Introdução e apresentação do problema
As alterações nas políticas de saúde têm acontecido ao longo do tempo em Portugal com o objetivo primordial de permitir um crescimento sustentável dos sistemas de saúde.1 Desde o século XX que têm sido implementadas reformas no sistema de saúde em Portugal, até à verdadeira criação do Sistema Nacional de Saúde (SNS), com o propósito de incutir à população o senso de que são responsáveis pela sua saúde e por consequência têm o dever da sua promoção e defesa. 1-2 Portanto, seguindo a Lei de Bases da Saúde, “(…) a proteção da saúde constitui um direito dos indivíduos e da comunidade (…); o Estado promove e garante o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis; (…) os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do Estado ou, sob fiscalização deste, por outros entes públicos ou por entidades privadas, sem ou com fins lucrativos” (Base 1 da Lei n.º 48/1990, de 24 de agosto).
Desde a criação da rede de cuidados de saúde primários até à reorganização dos serviços de urgência, a obtenção de ganhos em saúde e a satisfação dos utentes e dos profissionais de saúde são os principais objetivos a atingir. 1,3-4 As duas formas de acesso aos cuidados de saúde fazem-se, de forma geral, com recurso a consulta programada ou não programada, podendo esta última ocorrer no âmbito dos cuidados de saúde primários (CSP) ou no âmbito hospitalar nos serviços de urgência. 5
Os CSP correspondem à base primordial do sistema de saúde e organizam-se permitindo o aprimoramento dos cuidados disponibilizados, de forma a fortificar o seu acesso e a qualidade dos mesmos. Devem permitir uma acessibilidade integral aos utentes, possibilitando gerir quer os problemas agudos quer os problemas crónicos. 6 Portanto, de forma a que seja dada resposta a todos os utentes, os CSP devem habilitar-se em termos organizativos, de forma a permitir, por um lado, a marcação de consultas programadas a curto e médio prazo; e, por outro, o agendamento de consulta no próprio dia - que responderá à patologia considerada aguda ou crónica agudizada. 5-6 As segundas designam-se habitualmente por consultas abertas e são realizadas ou pelo médico de família ou por um outro médico da unidade (num sistema designado por sistema de intersubstituição). 6 A consulta aberta (CA), definida como “consulta de agudos não programada” pela Missão para os Cuidados de Saúde Primários, 1,7 deve permitir um atendimento não programado, mas de resposta rápida a uma situação aguda, de início habitualmente recente, 2 tendo sido criada com o propósito de reduzir a afluência aos serviços de urgência (SU). 1
Os SU, como os CSP, são serviços multidisciplinares cujo objetivo major é prestar cuidados de saúde em circunstâncias de urgência ou emergência médica. 1 Têm sofrido ao longo dos anos várias transformações na forma como se organizam e distribuem, procurando aumentar a capacitação do SNS de soluções e respostas satisfatórias perante as necessidades dos utentes. 2 No entanto, a sua utilização excessiva e inapropriada como porta de entrada no SNS tem sido alvo de preocupação, 1 nomeadamente na organização dos recursos humanos e na sua gestão financeira. 8
Decorrente desta elevada procura pelos SU, a sua reestruturação tem sido essencial na redução da despesa gerada e na garantia no acesso aos cuidados urgentes. 2-3 No entanto, tem-se mantido um assunto do foro da saúde publica, uma vez que impulsiona o desgaste e declínio dos cuidados de saúde e da sua qualidade de atuação, o que reduz a satisfação dos utentes. 8-9 Em estudos realizados nos últimos dez anos, mais de um terço dos episódios de urgência correspondiam a situações pouco ou nada urgentes. 8 É, assim, fundamental entender a movimentação dos utentes entre os CSP e os SU, e os motivos por detrás de optarem pelo SU ao invés dos cuidados prestados pelo seu médico de família, de forma a que sejam identificadas as dificuldades na resposta dada às necessidades em saúde. 2
A priorização dada pelos utentes ao SU quando comparada com os CSP prende-se, segundo a bibliografia preexistente, por um lado, com a conceção negativa e desinformada acerca dos CSP, pela dificuldade no acesso aos CSP, com o preenchimento de todas as vagas para consulta no próprio dia, e pela menor conveniência com tempos de espera mais prolongados; e, por outro lado, pela facilidade no acesso aos SU, pela garantia de atendimento sem marcação prévia, pela existência de tecnologias modernas/meios complementares de diagnóstico e terapêutica, pelo seu horário de funcionamento (24 horas por dia) e, portanto, pela disponibilidade permanente e também pela autoperceção da sua condição de saúde como urgente. 5,8-11 Existe também a crença ou convicção de que o tratamento obtido pelos SU será melhor ou que estes apresentarão maior capacidade na resolução de problemas de saúde de maior complexidade. 5,8,11-12 Ou seja, existe uma desvalorização da importância dos CSP e um desconhecimento acerca dos possíveis resultados decorrentes do uso excessivo de exames de diagnóstico e terapêuticas. 12
