Introdução
A International Classification of Primary Care (ICPC-2) é o sistema de codificação utilizado em medicina geral e familiar em Portugal e em vários países no mundo, principalmente na Europa. Criado para uniformizar e objetivar os registos médicos em General practice/Family medicine, hoje em dia a iniciar o percurso da denominação Primary Care e em Portugal conhecida como medicina geral e familiar (MGF), é parte dos registos médicos e tem já nova edição denominada de ICPC-3.1-3
A alocação de classificação alfanumérica para sinais e sintomas e diagnósticos passa assim a ser informação médica em linguagem universal. 1,3-4 Atualmente utilizada na língua portuguesa em Portugal gera, em associação com o método SOAP, no sistema informático SClínico, um conjunto de informações importantes quanto ao motivo de consulta, diagnóstico realizado e plano desenhado, permitindo mais fácil estudo clínico e epidemiológico da prática médica e das instituições. Tem intercomunicação com a 10.ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (ICD-10).
Um bom registo, conjunto de anotações e classificações, é essencial na prática clínica, permitindo que o médico tenha presente os antecedentes do doente, conhecendo informação clínica e possibilitando a sua transferência para outras áreas médicas ou para bases de dados de epidemiologia e investigação. 1,6
A ICPC-2 baseia-se numa letra correspondente a um capítulo, que segue a mnemónica inglesa do sistema orgânico e dois algarismos. Cada capítulo está dividido em sete componentes: componente 1 para sintomas (códigos 01 a 29), componentes 2 a 6 para processos de cuidados (códigos 30 a 69) e componente 7 para diagnósticos e doenças (códigos 70 a 99). 7
O método SOAP permite organizar a consulta de MGF e sistematizar as informações clínicas e não clínicas em pontos-chave, classificando-as com recurso ao ICPC-2. 8 No campo A deste método deve ser colocado diagnóstico que, aquando de situação crónica, passará a integrar a lista de problemas crónicos. 8 Estes podem ser ativos ou passivos, se já resolvidos, com ou sem risco futuro. 9 Dada a dificuldade em estabelecer uma definição consensual de cronicidade, esta lista de problemas deve respeitar a lista de condições crónicas classificada pela ICPC-2 elaborada por O’Halloran e colaboradores, que inclui maioritariamente códigos do componente 7 e alguns do componente 1. 10 Esta lista deverá ser atualizada regularmente e sempre que justificado pelo médico de MGF.
Uma lista de problemas desatualizada e indevidamente preenchida vai influenciar negativamente o seguimento do doente nos diversos níveis de cuidados, impedindo a rápida identificação dos principais problemas do doente e da sua morbilidade, dificultando assim o planeamento terapêutico. Poderá ainda descredibilizar estudos no âmbito da MGF, visto que muitos recorrem às codificações das bases de dados. 11
Dada a evolução no exercício da medicina, principalmente no que diz respeito à interação médico-doente, a WONCA assumiu a necessidade de atualizar a ICPC-2 de modo a alinhá-la com a perspetiva atual da medicina baseada na pessoa num modelo biopsicossocial em detrimento da medicina baseada na doença e na medicina clássica. 2 Esta atualização faz uso da ICD-11 e permite a classificação de itens anteriormente não disponíveis quanto a prevenção, fatores ambientais, escolhas e preferências pessoais dos utentes, as suas limitações, a sua evolução e sua reação ao tratamento. 2,4,12 Tal levou à disponibilização da terceira atualização em abril de 2021, o ICPC-3, que, até à presente data, não se encontra disponível no SClínico em Portugal. 2,12
Desde a sua criação e implementação têm surgido diversos estudos da aplicabilidade e fiabilidade do ICPC-2 a nível internacional. A sua aprovação pela OMS como sistema de classificação de referência nos cuidados primários foi corroborada por estudos em vários continentes e que, embora reconhecendo limitações, lhe apontam benefícios. 13-17 Deve ser realçado o seu uso na criação de um índice de morbilidade pessoal ou populacional com base nas codificações realizadas. 19 Foram propostas expansões pela necessidade de codificação de elementos não clínicos na consulta de MGF, denominados de códigos Q que, no entanto, a ICPC-3 veio incluir parcialmente. 2,20
