Introdução
A formação especializada em medicina geral e familiar (MGF) tem a duração de 48 meses e decorre maioritariamente na unidade de colocação nos cuidados de saúde primários (CSP).1
Esta unidade de colocação pode ter diferentes níveis de organização, nomeadamente uma unidade de saúde familiar (USF) ou uma unidade de cuidados de saúde personalizados (UCSP).2 Todos os modelos prestam cuidados de saúde personalizados, garantindo acessibilidade e continuidade, com equipas compostas por médicos, enfermeiros e assistentes técnicos, distinguindo-se, no entanto, no grau de autonomia organizacional, a diferenciação do modelo retributivo e de incentivos dos profissionais e respetivo estatuto jurídico.
Em Portugal, o modelo USF apenas se encontra em funcionamento nos modelos A e B. A USF modelo A (USF A) deve corresponder a uma fase de aprendizagem e de aperfeiçoamento do trabalho em equipa, ao mesmo tempo que constitui um primeiro contributo para o desenvolvimento da prática da contratualização interna, com contratualização do cumprimento de metas e incentivos institucionais a reverter para as USF. A USF modelo B (USF B) comporta equipas com maior amadurecimento organizacional, onde o trabalho em equipa de saúde familiar é uma prática efetiva e que estejam dispostas a aceitar um nível de contratualização de desempenho mais exigente e uma participação no processo de acreditação das USF. Nesta tipologia, de acordo com o cumprimento de metas, há um regime retributivo especial para todos os profissionais, integrando remuneração base, suplementos e compensações pelo desempenho. 3 A UCSP é uma unidade com estrutura idêntica à da USF sem integrar, contudo, o mesmo grau de autonomia organizacional, a diferenciação do modelo retributivo e de incentivos dos profissionais, nem o modelo de financiamento e respetivo estatuto jurídico das USF.
As diferentes tipologias representam diferentes formas de trabalho, efetividade e custos e podem conduzir a diferentes níveis de satisfação profissional. A satisfação profissional parece ter influência na saúde e qualidade de vida dos trabalhadores e nas organizações, podendo ainda, em última instância, influenciar o nível de saúde das populações. De igual modo, organizações com profissionais mais satisfeitos tendem a ser mais eficazes. 4
Um estudo desenvolvido na zona Centro de Portugal demonstrou que a satisfação profissional era sensível ao modelo de desenvolvimento das USF, com os profissionais das USF B significativamente mais satisfeitos que os das USF A, sendo a maior diferença da satisfação verificada no vencimento e com o trabalho em equipa. 5 Também um estudo publicado em 2018 teve como objetivo a avaliação custos-consequências dos modelos organizacionais (USF B e UCSP). 6 Este estudo verificou que as USF B tinham mais cidadãos utilizadores e melhores resultados em todos os indicadores na gestão da saúde e na gestão da doença e que, embora as USF B tivessem um custo superior nos recursos humanos, tinham menores custos na despesa com medicamentos, meios complementares de diagnóstico e tratamento, com urgências e internamentos evitáveis, compreendendo mais ganhos em saúde imediatos e a médio/longo prazo com um custo global inferior. Especificamente no que se refere ao internato, um estudo realizado na zona Norte concluiu que os médicos internos de MGF estavam satisfeitos com o seu programa de formação especializada, sendo a relação com o orientador/a de formação (OF) e o seu desempenho os aspetos que mais contribuíram para a sua satisfação global; no entanto, nenhuma relação foi feita entre o grau de satisfação e o modelo organizativo da unidade dos CSP em que decorreu o internato. 7 Também um estudo realizado na região de Lisboa e Vale do Tejo demonstrou um elevado grau de satisfação relativamente às competências pedagógicas dos respetivos OF, mas menor satisfação nos domínios do desenvolvimento profissional contínuo, feedback e monitorização do progresso educacional pelos orientadores de formação. 8