Relativamente ao conhecimento dos utentes acerca da existência da consulta aberta no seu centro de saúde, de acordo com os estudos, este conhecimento existe, sendo considerado por muitos utentes como uma mais-valia. No entanto, a falta de conhecimento acerca da sua correta utilização continua a ser um problema. 8,13 É essencial a educação da população para a consciencialização da importância na recorrência aos cuidados de proximidade numa primeira instância em situações consideradas agudas2 e na sensibilização na correta utilização dos SU. 2,10-11
Segundo o Modelo comportamental de Andersen, a utilização dos serviços de saúde é determinada por vários fatores, nomeadamente os que predispõem, como a idade e o género (que indicam a maior ou menor predisposição dos utentes de virem a requerer cuidados de saúde); as suas necessidades e a organização social (exemplo do nível educacional, da capacidade de lidar e ultrapassar problemas, da autoperceção do seu estado de saúde); e os princípios morais (conhecimentos acerca da saúde e dos espaços dedicados à prestação de cuidados). 2,11 Nos estudos previamente realizados, a idade mais jovem, o sexo feminino, a ausência de comorbilidades, a isenção de taxas moderadoras, a ausência de avaliação prévia por médico, a inexistência de médico de família e a dificuldade de acesso aos CSP são os principais fatores associados a um uso preferencial dos SU em detrimento dos CSP. 11,14 Outros fatores como o estado civil, ocupacional ou a autoavaliação do seu estado de saúde foram mais discutíveis. 14
Segundo alguns estudos, os utentes admitem que as dificuldades de acesso aos CSP não decorrem exclusivamente da sua disponibilidade, já que a prevalência de utilização de SU é maior durante o dia - período do dia durante o qual os CSP estão operacionais, mas de essa disponibilidade permitir um atendimento mais rápido. 14 Assim, como muitos utentes consideram difícil o agendamento de consulta no próprio dia optam por nem tentar e recorrer logo ao SU. Por outro lado, em diversos projetos de intervenção a tentativa de aumentar a quantidade de serviços disponíveis e de prolongar o horário de funcionamento dos CSP e dos seus profissionais de saúde não obteve resultados favoráveis na redução do uso inadequado dos SU. 14
Com o aumento da necessidade dos serviços de urgência e com a escassez de prestadores de cuidados primários, a utilização inadequada dos serviços de saúde tenderá a aumentar no futuro. 15 Assim, o conhecimento acerca dos fatores que se associam a um uso inadequado dos SU pode contribuir para a orientação de políticas públicas para reduzir a prevalência desta problemática. 14 A requalificação da oferta de cuidados de saúde e do acesso aos serviços de urgência visa uma melhoria na eficácia do SNS. 1
A Unidade de Saúde Familiar (USF) Novo Norte em Arouca fica localizada no mesmo edifício que o Serviço de Urgência Básica (SUB) de Arouca. Desde 2016 foi criada uma consulta aberta nesta USF. Já no SUB, o atendimento é feito por médicos indiferenciados. Na USF Novo Norte, a resposta a situações agudas é dada através da consulta aberta disponível de forma diária entre as 8h00 e as 20h00, com uma duração de dez a quinze minutos, por iniciativa do utente, se não houver possibilidade de agendamento de consulta programada no próprio dia. 16
É essencial analisar a procura dos cuidados de saúde e os fatores a ela intrínsecos, nomeadamente as características e propósitos dos utentes e a autoperceção do seu estado de saúde, o padrão de recorrência aos serviços de saúde, o grau de satisfação com os serviços de saúde, quer no CSP quer no SU, se o acesso a exames de diagnóstico influencia a escolha pelo SU, que fatores condicionam a escolha do local de atendimento em primeira instância. O objetivo final é que se consiga contribuir para uma melhor organização dos serviços de saúde conforme as necessidades dos utentes, 5 para além de perceber quais os fatores determinantes na procura de cuidados de saúde por utentes da USF Novo Norte, nomeadamente na escolha do SUB em detrimento dos CSP em situações agudas.
