Introdução
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a má adesão à terapêutica nas doenças crónicas é um problema à escala mundial. Atualmente, nos países desenvolvidos, a adesão terapêutica nas doenças crónicas ronda os 50%.1
De acordo com a OMS existem pelo menos cinco dimensões que influenciam a adesão à terapêutica: 1) fatores socioeconómicos; 2) fatores relacionados com os serviços/sistemas de saúde e com os profissionais de saúde; 3) fatores relacionados com a doença; 4) fatores relacionados com o tratamento; e 5) fatores relacionados com o utente. Destas cinco dimensões retira-se, desde logo, uma conclusão importante - a adesão terapêutica não é exclusivamente da responsabilidade do utente. Continua a haver a tendência para o foco nos fatores relacionados com o utente, em detrimento daqueles que estão relacionados com os sistemas de saúde. De facto, existe cada vez mais a necessidade de ir ao encontro de uma medicina individualizada, partindo de um pressuposto universal - perante uma determinada patologia, não existe uma estratégia única e infalível que seja eficaz para todos os utentes. Consequentemente, se o objetivo é a adesão terapêutica dever-se-á tentar apurar quais são os principais fatores que, num determinado utente, a estão a influenciar.1
Desde há vários anos que a abordagem do indivíduo enquadrada no seu contexto familiar tem vindo a tornar-se imperativa. Os comportamentos de saúde são desenvolvidos no contexto familiar, sendo que este pode funcionar como recurso positivo ou, pelo contrário, como fonte geradora de stress. Mesmo no contexto de sobrecarga de consultas e de escassez de tempo que o médico de família enfrenta, é importante considerar todas as oportunidades que possam surgir para o cuidado da família. De facto, a maior parte dos utentes apresenta a sua condição de saúde através de queixas pessoais ou sintomas. Contudo, alguns dos sintomas podem ter a sua origem no funcionamento familiar, atual ou passado, e por vezes só têm soluções viáveis se se considerar a visão familiar. 2
Os instrumentos de avaliação familiar fornecem informação importante e podem funcionar como guias diagnósticos e terapêuticos. O genograma é o método mais utilizado para o estudo e avaliação do contexto familiar. Permite combinar informação biomédica e psicossocial de uma determinada família e compreende o indivíduo no contexto familiar. Permite ao médico explorar mitos familiares e conhecer determinados padrões. Admite-se a complementaridade do genograma com a Psicofigura de Mitchell, que identifica o tipo de relações entre os diferentes elementos da família, e com a realização de um círculo familiar. O Círculo Familiar de Trower é um método que permite analisar de que forma o utente valoriza o relacionamento existente entre todos os elementos que, no seu entender, constituem a sua “família” e a que distância emocional e afetiva se coloca de cada um deles. Com a Linha de Vida de Medalie, por seu lado, poder-se-ão compreender as ocorrências que sucederam a um indivíduo num determinado período da sua vida familiar e o impacto que tiveram na sua saúde global. Acompanhando o percurso de vida do doente, o médico percorre com este as diferentes etapas da sua vida, conseguindo encontrar eventos-chave, possivelmente potenciadores de doenças, de crenças e de mitos que, de outra forma, não teria como detetar. 2
Desta forma, a aplicação dos instrumentos de avaliação familiar pode ser um aliado no seguimento e na orientação de várias patologias crónicas, nomeadamente no que concerne à adesão terapêutica, um frequente desafio. No caso particular da HTA, vários estudos têm demonstrado que, apesar da disponibilidade de tratamentos eficazes, menos de 25% de doentes tratados para a HTA atingem um controlo tensional ótimo. A má adesão terapêutica tem sido identificada como a causa principal para esta dificuldade no controlo tensional. 3
No caso clínico em concreto, com a aplicação dos instrumentos de avaliação familiar procurou-se conhecer melhor a utente, a sua história de vida e ficar a par das suas crenças, expectativas e receios. Com o diálogo e o foco sobre o utente que uma avaliação familiar proporciona procurou-se o desenvolvimento de uma relação de confiança e de cooperação que colocasse médico e utente num terreno comum, focados no mesmo objetivo - a obtenção de ganhos em saúde. 2
Descrição do caso
Identificação
Teresa (nome fictício), sexo feminino, 77 anos, raça caucasiana, casada. Frequentou a escola até à 4.ª classe, mas não a concluiu. Teve várias atividades profissionais ao longo da vida: modista, cozinheira, doméstica e, por último, operária têxtil. Atualmente encontra-se reformada, dividindo os seus dias entre atividades domésticas e pequenos trabalhos de costura que realiza para pessoas próximas. Frequenta diariamente atividades de cariz religioso no centro paroquial da sua área de residência.
