Com o mar no horizonte, vem à minha memória “Lá, onde o vento chora”1... Mas a vida à minha frente chama-me também a outra realidade: à esperança, ao lado bonito da vida... Henrique, ouves o mar?
Não só o ouço como o vejo, nasceu comigo, com a minha mãe e com os ares de Vila do Conde. Não sei se também começa aí o meu fascínio pela imagem e, quem sabe, pela música... Olha, a inovadora iniciativa da teledermatologia, no Centro de Saúde (CS) de Terras do Bouro, onde trabalhei e fui diretor, vem em parte dessa minha paixão pela imagem, pela fotografia, o que mais tarde me levou a colaborar e a fazer a capa da nossa Revista de MGF, a convite do Jaime Correia de Sousa.
A propósito do mar e da música, sei que tens um apego especial pela qualidade do som...
É verdade, cultivo a arte musical, daí veio também a minha amizade com o José Mário Branco, com o Jorge Palma, olha, e com o Octávio Fonseca, o nosso amigo da Equipa Regional de Apoio (ERA) Norte, que eu já conhecia há muito tempo de outras andanças.
Curiosamente, um dos nossos últimos encontros foi no salão Ática, do Coliseu do Porto...
É verdade, numa audição comentada do disco “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, do José Mário Branco, e para apresentação do livro A revolução antes da revolução, de Luís Freitas Branco.
Mar, música, revolução, inquietação, inquietação, inquietação?!
[Sorri.] É verdade, atravessa a minha vida. Desde jovem sempre tive a necessidade de experimentar antes de decidir, de tomar um rumo, um novo rumo. Foi isso, de alguma forma, que me levou a passar pela saúde pública, a pensar na dermatologia, acabando por optar pela então Clínica Geral, atual Medicina Geral e Familiar (MGF). Mas essa inquietação vem de trás, por exemplo, no desporto, joguei hóquei, fiz motocross, mas também fui bombeiro...
Henrique, nasceste em Vila do Conde, moraste em Pedras Rubras e depois viveste em Braga, mas o teu coração é do Porto!
Claro, pá, a cidade, a sua história e, deixemo-nos de rodeios, o FCP (Futebol Clube do Porto)! Eu estudei no velho Liceu D. Manuel II, onde tive professores inesquecíveis... De lá vem a minha grande amizade com o Pedro Mendo, arquiteto, filho do Paulo Mendo, como sabes, sócio honorário da USF AN por minha proposta.
Calma, já lá vamos, à USF AN... Antes disso, liceu e depois Faculdade de Medicina?
É giro, fazes-me lembrar o movimento estudantil, a luta contra o fascismo, pela liberdade, de que a invicta cidade do Porto é baluarte, o processo revolucionário, antes e depois do 25 de Abril, eh pá, mas achas que isso interessa à malta da MGF?
Oh Henrique, a medicina, e particularmente a MGF, não andam sozinhas, separadas da vida...
Claro, claro, tens razão, nem a minha vida, como médico, se compreende separada do meu percurso de vida, como cidadão. De qualquer modo, já chega e não vamos aqui entrar em pormenores...
Muito bem, de acordo, até parece que estamos a fazer uma história pessoal e familiar...
[Sorrisos mútuos.] Não vamos falar de doenças, embora isso até pudesse ser clinicamente interessante. Importante, para a MGF, foi o que juntamente com os outros médicos do CS fizemos para mudar a situação em Terras do Bouro e na então extensão de Rio Caldo, já nessa altura preocupados com o acesso e a equidade. Dava o Serviço Nacional de Saúde (SNS) os primeiros passos...
Henrique, e a clínica?
Eu gosto da MGF, sabes? Da visão global da pessoa, da empatia e da continuidade no acompanhamento personalizado, mas não há dúvida de que o meu maior contributo para a nossa história, da MGF e dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), foi relacionado com o pensamento e a organização, com a transformação dos centros de saúde e do SNS.
Henrique, lembras-te de quando nos conhecemos melhor?
Sim, há largos anos, umas décadas... As primeiras imagens que me vêm à memória são de um passeio no Rio Douro, por ocasião de um encontro de MGF em Trás-os-Montes. Há uma fotografia em que, lado a lado, conversamos, parecemos irmãos, numa cumplicidade que se viria a perpetuar, sabe-se lá até quando...
Provavelmente falavas sobre a tua experiência no CS de Terras de Bouro...