Métodos
Realizou-se um estudo transversal, descritivo e exploratório durante o mês de fevereiro/2023. Procedeu-se à aplicação de um questionário, de autoria própria, baseado em questionários existentes na literatura, no SUB de Arouca.
A população foi composta por todos os utentes inscritos na USF Novo Norte com atendimento no SUB de Arouca no período de estudo. Foram incluídos todos os utentes que efetivamente responderam ao questionário entregue pelas administrativas do SUB de Arouca no momento de registo do episódio de urgência. Os utentes com idade inferior a 18 anos foram incluídos no estudo, sendo o questionário preenchido pelo seu representante legal. Foram excluídos os utentes não inscritos na USF Novo Norte, os utentes com dificuldade de linguagem/comunicação, incapazes de realizar o preenchimento do questionário e os questionários preenchidos de forma incompleta.
As variáveis em estudo foram: género; idade; nível de escolaridade (só sabe ler e escrever, ensino básico, ensino secundário e ensino superior), atividade profissional (ativa, não ativa e desconhecida); período do dia na deslocação ao serviço de saúde (manhã, tarde ou noite); dia da semana na deslocação ao serviço de saúde (segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo); tipo de referenciação feita para o SUB (iniciativa própria, reencaminhado pelo médico de família [MF], reencaminhado por outro médico/profissional de saúde, reencaminhado telefonicamente pela Linha Saúde 24, recomendação por familiares ou amigos); o tempo de evolução das queixas que levaram à recorrência ao SUB (surgiram no próprio dia, nos últimos três dias, na última semana, no último mês ou há mais de um mês); destino do utente após avaliação pelo SUB (abandono, alta contra parecer médico, alta para o domicílio, alta com recomendação de reavaliação pelo médico de família, transferência para SU mais especializado ou internamento); motivo para recorrência ao SUB em detrimento da consulta aberta (CA) da USF; autoperceção da urgência do seu estado clínico (não urgente ou pouco urgente, urgente, muito urgente); conhecimento da existência de CA; procura de CA na USF, via telefónica ou presencial; conhecimento das situações que devem motivar avaliação na CA pelo médico de família; avaliação do conhecimento acerca da definição de CA; conhecimento das situações que devem motivar avaliação no SU pelo médico de família; se há pagamento de taxas moderadoras, a frequência de utilização do SUB (menos de quatro vezes por ano ou quatro ou mais vezes por ano) e o grau de satisfação com o médico de família (muito satisfeito, satisfeito, indiferente, pouco satisfeito, nada satisfeito).
A avaliação do motivo para recorrência ao SUB de Arouca em detrimento da CA da USF e do conhecimento acerca da definição de CA foi realizada através de opções de resposta disponibilizadas no questionário.
Foi obtida autorização para a realização do estudo pela Direção Executiva do ACeS Feira/Arouca. O estudo foi autorizado pela Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte (referência CE/2022/157).
A recolha de dados ficou a cargo da equipa de administrativos do SUB de Arouca, através da entrega do questionário aos utentes da USF Novo Norte. Para a colheita de dados foram consultados os questionários preenchidos à data da recorrência ao SUB de Arouca no mês de estudo. Foi ainda cedido, pela Unidade de Apoio à Gestão do ACeS da unidade em estudo, os dados referentes a idade, hora, dia da semana e cor da pulseira (segundo protocolo de Manchester) da lista de utentes que recorreu aos cuidados do SUB de Arouca durante o mês de fevereiro/2023.
A base de dados foi elaborada em Microsoft Office Excel®. A análise descritiva dos dados foi realizada através do programa Microsoft Office Excel®. As variáveis foram descritas considerando as frequências absolutas (n) e relativas (%) das suas categorias. As proporções foram comparadas entre grupos utilizando o teste exato de Fisher, sendo apropriado perante uma significância estatística estabelecida para p<0,05.
