Introdução
As doenças inflamatórias intestinais compreendem um conjunto de doenças responsáveis por um estado de inflamação crónica do trato gastrointestinal, entre as quais se inclui a doença de Crohn.1
Apesar de a sua fisiopatologia não estar bem esclarecida, pensa-se que esta é de natureza multifatorial e que poderá resultar de uma resposta imune desadequada a determinados fatores ambientais, como a exposição a fármacos, toxinas e agentes infeciosos, num indivíduo geneticamente predisposto. 2 Caracteriza-se por um estado pró-inflamatório que pode acometer todo o trato gastrointestinal, apesar de envolver mais frequentemente o ileon terminal e o cólon direito. 2
Para além das manifestações que daí podem decorrer, os indivíduos com doença de Crohn apresentam frequentemente sintomatologia extraintestinal, a qual pode preceder as queixas relacionadas diretamente com a inflamação gastrointestinal. 3 A espondilartrite é uma das condições clínicas que com maior frequência se associa a doença inflamatória intestinal, podendo ser classificada em axial ou periférica, de acordo com o seu local de envolvimento. 3 Karreman e colaboradores calculam que mais de 13% dos indivíduos com doença inflamatória intestinal tenham espondilartrite, sendo a artrite periférica uma das manifestações mais comuns (13%), seguida da sacroileíte (10%) e da espondilite anquilosante (3%).1
Apesar da relação próxima entre estas duas entidades clínicas, a espondilartrite continua a ser uma manifestação reumatológica que por vezes passa despercebida. Alguns estudos sugerem que cerca de um em cada vinte indivíduos com patologia inflamatória intestinal e dor lombar têm espondilartrite subdiagnosticada. 4 Lim e colaboradores acrescentam que o subdiagnóstico desta entidade resulta numa duração média de sintomatologia lombar de doze anos em pessoas cuja doença teve início antes dos 45 anos. 4
O atraso no tratamento deste grupo de patologias, bem como a instituição de terapêutica inadequada, pode acarretar um impacto negativo na qualidade de vida destes indivíduos, estando associado a um prognóstico desfavorável, o qual pode resultar em perda irreversível de função. 5 A multidisciplinaridade na abordagem deste grupo de patologias torna-se fundamental no seu diagnóstico e tratamento precoce. O presente caso clínico exemplifica a complexidade do diagnóstico de espondilartrite e, simultaneamente, realça a importância da integração de cuidados na qualidade de vida dos utentes.
Descrição do caso
Antecedentes pessoais
AM, nascida em 2004, estudante universitária, de nacionalidade portuguesa e residente na cidade do Porto. Nascida às 38 semanas com gravidez de risco por HTA e pré-eclâmpsia da mãe. Durante o período neonatal ocorreu internamento por complicações associadas a alergia às proteínas do leite de vaca; registam-se internamentos entre os quatro e oito meses no contexto de bronquiolite e aos 13 meses por varicela complicada com pneumonia.
Teve quadro de exantema urticariforme aos nove e 13 anos de idade (2013 e 2019), de aparecimento súbito, sem etiologia identificada e com resposta ao tratamento com prednisolona 20 mg diária durante três dias e cetirizina 10 mg diária. Em 2017 regista-se quadro de gonalgia direita, que motivou o abandono da modalidade de basquetebol. Foi diagnosticada com doença de Osgood-Schlatter. Aos 14 anos (2019) apresentou quadro de disartria transitória acompanhada de cefaleia, tendo sido acompanhada em consultas de neurologia pediátrica e tido alta aos 17 anos sem diagnóstico definitivo (enxaqueca com aura vs episódio inaugural de epilepsia). Desconhecidas alergias alimentares.
Hábitos de vida saudáveis, sem hábitos tabágicos ou consumo de drogas. Iniciou consumo esporádico de álcool, aos 18 anos, em contexto social. Não pratica exercício físico regular.
Plano Nacional de Vacinação atualizado, com as seguintes vacinas extraplano: hepatite A; Prevenar®; Nimenrix® e Bexsero®. Sem medicação habitual.
Antecedentes familiares
Sem história familiar de patologia reumática ou gastrointestinal.