Ainda num estudo publicado em 2015, abrangendo os internatos das várias especialidades em Portugal, verificou-se que as expetactivas dos médicos internos relativamente à MGF eram elevadas, com 89% dos médicos a optarem por escolher novamente a mesma especialidade e a considerarem que a MGF era uma das especialidades com melhores perspetivas de futuro. A maioria dos médicos encontrava-se muito ou extremamente satisfeita com o local escolhido para a realização da formação específica, mas com a progressão do internato médico verificava-se uma diminuição da satisfação com o local de especialidade: 47% apontavam as condições de exercício da prática clínica como a principal razão de insatisfação. 9 Um estudo mais recente, com médicos internos e especialistas de MGF, demonstrou que o médico de MGF parecia gostar do que fazia, mas a conciliação trabalho e vida pessoal, a carga de trabalho burocrático e clínico, a gestão de muitas e complexas tarefas, a pressão mental e a falta de reconhecimento, quer salarial quer das chefias ou interpares, eram fator de menor contentamento. 10
Ainda relativamente à formação em MGF, independentemente da tipologia da unidade de saúde onde decorra o internato, a avaliação segue sempre a mesma estrutura: a avaliação final do médico interno decorre de avaliações anuais (de desempenho e de conhecimentos) e de uma avaliação final composta por três provas (prova curricular, prova prática e prova teórica). 11
Até 2019, as avaliações de desempenho e de conhecimentos obtidas ao longo do processo formativo decorriam de provas organizadas localmente e, portanto, potencialmente díspares. Contudo, na Coordenação de Internato de MGF da zona Norte (CIMGFZN), as avaliações de conhecimentos já se encontravam, desde há vários anos, homogeneizadas através de provas escritas iguais para todos os médicos em avaliação numa mesma época.
Os modelos organizacionais em que são prestados os CSP, dadas as suas particularidades, implicam uma diferente organização do trabalho. Este facto talvez tenha impacto no decurso do internato de MGF, na sua satisfação e no processo avaliativo.
Não foram encontrados dados publicados que nos permitam perceber se existe uma relação entre o modelo organizacional da instituição em que decorre a formação específica em MGF, o grau de satisfação dos médicos internos de MFG e as notas de avaliação de internato de MGF. Com estes pressupostos foram colocadas duas perguntas de investigação:
1. O modelo organizacional em que decorre o internato em MGF tem impacto na satisfação dos médicos internos de MGF com o seu internato?
2. O modelo organizacional em que decorre o internato em MGF tem impacto nas notas de avaliação do internato de MGF?
Questões éticas
Obteve-se parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Porto, IP. As autoras manifestam eventuais conflitos de interesse resultantes das suas posições como orientadora de formação numa USF B, diretora de internato e coordenadora de internato de MGF da zona Norte.
Métodos
Foi efetuado um estudo observacional transversal com componente analítica, que teve como população de estudo todos os médicos que terminaram a sua formação especializada em MGF em 2021 e 2022 e cuja formação decorreu nas direções de internato que compõem a CIMGFZN.
A estes foi enviado, via correio eletrónico, o convite para participação no estudo, entre agosto e setembro/2022, o resumo do protocolo, o consentimento informado e o questionário de satisfação de autopreenchimento com 21 questões, anónimo e em formato formulário da Google®. Este questionário foi criado para o efeito pelas autoras, não foi alvo de pré-teste. De forma independente, foram ainda consultadas as bases de dados da CIMGFZN para obtenção das notas de avaliação do internato de MGF e tipologia da unidade funcional dos médicos que terminaram a sua formação especializada em MGF em 2021 e 2022. No caso de médicos que transitaram de tipologia de unidade durante a formação foi considerada a tipologia onde decorreu mais de 50% da sua formação específica.
A informação recolhida foi tratada pelas autoras do estudo, sendo armazenada em base de dados com palavra-chave apenas do conhecimento das autoras, garantindo a proteção de dados e o anonimato dos participantes ao longo de todo o processo. Foi utilizado o software RStudio®, v. 1.2.5019.
Foi feita a análise descritiva das variáveis. Para as variáveis numéricas (quantitativas) foram determinadas medidas de tendência central e medidas de dispersão. Para as variáveis não numéricas (qualitativas) foram elaboradas tabelas de distribuição de frequência com contagens e respetivas percentagens.