Os custos (financiamento) para a realização do trabalho de investigação ficaram a cargo da equipa de investigação. Sem conflitos de interesse a destacar.
Resultados
Após o tratamento de dados, a análise de todos os questionários preenchidos e tendo por base os critérios de inclusão e exclusão, obteve-se uma amostra final de 139 questionários (Tabela 1).
Verificou-se um predomínio de utentes do género feminino, bem como uma média de idades de 47,52 anos (na distinção entre géneros observa-se uma idade média de 50,07 anos do género feminino e de 42,98 anos do género masculino), uma mediana de 51 anos e um desvio-padrão de 22,58 anos, existindo uma relação significativa entre o género e a idade média na recorrência ao SUB (t=0,82; p=0,03).
Ao nível da escolaridade registou-se uma grande variabilidade, embora com predomínio relativo do nível secundário e básico do primeiro ciclo, não desprezando os quase 13% de utentes que só sabem ler e escrever. Observa-se que cerca de 65% dos utentes apresentam um nível de escolaridade inferior ou igual ao terceiro ciclo básico.
Relativamente à atividade profissional observou-se que perto de metade dos utentes eram ativos profissionalmente, seguindo-se os utentes não ativos, com uma percentagem algo considerável.
Analisando as questões associadas à procura de cuidados de saúde no SUB verificou-se que o período do dia em que os utentes mais recorriam ao SUB era durante o dia, com ligeiro predomínio da manhã em relação à tarde. Verificou-se que os utentes do sexo masculino recorrem mais ao SUB no período noturno e os utentes do sexo feminino no período diurno, apesar de não existir uma relação estatisticamente significativa entre ambos (χ2=0,289; p=0,865). Procurou-se ainda determinar se o período do dia de recorrência ao SUB seria influenciado de forma estatisticamente significativa pela situação profissional. Em todas as situações profissionais mantinha-se o predomínio matinal de recorrência ao SUB, apesar de não existir uma relação estatisticamente significativa (χ2=2,462; p=0,963). Já durante a noite verifica-se que 60% dos casos correspondiam a utentes profissionalmente ativos.
Em relação ao dia da semana de deslocação ao SUB era mais frequente a quarta-feira, seguida da quinta e da sexta. Comparando a recorrência ao SUB durante a semana e ao fim de semana constatou-se uma maior procura durante a semana relativamente ao fim de semana. Realizando o cruzamento de dados entre a altura do dia, o dia da semana e a atividade profissional foi possível observar uma maior afluência ao SUB à quarta de manhã, à sexta de manhã e à quinta de tarde, por ordem decrescente, não existindo diferença estatisticamente significativa, mas com um ligeiro predomínio da procura por utentes profissionalmente não ativos comparativamente com os profissionalmente ativos. Verificou-se ainda que, ao fim de semana, mais de metade dos utentes que recorreram ao SUB correspondiam a utentes profissionalmente não ativos.
Relativamente ao tipo de referenciação feita para o SUB averiguou-se um predomínio marcado dos utentes que se dirigiram ao SUB por iniciativa própria; seguiram-se, com uma percentagem residual, os utentes que recorreram ao SUB por recomendação por familiares e amigos e os referenciados pelo médico de família. Já relativamente ao tempo de evolução das queixas que levaram à recorrência ao SUB constatou-se que em mais de 40% dos casos os sintomas tinham surgido nos últimos três dias, em cerca de 36% no próprio dia e em aproximadamente 15% na última semana. Observou-se ainda que nos casos em que os sintomas surgiram no ultimo mês e há mais de mês, a maioria dos utentes correspondiam a utentes reformados, inválidos e domésticas, não se verificando, no entanto, uma relação estatisticamente significativa (χ2=7,181; p=0,127).