História da doença atual
Em maio/2020 (16 anos) recorre à médica de família por persistência das queixas de gonalgia direita, as quais se tornaram mais frequentes e incapacitantes, agravadas pelo exercício físico e melhoradas com analgésico e anti-inflamatório não esteroide (AINE). Apresentava limitação na prática de caminhadas curtas e ao descer escadas. Sem história de traumatismo conhecida. Realizou ressonância magnética nuclear (RMN) que revelou, no joelho esquerdo, “marcado edema dos tecidos moles ao nível da cabeça do peróneo, sobretudo em redor da inserção do tendão do solear e com edema medular ósseo subcortical associado. Estas alterações poderão ser de natureza traumática/micro-avulsão, contudo sem destacamento de fragmentos ósseos e integridade preservada do tendão”. A RMN ao joelho direito revelou “discreta alteração de sinal do corno posterior do menisco interno, em relação com provável degenerescência mucoide”. Analiticamente destacam-se a velocidade de sedimentação (VS) elevada (25 mm) e a proteína C reativa (PCR) ligeiramente aumentada (7,6 mg/l). Em setembro/2020, nova consulta por quadro com um mês de evolução de lombossacralgias, de ritmo inflamatório, sem irradiação, associada a rigidez matinal com mais de uma hora de duração, que aliviava com o exercício e agravava com repouso superior a uma hora. No período das crises apresentava limitação importante da mobilidade, com necessidade de apoio por terceiros, incapacidade funcional e assumia posições antálgicas, condicionando impacto emocional. As dores aliviavam com ibuprofeno, embora ressurgissem assim que suspendia a medicação. Ao exame objetivo não apresentava sinais inflamatórios locais ou dor, tendo sido solicitado estudo radiológico sugerindo “sinais de conflito femoro-acetabular”. Sem alterações no estudo lombar e extralongo dos membros inferiores. Perante os achados foi orientada pela médica de família para consulta de reumatologia, ficando disponível para avaliação em caso de agudização. Um mês depois inicia quadro de gonalgia direita com edema e eritema marcado, compatível com artrite do joelho direito (Figuras 1 e 2). Inicia seguimento em consulta de reumatologia no Hospital de Ponte de Lima, em outubro/2020, onde se objetivou gonalgia esquerda e lombossacralgia. No exame objetivo destacava-se derrame de grande volume no joelho esquerdo com dor e limitação da flexão. Analiticamente registava-se leucocitose 11.88/µL, trombocitose 524.000/uL, VS 52, PCR 2,93 mg/dL e fosfatase alcalina (FA) 214 U/L. Realizou artrocentese com saída de 40 cc de líquido amarelo, do tipo hipercelular (inflamatório).
Atendendo ao quadro clínico foram consideradas as hipóteses de diagnóstico de espondilartrite com envolvimento axial e periférico ou artrite idiopática juvenil (AIJ), tendo iniciado terapêutica diária com etoricoxib 90 mg, com melhoria do quadro.
No entanto, após algumas semanas apresentou novamente dor e edema do joelho direito e derrame de grande volume, sendo observada em consulta urgente de reumatologia em novembro/2020. Nesta consulta confirmou-se a presença de anticorpos antinucleares com titulação 1/160, colocando-se o diagnóstico de AIJ com envolvimento axial e periférico e fez-se otimização terapêutica com celecoxib 200 mg bid. Decorridos dez dias contactou a médica de família por agravamento da dor lombossagrada à esquerda, de caráter inflamatório e associada a rigidez, mesmo encontrando-se a fazer analgésico AINE. Agilizou-se também a observação pelo reumatologista assistente, que constatou dor na face lateral do joelho direito associada a ligeiro derrame. Foi solicitada RMN e, por preferência da utente, retoma etoricoxib 90 mg 1 id.
Em dezembro/2020 foi reavaliada pela médica de família por agravamento da dor lombossagrada, predominante à direita, com dor noturna e rigidez matinal e após repouso superior a uma hora. Foi medicada com diclofenac 75 mg + misoprostol 0,2 mg e prednisolona 20 mg, tendo sido agendada consulta com reumatologista na semana subsequente. Nesta constatou-se melhoria clínica com ciclo de corticoide, embora relatando fezes de consistência variável, mais amolecidas que o habitual, por vezes, com retorragias. A RMN realizada denotava sinais de sacro-ileíte bilateral simétrica, cumprindo critérios de sacro-ileíte aguda. Analiticamente mantinha leucocitose 17.11/µL, trombocitose 527.000/uL, melhoria da VS 25, PCR 2,71 mg/dL e melhoria da FA 170 U/L, HLAB27 negativo. Optou-se por manter etoricoxib 90 mg diário e agendar reavaliação após um mês, onde se constatou estabilidade clínica e analítica. Poucos dias após esta consulta, por agravamento da dor lombossagrada inflamatória e coxalgia direita com alívio parcial com etoricoxib 90 mg e paracetamol 1 gr, foi observada pela médica de família, que objetivou coluna lombar com dor ligeira à mobilização e limitação da flexão, anca direita com ligeira limitação da mobilidade e derrame, confirmado por ecografia. Agilizou-se contacto com a reumatologia e foi medicada com prednisolona 10 mg dia, ponderando-se tratamento posterior com metotrexato e adalimumab.