São limitações da ICPC-2 a possível perda de informação da comunicação médico-doente e do ambiente da consulta, a necessidade de formação para o seu correto uso e a morosidade na sua realização. 19,21-22 A dificuldade na escolha de classificação adequada em casos difíceis ou de grande carga de morbilidade pode levar à escolha de classificação no Capítulo A ou mesmo uma escolha não acertada. 23-24
A relevância do presente estudo advém de resposta a sugestão de trabalho exploratório prévio em dois ficheiros de utentes em MGF numa USF, que encontrou classificações indevidamente crónicas (CIC) em 45,5% dos doentes, representando 8,2% das classificações crónicas e apontava a necessidade de estudos de maiores dimensões. 25 Este trabalho revelou ainda que, sem diferença significativa por sexo e idade, os capítulos com maior prevalência de CIC eram o Músculo-esquelético (16,3%), seguido do Psicológico (7,3%) e do Aparelho Genital Feminino, Circulatório e Geral e Inespecífico, todos com 5,7%.25
A presente investigação teve como objetivo identificar sinais e sintomas inapropriadamente colocados na lista de problemas crónicos das pessoas seguidas em Unidades de Saúde Familiar (USF) aleatoriamente escolhidas nos centros de saúde do concelho de Coimbra, a partir de uma lista de códigos ICPC-2 pré-selecionados.
Métodos
Após parecer positivo da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro foi realizado um trabalho observacional transversal dos dados fornecidos pelos serviços de informática da ARS do Centro. Foram solicitados, em anonimato, todos os problemas crónicos existentes na lista de todos os utentes de cada USF à data de 31/dezembro/2022 e com idade inferior a 100 anos. As seis unidades de saúde selecionadas foram sorteadas entre todas as existentes, sendo obrigatoriamente uma de cada centro de saúde: USF Norton de Matos (Centro de Saúde de Norton de Matos com três USF), USF Coimbra Sul (Centro de Saúde de Santa Clara com duas USF), USF Coimbra Centro (Centro de Saúde de Fernão de Magalhães com uma USF e uma UCSP em transição para USF), USF Mondego (Centro de Saúde de S. Martinho do Bispo com duas USF), USF Coimbra Celas (Centro de Saúde de Celas com três USF) e USF Coimbra Norte (Centro de Saúde de Eiras com duas USF). Duas USF, Coimbra Sul e Mondego, são modelo B e as restantes são modelo A.
Arbitrariamente selecionaram-se onze classificações ICPC-2 (A01, A03, A04, L03, L13, L15, K01, K06, P01, P03 e P20), sendo critério de escolha a indicação do anterior trabalho e a existência de outras classificações mais específicas para a sua descrição. Excecionou-se o capítulo W por a CIC encontrada no anterior trabalho ter sido W11 - Contraceção Oral.
Observou-se a proporção de classificações consideradas inapropriadas (CIC) por sexo, por modelo de USF e por grupo etário (até 40 anos, 41 a 64 anos e igual ou maior que 65 anos). A comparação entre grupos etários e as restantes variáveis foi feita através do teste de Kruskal-Wallis. A associação entre o número de classificações incorretas por sexo e modelo de USF, bem como entre USF e sexo, foi realizada pelo teste U de Mann-Whitney e entre grupo etário foi avaliada através do teste de Kruskall-Wallis. Os resultados obtidos foram apresentados às USF selecionadas. Realizou-se ainda estatística descritiva e para analisar a distribuição entre sexo e modelo de USF foi utilizado o teste exato de Fisher. Foi utilizado o programa SPSS, v. 27, para obter os resultados, tendo estes sido avaliados ao nível de significância de 0,05.
Resultados
Num universo de 59.152 pessoas estudadas encontraram-se 8.538 (14,4%) com um dos problemas selecionados como CIC na lista de problemas crónicos. A idade média foi de 54,2±21,8 anos, mínimo de 0 e máximo de 99 anos, moda de 64 e mediana de 56 anos (Q25=40,0 anos, Q50=56,0 anos e Q75=71,0anos).