Quanto aos motivos para recorrência ao SUB em detrimento da CA da USF destaca-se, por ordem decrescente, a opção «Considero que a minha doença deve ser avaliada em contexto de urgência» e a opção «O atendimento no hospital é imediato/realizado com maior rapidez», seguindo-se de forma menos expressiva as opções «Tenho dificuldade na marcação de uma consulta no centro de saúde», «O centro de saúde estava encerrado, desconhecendo outras alternativas» e «Sem vagas de consulta aberta no centro de saúde e não me deram alternativa» (Tabela 2). De destacar que os utentes que responderam as opções «Considero que a minha doença deve ser avaliada em contexto de urgência» e «O atendimento no hospital é imediato/realizado com maior rapidez» se distribuíam de forma mais ou menos equitativa entre serem profissionalmente ativos e não ativos.
Relativamente à autoperceção da urgência do seu estado clínico, mais de 80% consideravam o seu problema como urgente. Também quase a totalidade dos utentes consideravam ter conhecimento da existência de CA e a maioria tinha conhecimento das situações por que se deveria dirigir à CA. Quando questionados em que situações devem recorrer à CA, cerca de dois terços dos utentes responderam a opção «Quando tenho a necessidade de uma consulta médica não programada»; no entanto, uma percentagem considerável de cerca de 20% respondeu a opção «Quando não consigo consulta programada com o meu médico de família» (Tabela 3). Dentro deste último grupo, cerca de 40% dos utentes apresentavam um nível de escolaridade inferior (só sabiam ler e escrever ou tinham estudado até ao ensino básico do 1.º ciclo); no entanto, não se verifica uma relação estatisticamente significativa entre o nível de escolaridade e a opção selecionada relativa às situações por que devem recorrer à CA (χ2=2,089; p=0,837). O mesmo acontece quando se pretendeu observar se o número de idas ao SUB seria influenciado pela opção escolhida. Verificou-se que mais de um quarto dos utentes que responderam a opção «Quando não consigo consulta programada com o meu médico de família» recorriam quatro ou mais vezes por ano ao SUB, não se verificando, no entanto, uma relação estatisticamente significativa entre estes dois fatores (χ2=1,000; p=0,317).
Relativamente à procura de CA na USF, via telefónica ou presencial (excluindo os casos não aplicáveis, nomeadamente ao fim de semana e em horário noturno), verificou-se que dois terços dos utentes não procuraram CA na USF. Procurou-se determinar se a procura de CA na USF seria influenciada pela situação profissional, uma vez que dois terços destes utentes não eram profissionalmente ativos, mas não se constatou uma relação estatisticamente significativa (ativo vs não ativo; χ2=0,221; p=0,639).
A maioria dos utentes considerava que sabia as situações por que se deveria dirigir ao SUB; mais de 60% estavam isentos de taxas moderadoras; e cerca de 20% recorriam ao SUB quatro ou mais vezes por ano. Quando analisada a relação entre os utentes que utilizavam o SUB quatro ou mais vezes por ano e a atividade profissional constatou-se um equilíbrio entre os que se encontravam numa situação profissional não ativa (reformados, inválidos e domésticas) e em situação profissional ativa. Quando se procurou determinar se o número de idas ao SUB seria influenciado pela situação profissional e pela isenção de taxas moderadoras não se verificou a existência de uma relação estatisticamente significativa com a situação profissional (ativo vs não ativo; χ2=0,028; p=0,867), estando, no entanto, relacionado significativamente com a isenção de taxas moderadoras (χ2=5,330; p=0,021).
Por fim, e no que respeita ao grau de satisfação com o MF, a maioria dos utentes considerava-se satisfeita ou muito satisfeita. Quanto ao destino do utente após avaliação pelo SUB ocorreu a alta para o domicílio em mais de 60% dos casos e alta para o MF em cerca de 25% dos casos.
Foi permitida, pela Unidade de Apoio à Gestão do ACeS da unidade em estudo, a avaliação da idade, hora e dia da semana da lista de utentes que recorreu aos cuidados do SUB de Arouca durante o mês de fevereiro/2023, foram procurados por 593 utentes da USF Novo Norte, pelo que se conclui que a percentagem de não respondedores se aproxima dos 76,56% (N=454). Analisando os dados fornecidos, os utentes que recorreram ao SUB de Arouca durante o mês de estudo apresentam uma idade média de 42,7 anos, aproximada à média de idades de 47,0 anos obtida na amostra de utentes que responderam ao questionário, com uma mediana e um desvio-padrão de 44 e 25,16 anos, respetivamente (também equiparados aos obtidos na amostra de respondedores de 51 e 22,6 anos, respetivamente). Não foi permitida a avaliação do género. Verificou-se ainda, como na amostra de respondentes, um predomínio das idas ao SUB durante a semana (78,75%), no período da manhã (40,52%), em particular na manhã de quarta-feira (dados congruentes com os obtidos na amostra). Para além disso, foi cedida informação acerca da cor da pulseira obtida na triagem do SUB (segundo protocolo de Manchester), tendo-se observado uma percentagem de 5,05% de utentes triados como muito urgentes, 38,79% como urgentes e 56,16% de utentes triados como pouco urgentes, nada urgentes ou outros casos. Não foi possível obter outro tipo de informação.
