogeneidade nas linhas orientadoras no que diz respeito quer ao doseamento de ferritina na ausência de anemia, quer à suplementação universal com ferro na gravidez. Esta falta de consenso nas recomendações encerra, em si, dúvidas e dificuldades na prática clínica, obrigando a uma reflexão cuidada da evidência apresentada. Na ausência de anemia não existe benefício comprovado em avaliar a existência de ferropenia na gravidez. No entanto, considerando a prevalência estimada de ferropenia na gravidez, mesmo na ausência de anemia, importa identificar quais são as grávidas que beneficiam com o rastreio de ferropenia, que não acarreta por si só consequências negativas quer para a mãe quer para o feto. No que concerne à recomendação para a suplementação universal com ferro na gravidez justifica-se pela elevada prevalência de ferropenia na gravidez e prende-se, em grande parte, à ausência do rastreio universal de ferritina na gravidez. Não obstante, é fundamental refletir que nem todas as mulheres grávidas são elegíveis para esta suplementação e que a mesma pode inclusivamente acarretar efeitos deletérios maternos e/ou fetais.