Quanto à estrutura e dinâmica global, a utente constitui juntamente com o seu marido uma família nuclear. Vive com o cônjuge, mas mantém com este uma relação conflituosa e, segundo a própria, “não se relacionam como um casal” (sic). Encontra-se na fase VIII do ciclo familiar de Duvall e pertence à classe social média, correspondente a um grau III na Classificação Socioeconómica de Graffar.
É totalmente independente para as atividades de vida diárias.
Contexto clínico
Teresa iniciou o seguimento no atual médico de família em setembro/2018, tendo como problemas ativos nessa data a presença de HTA, dislipidemia e perturbação de ansiedade. Como medicação habitual encontrava-se a realizar carvedilol 25 mg (0+0+1) desde “há vários anos, por sentir o coração acelerado” (sic). Tratava-se de uma utente com resistência a qualquer instituição ou mudança terapêutica sugerida pelo médico de família. Mantinha valores de PA marcadamente elevados nas consultas de seguimento (Tabela 1), mas insistia que não pretendia alterar a sua medicação habitual. Perante estes valores foi por duas vezes solicitada uma automedição da pressão arterial (AMPA), que a utente não chegou a realizar. Concordou posteriormente com a realização de uma monitorização ambulatorial da pressão arterial (MAPA), em fevereiro/2020, que documentou “HTA sistólica nas 24 horas com cargas tensionais muito elevadas, sobretudo durante o sono”. Perante o resultado da MAPA e valores de PA novamente elevados em contexto de consulta (PA 166/96 mmHg), a utente é alertada para os riscos associados a esta condição e insiste-se na alteração da medicação, que a utente rejeita de forma perentória. Assim, o médico estava perante um caso de má adesão terapêutica/não adesão às propostas sugeridas, um dos motivos que devem motivar a realização de uma avaliação familiar. Neste contexto, convocou-se a utente para uma entrevista com objetivo de compreender o porquê da relutância à otimização terapêutica e, desse modo, tentar delinear estratégias que permitissem melhorar o seu estado de saúde.
Aplicação dos instrumentos de avaliação familiar na entrevista
A utente integrada num contexto
Quando analisado o genograma e a Psicofigura de Mitchell (Figura 1) poder-se-á apontar a perturbação de ansiedade como padrão de repetição de morbilidade estabelecido na família, presente na utente e na sua filha. De destacar três relações conflituosas:
• Relação conturbada da utente com a mãe, motivada pelo abuso crónico do álcool que a mãe perpetuou ao longo de toda a vida. Este consumo terá tido início após a morte do pai da utente, aos 30 anos. Teresa sentiu-se sempre bastante rejeitada por parte da mãe, referindo que esta sempre se preocupou mais com o álcool do que com as filhas.
• Má relação com a irmã, que atualmente se encontra emigrada, despoletada por conflitos relacionados com a partilha da herança deixada pela mãe.
• Relação muito conflituosa com o marido, sendo este o tema dominante de toda a entrevista familiar. Segundo a utente, o marido é neste momento o seu “maior inimigo” (sic). Esta má relação tem por base várias relações extraconjugais que o marido manteve ao longo dos anos, desde o início do casamento. Associadamente há também o relato de um passado de violência, tanto física como psicológica (que a utente refere que deixou de ocorrer há cerca de dez anos). Quando questionada sobre a motivação para continuar junto do marido, a utente refere que sempre gostou muito dele, e que “o amor perdoa tudo” (sic). Nos momentos finais da entrevista confessou também que mantém esta relação por não conseguir prescindir da estabilidade económica que a união com o marido lhe traz - tem receio de perder a casa, pela qual tem grande estima, uma vez que passou a sua infância em condições muito precárias.