Discussão e conclusões
A compreensão dos determinantes na procura de cuidados de saúde em situações agudas irá contribuir para uma melhor organização dos serviços de saúde, conforme as necessidades dos utentes, promovendo uma melhoria na qualidade de atuação dos serviços e dos profissionais de saúde. Portanto, uma requalificação da oferta de cuidados de saúde e do acesso aos serviços de urgência visará uma melhoria da eficácia do SNS.
Como observado em estudos prévios, a idade jovem e o género feminino são alguns dos fatores mais associados a um uso preferencial do serviço de urgência em detrimento dos CSP. 11,14 De realçar que é sabido que o género feminino tendencialmente procura mais os cuidados de saúde na sua globalidade. Já na idade jovem, fatores como a não proximidade aos CSP, a preferência por recorrer a cuidados de saúde em horário compatível com período não laboral, entre outros, pode justificar. De acordo com a literatura, o estado ocupacional é um fator discutível. 14 No entanto, a região de Arouca apresenta um índice de dependência total e um índice de envelhecimento superiores ao índice nacional, pelo que poderia ser esperada uma maior proporção de utentes com um nível de escolaridade inferior e em fase profissional não ativa (reformados, inválidos, utentes domésticas, estudantes); no entanto, observou-se uma grande variabilidade quer ao nível da escolaridade quer ao nível da atividade profissional, sem grande destaque por parte de utentes em fase de reforma/invalidez ou utentes domésticas. De destacar que a entrega dos questionários era realizada pela equipa administrativa, mas o seu preenchimento era voluntário. Assim, um possível viés de participação, em particular por parte de utentes mais idosos, apesar de pouco provável dadas as informações obtidas da Unidade de Apoio à Gestão, mas não podendo ser excluída.
Constatou-se uma maior procura de cuidados de saúde no SUB durante o dia, o que corrobora as conclusões de Carret e colaboradores, 8 e à semana - períodos durante os quais os CSP estão operacionais, em particular durante a manhã, altura do dia em que são disponibilizadas diariamente CA. Isto demonstra, mais uma vez, que a dificuldade de acesso aos CSP não será decorrente apenas da sua disponibilidade e que existem outros determinantes que potenciam a procura preferencial do serviço de urgência. Verificou-se ainda que os dias de quarta, quinta e sexta correspondiam aos dias de maior afluência ao SUB. Isto poderá ser explicado, para os utentes em fase profissional ativa (empregados e desempregados), pelo processo laboral em si, ou seja, no final da semana existe tendencialmente maior cansaço, maior risco de erros e de acidentes e maior propensão para agravamento de quadros clínicos preexistentes. Também poderá ser potenciado por tentativas prévias de recorrência à CA que, não sendo concretizadas, estimulam a procura por outro tipo de cuidados de saúde, nomeadamente o SUB. Não foi possível estabelecer uma ligação entre a altura do dia, o dia da semana e a atividade profissional, ou seja, uma explicação para na quarta de manhã, na sexta de manhã e na quinta à tarde existir uma maior procura de cuidados de saúde no SUB, já que, exceto raras exceções, o número de CA disponibilizadas pela USF se mantém constante ao longo da semana, como foi confirmado.
Os resultados obtidos no período noturno e ao fim de semana, em particular a inexistência de diferença significativa na recorrência ao SUB entre utentes profissionalmente ativos e não ativos, poderá advir, por um lado, dos utentes profissionalmente ativos optarem por recorrer a serviços de saúde que sejam acessíveis no período pós-laboral e não laboral, evitando assim o absentismo laboral; e, por outro lado, os utentes não ativos profissionalmente, com situações agudas e não passíveis de aguardar pela resposta dos CSP.