É bem possível, refletindo sobre a realidade e as especificidades dos CS em meio rural, a que dei o meu modesto contributo juntamente com outros colegas, dos quais destaco a Berta Nunes - a sua tese de doutoramento é um marco para a compreensão desse mundo.
Henrique, fizeste parte da Equipa de Missão e foste o primeiro coordenador da ERA Norte, região que sempre liderou a criação de USF...
Grande equipa! Tenho saudades desse período e de toda essa gente!
De ti guardo, guardamos, nós, médicos de família e outros profissionais de saúde das USF, a mais bela, singela, simples e rica definição de USF: “... é, e se não é deveria ser, um serviço de proximidade, pequeno na dimensão, leve na estrutura, simples na organização, afável na relação que estabelece com os utilizadores, fácil no contacto”.
Desculpa, não é bem assim, eu criei-a e escrevi-a para o centro de saúde, já era a minha conceção, a que eu defendia e, se quiseres, de uma forma antecipatória, para o que viriam a ser as USF.
Confesso-te, na minha perspetiva, que a considero um tanto ou quanto poética, face à realidade, mas excelente como ideal de organização de saúde de proximidade, marcando a diferença fundamental e a enorme distância, face a outras realidades, a outros pensamentos e a outras vontades, de domesticação e de burocratização das organizações de saúde.
Pois, dizes bem, é triste o que está a acontecer com a subalternização dos CSP, ao serem submetidos a organizações hospitalares, com a sua cultura própria, incapaz ou dificilmente capaz de compreender uma outra cultura, a dos CSP, essencialmente diferente, no que respeita ao peso em recursos humanos, tecnológico, financeiro e prioridades de ação. A integração de cuidados de saúde, necessária e indispensável, não depende de uma Administração comum, neste caso de Unidades Locais de Saúde (ULS), aliás, como a vida o tem demonstrado.
Desculpa, Henrique, já não sei quem fala, se sou eu ou se és tu...
É natural, temos um percurso comum e por isso as mesmas ideias sucedem-se em catadupa.
Por vezes, o pensamento, as memórias, fazem-me lembrar as águas revoltas do Gerês. Henrique, lembras-te da reunião no Porto, em 2008, em que discutíamos a criação da associação nacional de USF?
A maioria das USF estavam no Norte, tal como hoje ainda acontece. Tu defendias começarmos pela criação de uma associação a nível da região Norte, a que se seguiria, mais tarde, a criação ou extensão à região Centro e à região Sul, conforme a evolução da sua implantação.
E então, com a perspicácia que te é muito característica, perguntaste lucidamente:
Façam de conta que estávamos em Lisboa, e não no Porto, acham que alguém duvidaria quanto à decisão de se criar ou não uma associação nacional?
Henrique, somos cúmplices, comungamos de um ideário que marcou as importantes transformações ocorridas com a Reforma dos CSP.
Certo. E todos os que a congeminámos, lançámos e construímos, fizemos a sua conceção, inclusivamente da sua legislação. Podemos ser criticados por utopia, mas o certo é que elas estão aí, apesar de todas as dificuldades, atrativas e motivadoras para os médicos e profissionais de saúde, dominantes e fundamentais para a preservação do serviço público de qualidade que é o SNS.
Será exagero dizer que foram tempos heróicos?
Não, na área da saúde e da administração pública, foi uma mudança extraordinária, com uma mobilização e participação criativa inéditas, bem caracterizada no documento de 2009 Acontecimento Extraordinário, no qual colaborei, passe a imodéstia. Nesse mesmo ano ajudei a criar a equipa e a USF Manuel Rocha Peixoto, em Maximinos, Braga.
Presidiste ao 4.º Encontro Nacional das USF, em 2012. Sabes que tenho o texto da tua intervenção de abertura...
Sim, o ano em que Guimarães foi a Capital Europeia da Cultura. Foi simbólico e muito importante ligar a nossa experiência, das USF, a saúde em Portugal, o património da cidade, a nossa identidade, com a de outros países. Foi uma enorme honra, para mim e para nós, termos a participação de destacadas personalidades do Observatório Ibero-americano de Políticas e Sistemas de Saúde, na procura e pesquisa de uma visão universal do direito humano à saúde.
Em 2016 foste nomeado para coordenar o relançamento da Reforma dos CSP. Há uma entrevista à RTP em que falas dos seus objetivos e, no final do mandato, fizeste questão de apresentar um Relatório. O que salientas desse trabalho, sucintamente?