De acordo com a Tabela 1 e em função do sexo verificaram-se diferenças significativas para o modelo de USF. Em função do modelo de USF, 35,0% da amostra em modelo A era do sexo masculino e em USF modelo B 40,5%. Eram seguidas em modelo A 81,2% das pessoas.
Por grupo etário verificou-se que, significativamente, quando a idade aumentava a frequência do sexo masculino com CIC reduzia, sendo de 47,1% até aos 34 anos, 38,2% dos 35 aos 64 anos e 28,0% em igual ou superior a 65 anos.
Segundo a Tabela 2 verificou-se diferença significativa na distribuição de grupo etário por tipo de modelo de USF, verificando-se um decréscimo da frequência em modelo B à medida que a idade avançava: 21,3% até aos 34 anos, 19,6% dos 35 aos 64 anos e 16,7% para idade igual ou superior a 65 anos.
De acordo com a Tabela 3, a CIC mais frequente foi L03 - Sintoma/Queixa da região lombar, seguindo-se P01 - Sensação de ansiedade/Nervosismo/Tensão e L15 - Sintoma/Queixa do joelho. A média de CIC foi de 5,8±3,0, a mediana de 5,0, a moda de 3 com mínimo de 1 e máximo de 11 por pessoa.
Não se verificou diferença significativa na distribuição de CIC por modelo de USF (p=0,564).
A distribuição de CIC por sexos revelou ser significativamente diferente. A Tabela 4 permite perceber serem mais frequentes no homem L03 - Sintoma/Queixa da região lombar e L15 - Sintoma/Queixa do joelho, K01 - Dor do coração e A03 - Febre, sendo os restantes mais frequentes na mulher.
A distribuição de CIC por grupo etário mostrou ser significativamente diferente (p<0,001) (Tabela 5), sendo de referir a maior frequência de febre no grupo etário mais novo, de Debilidade/Cansaço geral, Sintoma/Queixa da região lombar, Sintoma/Queixa do joelho, Sensação de ansiedade/Nervosismo/Tensão e Sensação de depressão no grupo etário entre 35 e 64 anos.
Discussão
O aprofundamento do conhecimento sobre assunto que um anterior trabalho levantou, na perspetiva da melhoria da qualidade, foi objeto deste trabalho. 25 Passou-se de um trabalho exploratório em duas listas de utentes de uma USF para o estudo, aleatorizado, da população de um concelho do Centro de Portugal, o de Coimbra, que tem grande importância no ensino da MGF e na sua formação pós-graduada. O estudo da lista de problemas crónicos das bases de dados de seis USF (duas USF modelo B e quatro modelo A), sendo uma de cada um dos seis centros de saúde, foi possível pela existência de redes informáticas que permitem o seu estudo. Estudo este que é desejável para o conhecimento do estado da situação e para que possam ser realizadas melhorias. As classificações ICPC-2 foram pré-selecionadas com base nos problemas agudos e/ou inespecíficos mais relevantes anteriormente percebidos e que não devem ser colocados na lista de problemas crónicos pela existência de classificações mais apropriadas. 1,25 Por exemplo, A01 pode referir-se a fibromialgia (L18) e K01 a doença cardíaca isquémica com angina (K74) e a febre (A03) não será nunca uma doença. 1-2
Procurou-se a caracterização da amostra e o estabelecimento do perfil de CIC com o estudo do grupo etário, sexo e modelo de USF. Num uso perfeito da classificação ICPC-2, o total de classificações inapropriadas seria nulo. No entanto, na presente análise localizaram-se 8.538 utentes com registos com as classificações que pré-selecionadas, o que corresponde a 14,5% da população em estudo. Optou-se por estudar apenas as CIC mais frequentes, muitas outras existindo, mas sendo de dimensão quase residual.
Os dados foram organizados por sexo e respetiva proporção por cada USF e no total. A amostra de 8.538 utentes foi constituída por 3.079 homens e 5.459 mulheres, 36% e 64% da totalidade de utentes, respetivamente.