Na sétima consulta de reumatologia, em 19/fevereiro de 2021, com regressão completa da coxalgia com corticoterapia, a utente relatou um episódio de retorragia. Realizou ecografia abdominal, que apresentava hepatomegalia homogénea e analiticamente leucocitose 21.36/µL, plaquetas 501.000/uL, melhoria da FA 137 U/L, GamaGT 55, PCR melhor 1,35 mg/dL. Com a melhoria do quadro clínico, o tratamento com prednisolona foi reduzido progressivamente para 2,5 mg/dia até nova avaliação, após um mês, onde se objetivaram novamente alterações do trânsito gastrointestinal, com diarreia e episódios de perdas hemáticas. A equipa de reumatologia articulou-se com a médica de família para a realização de colonoscopia em ambulatório. Face à complexidade do quadro, a doente é proposta para terapêutica biológica e o caso é discutido em reunião de serviço em abril/2021. Nesse mesmo dia realizou colonoscopia, que revelou “padrão de pancolite com múltiplas ulcerações, áreas de edema friabilidade, intercalando com mucosa normal, mantendo, úlceras nessas zonas”. Assim, a reumatologia decidiu propor terapêutica com anti-TNF, após parecer de gastrenterologia, suspendendo AINE e mantendo 10 mg de prednisolona diária, que aumentou posteriormente para 20 mg por agravamento do quadro álgico.
Foi disponibilizado resultado de biópsia ao cólon, que relatava “provável colite aguda de causa infeciosa. A presença de preservação da arquitetura global e da atividade mucossecretora nesta amostragem desfavorecem a hipótese de doença inflamatória intestinal, exceto se evento inicial/recente”.
Em maio/2021 é observada por gastrenterologia pediátrica, no Hospital de Braga, sendo estabelecido diagnóstico de espondilartrite associada a doença de Crohn, tendo sido sugerido, em coordenação com reumatologista assistente, iniciar adalimumab na dose de ataque de 160 mg, reduzindo para metade, quinzenalmente, até à dose de manutenção 40 mg. Iniciou a terapêutica biológica em junho/2021. No entanto, em julho, quando atingiu a dose de 40 mg, administrada quinzenalmente, notou agravamento significativo das queixas inflamatórias, que se tornaram incapacitantes, inviabilizando a marcha. Nessa altura, é avaliada em reumatologia, em regime de hospital de dia, e solicitada RMN urgente, que descreve continuar “a identificar-se irregularidade das margens articulares de ambas as articulações sacro-ilíacas com erosões ósseas na vertente ilíaca, sobretudo à direita, e extenso edema medular e captação de contraste pelo osso subcondral, também de forma mais exuberante na vertente ilíaca, bilateralmente. As alterações são compatíveis com sacro-ileíte ativa. Há também sinais de sinovite, capsulite e entesite, bilateralmente”.
Apesar da provável falência terapêutica, a reumatologia decidiu manter adalimumab na dose de 80 mg quinzenalmente. Em 2022, após rutura amorosa, da qual decorreu maior labilidade emocional, verificou-se agravamento das queixas articulares e intestinais durante um período de sete dias. Este teve resolução espontânea após estabilização emocional, sem necessidade de alteração da terapêutica, que mantém até ao momento sem novas crises.
Ao longo de todo este processo (Tabela 1), de atribuição de diagnóstico à sintomatologia referida pela utente e da gestão da doença, a médica de família mostrou-se presente na conciliação de estratégias para lidar com os sintomas mais comuns da mesma, capacitando a jovem e a sua família. A aptidão para a agilização e cooperação dos diferentes serviços através da medicina geral e familiar constitui uma característica do exercício desta disciplina, assim como o auxílio na gestão emocional da doença, que se revelou fundamental para a desconstrução de medos relacionados com a mesma e para a concretização dos seus objetivos pessoais, que em diversos momentos se tornaram frágeis à luz do impacto dos sintomas atribuídos a esta patologia.