Da representação feita por Teresa no Círculo Familiar de Thrower (Figura 2) destaca-se a forma como posiciona a irmã, os filhos, a nora, os netos e o genro como praticamente equidistantes de si própria. Quando questionada do porquê desta representação, Teresa refere que a sua família é para si toda igualmente chegada, não fazendo distinção nas relações que estabelece com cada elemento. Apesar de estar atualmente de relações cortadas com a irmã, Teresa continua a representá-la perto de si, justificando este facto com as dificuldades que ambas ultrapassaram juntas e o apoio que foram uma para a outra ao crescerem com uma mãe alcoólica. O marido de Teresa é representado totalmente fora do círculo - mais uma vez, representativo da sua relação tumultuosa. Quando Teresa precisa de ajuda refere que a pessoa a quem recorre com mais facilidade é a filha, com quem mantém uma relação muito próxima. Quando questionada sobre como mudaria o seu círculo, caso tivesse a capacidade para alterar a dinâmica familiar, Teresa emociona-se e diz que “gostaria muito de ter uma relação próxima com o marido” (sic) e relata novamente com mágoa a história de adultério.
Circunstâncias de vida e desenvolvimento de patologias - coincidência ou consequência?
Recorrendo à Linha de Vida de Medalie (Tabela 2) e analisando em retrospetiva, a utente dá relevância a eventos que marcaram a sua vida e destaca-se uma figura central - o marido. Inclusivamente há um foco no período da emigração do marido e consequente início de uma nova relação extraconjugal com uma amiga da utente. Nesta fase da avaliação familiar, Teresa revela uma grande labilidade emocional e discorre acerca dos problemas conjugais e da história de adultério que marcaram o seu casamento desde o início. No contexto da relação extraconjugal anteriormente referida, a utente terá iniciado seguimento em consultas de psiquiatria, tendo sido submetida, de acordo com a mesma, a uma terapêutica farmacológica intensiva, com a ingestão de grande quantidade de fármacos, associados a vários efeitos adversos. Refere, então, que qualquer adição à quantidade de comprimidos que toma diariamente e o receio dos efeitos adversos a remetem para um período muito conturbado da sua vida, fazendo-a recordar a traição do marido e o sofrimento físico e psicológico que se seguiu. Deixa, assim, a descoberto o motivo para a relutância na alteração da medicação que tem manifestado ao longo dos anos.
Plano
Após terem sido apurados os receios da utente relativamente à polimedicação e aos efeitos secundários, que a reportavam para uma fase difícil da sua vida, foi acordada a tentativa de utilização de uma associação que juntasse dois anti-hipertensores de mecanismos diferentes num único comprimido, de maneira a não alterar os seus hábitos medicamentosos. Com receio de suspender o único medicamento que a utente sempre associou como tendo grandes benefícios para a sua saúde - o carvedilol - opta-se por uma associação contendo um β-bloqueador. A utente inicia, assim, a associação bisoprolol + perindopril, 5 mg + 5 mg, uma vez por dia. Foi ainda reforçada a importância dos estilos de vida saudável para o controlo da dislipidemia e da HTA. Teresa mostrou-se motivada para a tentativa de iniciar a nova medicação e muito satisfeita por sentir que a sua equipa de saúde estava preocupada com ela, chegando inclusivamente a dizer que, perante tal preocupação, nunca poderia deixar de tentar a nova medicação proposta como sinal de agradecimento pelo tempo despendido para a ouvir.
Seguimento
Decorridos três meses da avaliação familiar foi realizado um contacto telefónico com a utente. Encontrava-se a realizar a nova medicação e referia sentir-se bem adaptada. Referia valores de PA no domicílio sempre inferiores a 140/90 mmHg. Cinco meses após a entrevista é realizada a consulta de seguimento de HTA. Nesta consulta foram registados valores tensionais elevados em três medições efetuadas ao longo da consulta, sendo o último o valor mais baixo registado: 157/92 mmHg. Perante estes valores poder-se-ia ter colocado a hipótese da não adesão terapêutica; no entanto, a utente sempre foi muito honesta relativamente à sua vontade de não aderir aos esquemas terapêuticos propostos, pelo que, uma vez que referia estar a cumprir a medicação, não havia motivos para considerar que tal não fosse verdadeiro. Tendo em conta o historial da utente, que frequentemente desvalorizava os valores tensionais elevados em ambulatório, assume-se como mais provável a hipótese de a terapêutica instituída não estar otimizada. Assim, é-lhe proposto subir a dose de perindopril, passando para a associação bisoprolol + perindopril, 5 mg + 10 mg, alteração que a utente aceita sem qualquer resistência. Não descartando a hipótese de uma HTA de bata branca solicita-se à utente que traga na próxima consulta um registo AMPA, preferencialmente realizado na farmácia, e agenda-se nova consulta em três meses para reavaliação tensional. A utente compreende as recomendações e mostra-se comprometida na adoção de estilos de vida mais saudáveis.