Em primeiro lugar, a apresentação pública de contas e a transparência, que são duas características fundamentais cultivadas desde o início pela Reforma dos CSP. Muito sucintamente, eu e a equipa contribuímos principalmente para diminuir danos, o que, em relação com o retrocesso que a Reforma estava a sofrer, já foi muito. Quisemos ir muito mais longe, fizemos mais de quarenta documentos, entre pareceres, recomendações, avaliações e propostas, mas a maioria não foi concretizada. Dou apenas quatro exemplos: o reconhecimento do enfermeiro de família como especialista em saúde familiar e a promoção do perfil de secretário clínico; o reforço das capacidades de intervenção dos CSP nas áreas da psicologia, nutrição, saúde oral e fisioterapia; o desenvolvimento de um programa para a Gestão Integrada da Doença Crónica; e o processo de reestruturação dos ACeS para uma autêntica autonomia.
Henrique, foste diretor executivo e tiveste longa formação de gestão em saúde, tiveste experiências de articulação com outros níveis de cuidados, particularmente com hospitais, não te parece que os ACeS deviam ter autonomia administrativa e financeira?
Hoje, sem dúvida, como disse acima, estas ULS, em geral, são um retrocesso, estas administrações e estruturas têm uma enorme dificuldade em compreender o papel e a importância essencial dos CSP, em se organizarem, não olhando para o seu umbigo, mas em função das pessoas que necessitam dos cuidados e utilizam os serviços. A alternativa é: hospitais e CSP com o mesmo nível de autonomia, interligados através de Sistemas Locais e Saúde, com uma visão da saúde alargada a suportes como a segurança social, a educação, a habitação, o poder local, eh pá... Apesar de eu ter muito medo que os municípios queiram dominar a saúde, risco que é indispensável evitar!
Henrique, hoje não temos tempo para falar de todas as dimensões do teu trabalho, mas não quero terminar esta nossa conversa sem salientar que foste um distinto dirigente do Sindicato dos Médicos do Norte (SMN) e da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), quando era presidente a Merlinde Madureira.
Tenho uma enorme consideração por ela. Bem, mas só isso daria lugar a uma outra entrevista. Já agora, é bom que não te esqueças, também dei a minha colaboração no ensino médico e fui distinguido recentemente pela Ordem dos Médicos.
Quase a terminar, sei que és um cultivador de amizades, como nunca conheci outro, que força é essa?
Não te sei explicar. Sabes, é daquelas coisas que são mais do domínio do sentir... Olha, o livro Porto Saúde - Momento e Movimento, uma autêntica obra de arte (pena que seja tão pouco conhecido), é um pequeno exemplo de trabalho e colaboração com alguns amigos inesquecíveis: o Constantino Sakellarides, que liderou a equipa de coordenadores do livro, o Alberto Péssimo, responsável pela ilustração e o Renato Roque, pela fotografia.
Sempre foste frontal na tua afirmação, como médico, como líder e como cidadão.
Deixa-te de elogios.
É verdade. E a tua vida está marcada por valores de fraternidade e de solidariedade, de luta por um Portugal e um mundo mais justos, “onde todos são irmãos”, como disse António Arnaut em homenagem ao Fernando Valle, de quem tantas vezes me falaste.
É verdade. Olha, dava outra entrevista!
Infelizmente não estarei neste Encontro Nacional das USF (ENUSF), o 15.º...
Eu também não, confio na rapaziada nova.
Nova e velha...
Pois, pois, mas é a nova que tem de fazer o seu próprio caminho, naturalmente, preservando os valores do Serviço Nacional de Saúde - isso, escreve lá por extenso, não vão alguns confundir com o sistema...!
Olha, trouxe-te uma prenda.
A sério?
É um modesto contributo para a preservação da memória - algumas imagens das tuas participações nos encontros nacionais das USF!
Muito obrigado! Dá cá um abraço!
Convidado a escrever sobre o legado do Henrique Botelho para a Revista de MGF aceitei o desafio, embora consciente de que este é apenas um testemunho, o meu olhar, sobre o médico, o amigo e o cidadão. Os familiares, a começar pela Maria João, também nossa colega, as duas filhas, a Mariana e a Teresinha, outros familiares, os amigos, todos os que com ele trabalharam e conviveram, da área da saúde, da cultura e da cidadania, têm seguramente outros e importantes testemunhos sobre a sua vida e o seu digno percurso pessoal, profissional, cultural, político e social.