Esta gestão foi importante não só para a utente como também para vários elementos da sua família, nomeadamente os seus pais, na medida em que permitiu atribuir um novo significado ao conceito de doença, que facilitou a convivência com a mesma.
Comentário
Ao longo da descrição do presente caso clínico é evidente a evolução de uma jovem, desde as primeiras manifestações de doença até ao diagnóstico e orientações terapêuticas, num processo complexo, marcado por muitos sintomas articulares, mas também pelo aparecimento de sintomas intestinais.
O médico de família apresenta-se, ao longo de todo o processo, como uma pedra basilar de acompanhamento, em várias vertentes: suspeita diagnóstica e encaminhamento adequado e atempado; apoio em todo o processo (tanto à jovem como à família); gestão da doença de uma forma global, atendendo a aspetos como dúvidas da utente, expectativas e necessidades (clínicas, familiares e sociais), apoio psicológico, gestão de emoções; elemento de interligação entre os diferentes níveis de cuidados.
As manifestações extraintestinais da doença de Crohn estão geralmente relacionadas com a atividade inflamatória da doença, sendo que a artrite é a manifestação mais comum, podendo, em alguns casos, corresponder à forma de apresentação da doença.6 Existem ainda outras manifestações sistémicas desta, como alterações cutâneas ou oculares. 7-8 No entanto, não foram observadas nesta jovem, embora devam ser alvo de vigilância.
A escolha terapêutica deve ter sempre em conta os seus efeitos secundários. Por exemplo, os tratamentos com corticoides estão associados ao aumento do risco de osteonecrose e de infeção e o tratamento com AINE está associado ao aumento do risco de hemorragia digestiva. 9-10 É importante que sempre que um utente com doença de Crohn desenvolva sintomas de dor articular, rigidez ou dor lombar inflamatória se equacione o diagnóstico de artrite associado a doença inflamatória intestinal. Por outro lado, num doente com artrite que desenvolva dor abdominal, diarreia, perda ponderal ou anemia deve equacionar-se a possibilidade de doença inflamatória intestinal e a sua investigação deve ser levada a cabo.
Em conclusão, este caso enfatiza a importância da colaboração interdisciplinar na gestão de diagnósticos complexos e o estabelecimento de estratégias terapêuticas adequadas.
A coordenação eficaz com o médico de família traduz-se na otimização dos cuidados prestados e a assunção deste como gestor do doente e como elemento fulcral na aceitação da doença crónica pelo utente e sua família.
Por outro lado, relembra a necessidade de revisão constante dos achados clínicos, na construção de diagnósticos que frequentemente assumem características pouco específicas nas suas fases mais precoces.
Perspetiva da utente
“O ano era 2020 quando a minha vida mudou. De repente, dei por mim a acordar todos os dias com dores intensas nas costas que limitavam imenso as minhas rotinas. Chegava a haver dias em que levantar-me da cama era quase impossível. E tudo isso se tornava mais angustiante porque, nessa fase inicial, eu não sabia o que estava a causar um desconforto tão grande. A única coisa que eu podia fazer era esperar que a dor não ficasse pior. Até que um dia fui a uma consulta de Reumatologia e as minhas dúvidas, finalmente, foram esclarecidas. As minhas preocupações foram ouvidas pela equipa médica que, por sua vez, não parou até encontrar a causa das dores. Fui diagnosticada com Espondilartrite associada a doença de Crohn e, finalmente, pude iniciar o tratamento indicado. Desde que comecei a tomar a medicação recomendada pelos médicos, que até hoje me acompanham, finalmente pude voltar a viver a minha vida naturalmente, sem ter que ter medo de que as minhas dores voltassem. E nada disto teria sido possível sem o trabalho incansável dos profissionais de saúde que sempre me fizeram sentir ouvida, demonstrando pura dedicação. Hoje sou capaz de fazer o mesmo que qualquer outra pessoa, sem sentir nenhuma limitação. E devo isso a todos aqueles que conseguiram que isso fosse uma realidade” (AM, agosto/2023).
Contributo dos autores
Conceptualização, LM; metodologia, LM, ALC, ARP, CDM, CM, RS, SA e TB; análise formal, LM, ALC, ARP, CDM, CM, RS, SA e TB; investigação, LM, ALC, ARP, CDM, CM, RS, SA e TB; curadoria de dados, LM e CM; redação do draft original, LM, ALC, ARP, CDM, CM, RS, SA e TB; redação, revisão e validação do texto final, LM, ALC, ARP, CDM, CM, RS, SA e TB; supervisão, LM e TB. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.