O predomínio marcado de utentes que se dirigiram ao SUB por iniciativa própria e a escassa percentagem de utentes que foram avaliados previamente pelo MF, por outro profissional de saúde ou telefonicamente pelo SNS24 vai ao encontro do estudo de Gentile e colaboradores, onde é referido que a maioria dos utentes recorre autonomamente ao SU. 8 Já no que diz respeito à a opção mais escolhida para justificar a recorrência ao SUB em detrimento da CA, nomeadamente «Considero que a minha doença deve ser avaliada em contexto de urgência», destaca questões como a existência de uma procura insatisfeita nos CSP, ou seja, é dada uma resposta insuficiente em tempo útil? Terão os utentes uma perceção adequada do seu estado de saúde?
Verificou-se que a maior parte dos utentes considerava o seu problema, que motivou a recorrência ao SUB, como urgente, o que contrasta com os 38,79% dos utentes que foram triados no SUB e, segundo o protocolo de Manchester, como urgentes, o que destaca mais uma vez a possibilidade dos utentes não saberem reconhecer as situações reais de urgência, como se encontra descrito nos vários estudos ao longo dos últimos dez anos (em que mais de um terço dos episódios de urgência correspondiam a situações pouco ou nada urgentes). 8,12,14 A literatura preexistente permite ainda reconhecer que as perspetivas dos pacientes em relação ao seu estado de saúde diferem da opinião dos profissionais de saúde que os avaliam, 9 pelo que se conclui que os CSP não estão a ser utilizados na resolução de situações consideradas urgentes pelos utentes, tornando, assim, o papel da tipologia da consulta insuficiente na solução deste problema.
Existe, por isso, uma conceção negativa e desinformada relativa aos CSP e a crença/convicção de que o tratamento obtido no SU é de melhor qualidade ou mais adequado à sua situação. 8,12,14
Quando se continuou na exploração dos motivos de recorrência ao SUB em detrimento da CA da USF verificou-se que o facto do atendimento no hospital ser «imediato/realizado com maior rapidez» é o segundo motivo que leva os utentes a procurarem mais os serviços de urgência. Como no estudo realizado em Kentucky, em que os utentes mostravam preferência em ser avaliados pelo seu MF, mas que tendiam a procurar o atendimento noutro local caso não fosse possível ser avaliado nos CSP no próprio dia. 9 A questão do facilitismo de ter um serviço de saúde aberto 24 horas por dia, da comodidade para os utentes e da menor inconveniência com menores tempos de espera e a garantia de atendimento sem marcação prévia com acesso facilitado são aqui destacados. 8 Portanto, é demonstrado que a disponibilidade de acesso aos CSP e de acesso no próprio dia à CA existe, mas poderá não estar a ser utilizada da melhor forma. Outros motivos igualmente preponderantes incluíram a dificuldade na marcação de uma consulta e a inexistência de vagas de CA. Este é um motivo reconhecido, avaliado e consecutivamente estudado, com diversos projetos realizados na tentativa de encontrar “soluções”, que não têm surtido efeito, como o aumento da quantidade de serviços disponíveis e o prolongamento do horário de funcionamento dos CSP e dos seus profissionais de saúde, o que mais uma vez demonstra que a disponibilidade de CA não é o único fator a ter em conta nesta problemática. 14
A disponibilidade de CA e a dúvida na sua correta utilização são problemas reconhecidos e aqui evidenciados e provados. Apesar de a quase totalidade dos utentes ter conhecimento da existência da CA e de considerar que tem conhecimento das situações nas quais se deve dirigir à CA e ao SUB, um em cada cinco utentes considera que a CA é uma forma de ser avaliado clinicamente quando não consegue consulta programada com o seu MF, destacando os utentes com menor literacia para a saúde e mais utilizadores dos cuidados de saúde. De recordar que continua premente a necessidade de educar os utentes para esta problemática, uma vez que uma utilização menos correta da CA reduz a oferta da mesma e a possibilidade de um utente efetivamente em situação aguda, que justifica a sua avaliação no próprio dia, tenha de procurar uma alternativa, como o SUB, prorrogando assim o ciclo vicioso, sem resolução à vista. Isto pode explicar o porquê de dois terços dos utentes não procurarem CA (via telefónica ou presencial) antes de recorrer ao SUB, o que vai ao encontro dos vários estudos realizados que mostram que uma ainda considerável proporção dos utentes não contacta os CSP previamente à ida ao SUB. 9 Outro fator potenciador da utilização do SUB é a ausência de pagamento de taxas moderadoras.