Foram calculadas medidas de associação entre as variáveis: foi aplicado o teste de análise de variâncias ANOVA e aplicada a correção de Bonferroni para comparações múltiplas. Para a correlação entre satisfação e as tipologias das unidades funcionais foram aplicados modelos de regressão linear.
Resultados
O questionário foi enviado aos 279 médicos que concluíram a sua formação especializada em MGF em 2021 e 2022.
Responderam, e deram consentimento, 168 médicos (60%), 11 dos 18 que tinham efetuado a sua formação em UCSP (61%), 27 dos 36 que tinham efetuado em USF A (75%) e 130 dos 225 que tinham efetuado em USF B (57,8%) (Tabela 1).
Dos respondentes, 77,3% afirmaram estar totalmente ou muito satisfeitos com o local onde tinham efetuado a sua formação (54,6% em UCSP, 74% em USF A e 80% em USF B, sem diferença estatisticamente significativa). Apenas três referiram não terem ficado nada satisfeitos com o seu local (um em USF A e dois em USF B).
A satisfação foi maior relativamente à oportunidade que tiveram no local de formação de realizar consultas de forma autónoma (90,5% totalmente ou muito satisfeitos: 90,9% em UCSP, 85,2% em USF A e 91,5% em USF B) (Figura 1).
Relativamente ao acolhimento e integração na equipa, 85% estavam totalmente ou muito satisfeitos (81,9% em UCSP, 88,9% em USF A e 84,6% em USF B). Quanto à oportunidade de apresentar trabalhos em reuniões de formação interpares, 80,4% estavam totalmente ou muito satisfeitos (54,6% em UCSP, 70,3% em USF A e 84,6% em USF B) e em equipa multidisciplinar (80,3% - 54,6% em UCSP, 77,7% em USF A e 83% em USF B).
Relativamente às instalações físicas (mobiliário, climatização, material clínico e informático) do local da sua formação, 49,4% estavam totalmente ou muito satisfeitos (45,5% em UCSP, 51,8% em USF A e 49,2% em USF B); 8,9% afirmaram mesmo não estarem nada satisfeitos (quatro em USF A e 11 em USF B).
O trabalho em equipa foi mais apreciado nas USF B com 76,2% dos respondentes totalmente ou muito satisfeitos (36,4% em UCSP, 70,3% em USF A). Já o trabalho em microequipa (médico, enfermeiro, secretário) apresentou um nível de satisfação global menor (49,4% total ou muito satisfeito: 36,4% em UCSP, 62,9% em USF A e 47,7% em USF B); três médicos internos não estavam nada satisfeitos (todos em USF B). Acresce que 44% dos médicos referiram que o conceito de microequipa não era aplicável no seu local de trabalho (54,4% em UCSP, 33,3% em USF A e 45,4% em UF B) (Figura 2).
A formação em grupos de médicos internos e orientadores de formação deixou os médicos totalmente e muito satisfeitos em apenas 60,1% dos casos (36,4% em UCSP, 55,5% em USF A e 63% em USF B); nada satisfeitos ficaram 12 dos respondentes (dois em UCSP, dois em USF A e oito em USF B).
Quanto ao número de médicos em formação em simultâneo foi considerado adequado por 69,6% dos respondentes, mas excessivo por 20,8%. Dos 35 médicos que consideraram excessivo, 30 estavam em USF B. Dos 16 que consideraram insuficiente, sete também estavam em USF B. Nas UCSP 45,5% considerou adequado, 27,3% excessivo e 27,3% insuficiente. Nas USF A consideraram 70,4% adequado, 7,4% excessivo e 22,2% insuficiente. Nas USF B consideraram 71,5% adequado, 23,1% excessivo e 5,4% insuficiente (Figura 3).
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Figura 3 Perceção sobre o número de médicos internos em formação, em simultâneo, no local de formação.
Relativamente à oportunidade de desenvolver novas tarefas (novas tipologias de consultas, novas formas de organização), 55,3% ficaram total ou muito satisfeitos (27,3% em UCSP, 51,8% em USF A e 58,5% em USF B). Nas UCSP, 45,5% não ficaram nada satisfeitos face a 11% das USF A e 6,9% das USF B.
