Um sistema de saúde é uma organização complexa de instituições, recursos e pessoas que visa promover, restaurar e manter a saúde da população. Inclui diferentes níveis de cuidados, serviços e profissionais, além de preocupações com a eficácia, financiamento, sustentabilidade, equidade, governança e regulação. Um sistema de saúde bem estruturado é fundamental para aumentar a longevidade das pessoas, melhorar a qualidade de vida, reduzir as desigualdades, promover o bem-estar social e fortalecer a sociedade. 1 Em Portugal, os princípios do Estado Social garantem a universalidade da proteção da saúde pela intervenção direta através do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e indireta na regulação do sistema, que inclui os prestadores privados e empresariais, a indústria farmacêutica, o setor social e a produção de conhecimento com vista à inovação e desenvolvimento nas faculdades e centros de investigação. Cada um tem funções específicas e contribui para um todo que ultrapassa largamente a simples soma das partes. Historicamente, a operacionalização do SNS sempre incluiu a complementaridade com os restantes operadores no sistema de saúde, ainda que nem sempre completamente transparente na forma de interação. Este cenário criou um clima de desconfiança, consumidor de recursos e impediente de sinergias construtivas. A opção de retirar a complementaridade público-privada na revisão da Lei de Bases de 2019 traduz isto mesmo, sacrificando o rigor da análise e decisão ao imediatismo da opinião mediática. Em resultado, aumentou a fragilidade de um SNS suborçamentado, descoordenado e com deficiências evidentes de gestão, agravadas de forma significativa pelos constrangimentos organizacionais impostos no contexto do combate à pandemia. Este SNS, agora orgulhosamente só num mercado concorrencial que realmente não existe, recusa-se a analisar os determinantes e capitula numa estratégia de mudança de chefias a bem da integração de cuidados, como se esta acontecesse simplesmente pela aglutinação dos conselhos de administração, sem mudanças dos processos reais.
Um dos aspetos em que os problemas são mais evidentes é o acesso. A acessibilidade em saúde define-se pela capacidade das pessoas em obterem, de forma fácil e oportuna, os cuidados que necessitam. 2 Envolve a estrutura das unidades de saúde e engloba aspetos económicos, geográficos, culturais e de informação. Conceptualmente, está orientada para o utilizador, que define a necessidade do contacto, e indexada a questões de equidade e justiça social na perspetiva de que os recursos não são ilimitados, importando ajustar as respostas às metas globais para a saúde de todos e às expectativas individuais quanto à sua concretização em cada um. Segundo dados oficiais do Ministério da Saúde, desde janeiro de 2019, passamos de 713.981 utentes sem médico de família atribuído para 1.647.700, em janeiro de 2024, de 822 pessoas a aguardar vaga em cuidados continuados para 870, de 240.946 inscritos em SIGIC para 261.706 (dezembro/2023). De uma forma mais qualitativa, percebemos uma insatisfação crescente da população que se manifesta num crescimento dos seguros complementares de saúde e num maior recurso aos serviços de saúde privados. É uma realidade preocupante que chamou a atenção da tutela na proposta do Plano de Emergência da Saúde de 29 de maio de 2024. No total das 54 medidas dos cinco eixos que compõem o plano, 25 dizem diretamente respeito a questões de acesso, que estão também presentes de forma indireta em muitas das outras medidas. Não será indiferente que é no eixo 4 da saúde próxima e familiar que esta opção é mais visível, no aumento da cobertura total da população com médico de família atribuído, no reforço da resposta pública dos Cuidados de Saúde Primários em parceria com o setor social e na aposta na melhoria da resposta às solicitações do próprio dia. A acessibilidade é uma característica basilar na Medicina Geral e Familiar, que é conceptualmente o ponto de primeiro contacto e o provedor nos percursos dentro do sistema de saúde, independentemente da idade, sexo ou qualquer outra característica da pessoa, com a capacidade de abordar os problemas de saúde de forma abrangente, holística e em continuidade, fundamental na construção da relação de confiança médico-doente e na aliança terapêutica, potenciadoras dos resultados em saúde. 3-4 No entanto, a acessibilidade é apenas uma dimensão dos sistemas de saúde, a par da qualidade, da equidade, da eficiência, da inovação tecnológica, da segurança, da formação profissional, da globalidade de cuidados e da centralidade na pessoa. O sucesso não está em promover uma ou outra dimensão, mas em estabelecer um equilíbrio, sem que o investimento diferencial coloque em causa os resultados alcançados noutras dimensões. Sabemos que o aumento do acesso pode-se associar a uma diminuição da qualidade e este é um desafio atual do sistema de saúde em Portugal. 5 A Medicina Geral e Familiar está na charneira entre a saúde e a doença e, portanto, entre as pessoas e as suas necessidades de saúde, o que nos deixa particularmente expostos às particularidades do sistema, sobretudo quando os resultados se afastam da expectativa das pessoas. É um desafio que marca o presente e que nos obriga a encontrar soluções específicas para os problemas concretos, de uma forma construtiva, mas assertiva, sem preconceitos, sem nostalgias, sem ressentimentos. A base é o rigor científico filtrado pela experiência dos profissionais e pelos valores daqueles que em nós confiam a sua saúde e as suas doenças. Vivemos novos tempos e as soluções terão de ser inevitavelmente novas.