Olhando para a utilização do SUB constata-se que uma percentagem considerável de utentes recorre quatro ou mais vezes por ano e que não existe uma diferença significativa entre utentes que se encontravam numa situação profissional não ativa (reformados, inválidos e domésticas) e os que se encontravam em situação profissional ativa. Pode explicar-se, por um lado, pelos utentes sobreutilizadores dos cuidados de saúde na sua globalidade (quer SUB quer CA), nomeadamente utentes mais velhos, polimedicados e com mais comorbilidades, como Franchi e colaboradores concluiram; 8 e, por outro lado, os utentes mais jovens, que ainda trabalham, e que não vêm os CSP como uma forma de receber cuidados de saúde em situações agudas ou cuja comodidade, como falado previamente, os leva a recorrer no imediato ao serviço de urgência.
No global, os utentes mostram-se satisfeitos com o MF, não parecendo ser, por isso, a relação médico-doente um fator que contribua negativamente para este problema.
A USF Novo Norte e o SUB de Arouca, como referido previamente, estão localizados no mesmo edifício, pelo que a dificuldade no acesso aos CSP não corresponde ao único motivo por detrás desta escolha dos utentes. Verifica-se antes que se mantém uma desvalorização da importância dos CSP e dos cuidados prestados. Destaque-se que é essencial a educação e a consciencialização da população para a importância de recorrer primariamente aos cuidados de proximidade e na sensibilização para a utilização adequada dos serviços de urgência, evitando um acesso indiscriminado a todos os níveis de prestação de cuidados.
Como pontos fortes, o estudo foi realizado com uma amostra aleatória de utentes, pelo que o viés de seleção não se coloca; também a evidência gerada por este estudo. Permitiu a identificação dos principais determinantes de acesso ao SUB em detrimento da CA por utentes em situações agudas: na sua maioria do género feminino, de meia-idade, e que recorrem ao SU predominantemente no período diurno. O principal determinante da recorrência ao SUB é a ausência de pagamento de taxas moderadas e a própria vontade do utente que, conforme a sua autoperceção de urgência, considera justificada esta procura.
O presente estudo apresenta limitações, apesar da sua relevância. Neste estudo decorreu a análise de dados de uma amostra limitada, em termos de dimensão, num local único, colhidos num período temporal limitado, pelo que não pode ocorrer a extrapolação dos resultados para a população. Outro aspeto com influência no estudo é a veracidade das respostas dadas no questionário, que não pode ser confirmada objetivamente, já que não foram analisados registos médicos. Todos os utentes receberam a informação de que o questionário era anónimo e que, por participarem no estudo, o atendimento no SUB não seria alterado, portanto, espera-se que as informações fornecidas sejam fidedignas. Existe, como discutido, o viés de participação, dado que corresponde a um estudo com um questionário de preenchimento voluntário. Verificou-se que o número de utentes da USF Novo Norte respondentes corresponde a 23,44% dos que recorreram durante o mês em estudo ao SUB de Arouca.
Estas limitações alertam para a necessidade de desenvolver trabalhos futuros, metodologicamente semelhantes ou não, mas aplicados a amostras de maiores dimensões.
Contributo dos autores
Conceptualização, BDF, CPN, RL e CA; metodologia, BDF, CPN, RL e CA; validação, BDF, CPN, RL e CA; análise formal, BDF, CPN, RL e CA; investigação, BDF, CPN, RL e CA; curadoria de dados, BDF, CPN, RL e CA; redação do draft original, BDF, CPN, RL e CA; revisão, edição e validação do texto final, BDF, CPN, RL e CA; visualização, BDF, CPN, RL e CA; supervisão, CA; administração do projeto, BDF, CPN, RL e CA; aquisição de financiamento: trabalho integralmente realizado com fundos dos autores.