Quanto à participação em reuniões de contratualização, acompanhamento, de Conselho Geral, acreditação, reuniões no âmbito da governação clínica ou outras, apenas 58,3% se mostraram total ou muito satisfeitos (18,2% em UCSP, 51,8% em USF A e 63,1% em USF B). Nada satisfeitos ficaram 63,6% dos respondentes cuja formação decorreu em UCSP, 22,2% em USF A e 5,4% em USF B (Figura 4).
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Figura 4 Grau de satisfação na oportunidade de desenvolver novas tarefas e participar em reuniões de contratualização, Conselho Geral, acreditação, governação clínica e outras.
A forma como as sugestões/opiniões foram consideradas pelos demais profissionais do local de formação agradou a 61,3% dos respondentes, que ficaram total ou muito satisfeitos (36,4% em UCSP, 59,2% em USF A e 63,8% em USF B); 9,5% não ficaram nada satisfeitos (18,2% em UCSP, 14,8% em USF A e 7,7% em USF B).
O sentimento de valorização do seu trabalho foi reportado como total ou muito satisfeito por 73,2% dos respondedores (54,6% em UCSP, 74% em USF A e 74,7% em USF B), 10,1% não sentiram o seu trabalho valorizado (9,1% em UCSP, 11,1% em USF A e 10% em USF B).
Verificou-se menor satisfação no sentimento de respeito pelo seu horário de trabalho, com apenas 57,8% dos respondentes a referirem estarem muito ou totalmente satisfeitos (72,8% em UCSP, 66,6% em USF A e 54,6% em USF B). Dos 14 médicos nada satisfeitos, 11 estavam em USF B, três em USF A.
Aquando da escolha do local de formação, as expectativas eram elevadas em 51,2% dos respondentes, 44% não tinham qualquer expectativa. As expectativas eram elevadas em quem escolheu as USF B, valor com significância estatística (p=0,031) (18,2% nas UCSP, 44,4% nas USF A e 55,4% nas USF B); 72,7% dos que escolheram UCSP não tinham qualquer expectativa, assim como 48,1% dos que escolheram USF A e 40,8% dos que escolheram USF B. As expectativas eram reduzidas em oito dos respondentes (um em UCSP; dois em USF A e cinco em USF B).
As expectativas foram superadas ou totalmente cumpridas em 60,7% dos casos (63,7% em UCSP, 55,5% em USF A e 61,6% em USF B), suficientemente cumpridas em 32,7% e pouco ou nada cumpridas para 6,6% dos médicos (dois em USF A e nove em USF B).
Foi efetuada análise de regressão linear e verificou-se que a expectativa inicial, aquando da escolha do local de formação estava associada à perceção sobre o número de médicos internos em formação em simultâneo e a oportunidade de apresentar trabalhos em reuniões de formação interpares (Tabela 2).
Tabela 2 Correlação entre a expectativa inicial, aquando da escolha do local de formação, e demais fatores de satisfação (análise de regressão linear)
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Foi igualmente aplicado um modelo linear generalizado para analisar a origem das correlações identificadas, tendo-se verificado que apenas o número adequado de médicos internos em formação em simultâneo, no local de formação, estava associado a expectativas iniciais mais elevadas quando comparado com os internos com expectativas mais reduzidas.
Questionados se recomendariam o seu local de formação a outro médico a iniciar o seu programa de formação, 87,5% respondeu afirmativamente (63,5% em UCSP, 85,2% em USF A e 90% em USF B).
Relativamente às notas de avaliação e à tipologia do local de formação verificaram-se diferenças estatisticamente significativas nas avaliações contínua e final.
As notas de avaliação contínua foram estatisticamente superiores nas USF, com médias de 19,25 nas USF A e 19,29 nas USF B, relativamente às UCSP com média de 19,15.
Nas avaliações teórica, curricular e prática não se verificaram diferenças estatisticamente significativas, ainda que com valores médios superiores de avaliação teórica nas USF B, curricular e prática nas USF A.
Na nota de avaliação final de internato verificou-se uma diferença significativa apenas entre UCSP e USF B (Tabelas 3 e 4).