Comentário
Este caso clínico permite refletir acerca de dois aspetos muito importantes na prática da medicina geral e familiar. Por um lado, reforça a ideia de que a escuta ativa e a validação das queixas dos utentes, assim como a tentativa de compreensão do seu contexto, são muitas vezes terapêuticos e reforçam a relação entre o médico e o utente. Neste caso, a realização de uma avaliação familiar levou a uma comunicação mais eficaz e fez com que se estabelecesse um terreno comum entre o médico e a utente, que sentiu que fazia parte da negociação do plano terapêutico e, como tal, ficou mais motivada para o seu cumprimento. Deste modo, a avaliação familiar e, mais concretamente, os instrumentos utilizados na sua realização podem efetivamente adquirir um impacto bastante significativo na interpretação e orientação dos utentes. De facto, nem sempre um doente apresenta espontaneamente um problema familiar ou uma dificuldade em ultrapassar determinada fase de vida, cabendo ao médico do utente e da sua família utilizar instrumentos que lhe permitam identificar áreas problemáticas, potenciadoras de stress e de doença. Pensar no doente é pensar na família e pensar na família é pensar em todas as alterações que ela sofre ao longo do tempo. No fundo, perante um problema de difícil resolução, deve-se colocar uma “lente de menor ampliação”, retirando o foco do doente e avaliando-o inserido no todo familiar. 2
Por outro lado, este relato de caso mostra também a necessidade de adaptação do médico quando se depara com casos em que a terapêutica ótima de acordo com o conhecimento científico atual não é a mais adequada para o utente, que carrega consigo um conjunto de crenças, expectativas e quadros de valores. Deve-se, por isso, tentar, à luz da evidência científica, ajustar a intervenção do médico às expectativas do utente. Não sendo talvez a terapêutica mais eficaz para este caso, a associação de perindopril com bisoprolol foi o melhor compromisso que se conseguiu estabelecer, trazendo ganhos em saúde. Para além disso, o facto de a utente se ter sentido bem com a medicação proposta reforçou a relação de confiança com o seu médico de família, pelo que uma próxima tentativa de modificação ou implementação de terapêutica poderão ser mais bem aceites.
Neste relato de caso é ainda de destacar o papel que a relação marital pode ter na saúde global do indivíduo. Está inclusivamente descrito que na HTA a adesão à terapêutica está associada a uma interação marital positiva - os membros de um casal que mantêm entre si uma boa comunicação recordam-se mutuamente da toma diária da medicação, o que contribui para a adesão terapêutica. 4 Por outro lado, quando a relação marital não é satisfatória, mas conflituosa, deixa de existir suporte emocional e passa a haver emoções negativas que se associam a uma maior probabilidade de doença. Não basta, por isso, ter um parceiro - é necessário que a relação marital seja uma relação emocional em que os parceiros se sintam amados, estimados e validados como pessoas.
Ainda relativamente à adesão terapêutica, vários estudos têm demonstrado que esta está diretamente relacionada com a experiência terapêutica dos utentes, isto é, o impacto positivo ou negativo que uma determinada terapêutica farmacológica teve na sua vida. 5 Esta experiência terapêutica não é apenas pessoal, mas também social, moldada por crenças, religiões, culturas e experiências de vida de uma determinada pessoa e daqueles que a rodeiam. 6 Nas palavras do colega Dr. Mário da Silva Moura, “o Médico de Família é um técnico privilegiado para entender o seu paciente como pessoa integral (e não fragmentada) e inserida no seu ambiente familiar; contudo, isso traz-lhe a responsabilidade de ter de saber ouvir com atenção e de ser sensível aos problemas psicoafetivos e relacionais dos seus pacientes”. 2 Chama-se, assim, a atenção para a necessidade das chamadas patient-tailored interventions - perceber que não existe uma estratégia única e eficaz para todos os utentes, doenças e contextos e que as intervenções que procuram a adesão terapêutica devem ser sempre o mais individualizadas possível. 1