Tabela 3 Notas de avaliação contínua e final, nas suas várias componentes e tipologia do local de formação
![](/img/revistas/rpmgf/v40n5//2182-5173-rpmgf-40-05-462-gt3.png)
Discussão
Em termos globais, a adesão dos médicos convidados a responder foi boa; contudo, dos 279 médicos, 225 (80,6%) tinham efetuado a sua formação em USF B, pelo que as demais tipologias foram menos representadas. Segundo dados do BI-CSP, à data de 01/setembro de 2023 existiam 921 unidades de saúde de CSP em Portugal Continental, 304 UCSP (33%), 269 USF A (29,2%) e 348 USF B (37,8%). Na região Norte, contudo, das 368 unidades de saúde, 186 (50,5%) eram USF B e apenas um quarto eram UCSP (89).
O número de médicos em formação em simultâneo foi considerado adequado por quase 70% dos respondentes; quando considerado insuficiente foi sobretudo em UCSP, menos em USF B. Esta variável teve influência na expectativa inicial da escolha do local, pelo que parece ser um fator importante a considerar na satisfação dos médicos internos e na alocação futura de capacidades formativas. A existência de um suplemento pago aos orientadores de formação em USF B poderá estar na base destas diferenças, com maior número de médicos especialistas mais disponíveis para serem orientadores de formação nestas USF, ainda que esta variável não tenha tido significância estatística.
O trabalho em equipa (toda a equipa) foi mais apreciado nas USF B, o que seria de esperar, sendo, em teoria, equipas com maior nível de amadurecimento e nível organizacional mais elevado, em consonância com o já encontrado num estudo da zona Centro. 5 Todavia, ao nível da microequipa (médico, enfermeiro, secretário), a satisfação foi globalmente menor, pior nas USF B que nas USF A, sendo até referida como não aplicável. Algumas USF mantêm a sua organização de listas de enfermagem por área geográfica e não por microequipa, o que pode explicar os resultados encontrados.
A formação do médico interno alicerçada numa dinâmica de unidade formadora, com menos ênfase no binómio puro orientador de formação/médico interno, será de ter em conta, permitindo que a formação no seio de um grupo possa colmatar eventuais falhas individuais ou relacionais entre pessoas em específico, bem como diferentes organizações de trabalho, como reportado num estudo realizado na região de Lisboa e Vale do Tejo. 8
O sentimento de respeito pelo horário de trabalho foi menor nas USF B e maior nas UCSP. Este facto poderá decorrer do trabalho por objetivos, característica mais presente nas USF B, em que frequentemente o horário de trabalho é determinado pelos objetivos a cumprir e não pela carga horária adstrita a um contrato de trabalho. Não foram recolhidos dados relativamente a sexo, idade, estado civil e agregado familiar, nomeadamente menores a cargo e distância da residência ao local de trabalho, dados que poderiam ter impacto neste sentimento de respeito pelos horários e conciliação com atividades extralaborais, familiares e de lazer. As condições de desigualdade de género seriam de considerar num próximo estudo pois, como reportado num estudo do Working Party on Women and Family Medicine, da WONCA, podem ter impacto na satisfação dos profissionais. 12
A oportunidade de desenvolver novas tarefas, de ter voz ativa nas opiniões ou sugestões e na participação em atividades que não exclusivamente assistenciais, como na área da governação clínica, foi maior nas USF B, provavelmente decorrentes do expectável nível de organização mais elevado desta tipologia de equipa. Refletiu-se, por conseguinte, num maior sentimento de valorização do seu trabalho nos médicos internos cuja formação decorreu em USF B. As questões da governação em saúde e qualidade devem ser amplamente discutidas e implementadas em todas as tipologias de unidades de saúde, integrando os médicos internos na sua discussão e participação ativas, tendentes à melhoria contínua e segurança dos processos e sustentabilidade dos sistemas de saúde.
Relativamente às notas de avaliação e à tipologia do local de formação verificaram-se diferenças estatisticamente significativas nas avaliações contínua e final. As notas de avaliação contínua foram estatisticamente superiores nas USF relativamente às UCSP (na avaliação contínua pondera a avaliação de conhecimentos, homogeneizada desde há muitos anos na CIMGFZN, e a avaliação de desempenho, à qual se devem estas diferenças). Na avaliação final, que decorre da média aritmética das avaliações teórica, curricular e prática, verificou-se uma diferença significativa apenas entre UCSP e USF B. Não foram encontrados dados publicados que tivessem estudado esta relação.
De ressalvar que os médicos que terminaram em 2022 tiveram o impacto de dois anos de pandemia por COVID-19 na sua formação (terceiro e quarto anos de internato) e quem terminou em 2021 teve um (quarto ano). Durante a pandemia, muitas consultas foram efetuadas em modelo não presencial, sobretudo por telefone, com a possibilidade das barreiras de comunicação e a incapacidade de examinar fisicamente os doentes poderem ter um impacto negativo na satisfação dos profissionais no trabalho desenvolvido. 13 Não foi solicitado, aquando do preenchimento do questionário, informação relativa ao ano de conclusão da formação, pelo que não é possível saber se ambos os anos estão igualmente representados e se o fator anterior teve impacto na satisfação manifestada.
Toda a recolha de dados foi efetuada com recurso a correio eletrónico e formulário online, o que poderá ter limitado o número de respostas obtidas, pese embora a taxa de adesão observada. Os relacionamentos interpessoais moldam a vivência das experiências e locais, pelo que o relacionamento interpessoal dentro das unidades funcionais (com orientadores de formação e outros elementos) pode sobrepor-se a variáveis relacionadas com o modelo organizacional em que decorre a formação específica em MGF. Será também de considerar um viés de memória, uma vez que as respostas dependem do que o médico recorda sobre a vivência do seu internato de formação específica.
Tendo abarcado toda a população de médicos que terminaram a sua formação em duas épocas, a presente investigação conseguiu uma amostra representativa da realidade sobre o tema em estudo, na região Norte de Portugal; ainda assim, considera-se que seria pertinente a aplicação a nível nacional, aumentando o tamanho da amostra e permitindo a comparação da satisfação com o internato entre regiões e das várias tipologias de unidades de saúde. Outras variáveis poderão ser consideradas, como a influência do ambiente físico (explorar como o ambiente físico do local de formação, incluindo instalações e condições de trabalho, impacta a satisfação e o desempenho dos médicos internos), impacto das condições de trabalho e orientação na satisfação (analisar fatores como tempo disponível para estudo, consulta com orientador ou sem acompanhamento, recursos disponíveis, suportes informáticos e administrativos). Será ainda de considerar a realização de estudos longitudinais para acompanhar a evolução da satisfação dos médicos internos ao longo do tempo, desde o início até o final da sua formação e identificar os principais pontos de inflexão.
Conclusão
Do estudo efetuado foi possível determinar que o modelo organizacional em que decorre o internato em MGF tem impacto no grau de satisfação dos médicos internos de MGF, bem como nas notas de avaliação do internato de MGF. Ainda assim, seria importante aplicar o estudo a nível nacional, com outras variáveis passíveis de influenciar a satisfação dos médicos internos, bem como efetuar um estudo longitudinal, acompanhando a satisfação ao longo do internato.
Agradecimentos
Aos médicos recém-especialistas, por terem participado e contribuído para um melhor conhecimento e compreensão do contexto em que decorre a formação específica em MGF na zona Norte. À Dra. Mariana Goreti Sousa Ferreira Neves, assistente graduada de MGF na USF Aníbal Cunha, da ULS de Santo António, pelo contributo no protocolo de investigação do presente estudo observacional. À Dra. Gisela Leiras, assistente de Saúde Pública, da Unidade de Saúde Pública da ULS Póvoa de Varzim, Vila do Conde, pelo contributo no tratamento estatístico dos dados anonimizados do presente estudo observacional.
Contributo dos autores
Conceitualização, VP e MLL; metodologia, VP e MLL; análise formal, VP e MLL; investigação, VP e MLL; recursos, VP e MLL; curadoria de dados, VP e MLL; redação do draft original, VP e MLL; revisão, validação e edição, VP e MLL; visualização, VP e MLL; supervisão, VP e MLL; administração de projetos, VP e MLL.