O facto das CIC serem mais prevalentes na mulher pode dever-se ao facto de a maioria da população do concelho de Coimbra ser do sexo feminino e das mulheres serem mais frequentadoras dos serviços de saúde, sendo CIC fenómeno ubiquitário. 26-27
Várias podem ser as explicações para estes resultados, dentre elas e como fatores a estudar no futuro: o número de médicos internos de especialidade a fazer estas entradas, a mediana de idades da população atendida, a ausência de revisão periódica de listas de problemas e o tipo de consulta em que são colocadas as CIC e a influência da sobrecarga laboral. 1,5-6,8-9,26-29
Verificou-se que algumas CIC apresentaram proporções mais elevadas do que outras, registando-se diferenças significativas entre sexos e grupos etários, mas não entre modelos de USF.
As CIC mais frequentes foram L03 - Sintoma/Queixa da coluna lombar (22,7%), P01 - Sensação de ansiedade/Nervosismo/Tensão (22,1%) e L15 - Sintoma/Queixa do joelho (14,3%), correspondendo cumulativamente a 59% do número total de CIC. A justificação pode estar na frequência relativa dos motivos de consulta que mais frequentemente se inserem nestes capítulos da ICPC-2. 29
Já as classificações K01 - Dor do coração e K06 - Veias proeminentes são as menos comuns, com apenas 1,5% e 1,1% do total.
A distribuição de CIC por sexos revelou ser significativamente diferente, sendo a dor generalizada/múltipla mais frequente na mulher e a dor lombar mais frequente no homem.
A distribuição de CIC por grupo etário revelou que a dor generalizada múltipla, a dor na anca e a alteração da memória eram mais frequentes nos mais idosos e a debilidade e dor na coluna lombar mais frequentes no grupo etário intermédio.
Por modelo de USF não se verificaram diferenças significativas (p=0,564), significando que o fenómeno é ubiquitário.
Surge então a necessidade de os médicos de MGF atualizarem e reverem a lista de problemas dos seus utentes, encerrando episódios de doença já resolvidos e eliminando problemas mal classificados, seja pela incerteza ou pela inespecificidade das queixas na altura da classificação, a fim de minimizar o número de CIC. 1,28,30-31
Os resultados encontrados devem-se não ao modelo, mas à prática dos médicos, à eventual falta de formação em ICPC-2, ao tempo de consulta insuficiente, à redução de atenção na colocação de um sinal ou sintoma como problema crónico e à não revisão regular das listas de problemas, assim como do programa de registos que não alerta para o eminente lapso. 1,2,6-8,32
Várias sugestões estão descritas para um bom registo em consulta de MGF com a ICPC-2. 4,7,30 O programa SClínico não deveria permitir a introdução de classificações não incluídas na lista de problemas crónicos elaborado por O’Halloran e colaboradores ou, caso o permitisse, deveria sugerir ao utilizador tal classificação ser CIC. 10 Ao classificar em A, o sistema de registos eletrónicos, o SClínico, deve fazer uma dupla verificação à vontade de classificar como problema crónico, pois um simples enter coloca esse código automaticamente na lista de problemas ativos crónicos. E deve ainda periodicamente solicitar que os registos sejam revistos, por exemplo, pelo envio automático de lembretes aquando da abertura de um processo clínico, referindo a existência eventual de CIC e propondo alternativa(s).
Uma boa classificação depende de adequada formação dos médicos de MGF para a utilização da ICPC-2. Existe um website na Internet e um livro explicativos. 1,33-35
Investimento em formação assegurará que todos os internos e especialistas de MGF têm bom conhecimento deste sistema de classificação e uma utilização correta e de qualidade, assegurando qualidade em projetos de investigação, credibilizando e assegurando a qualidade das bases de dados. 6,8
O tempo para classificação pode ser um entrave ao seu correto uso, podendo-se recorrer a médicos classificadores que fariam esses registos de codificação assíncrona e com recurso aos registos escritos no SOAP pelo médico que realizou a consulta ou que poderiam avaliar e rever as listas de problemas. 6,22 Da revisão e avaliação de classificações poderia surgir um indicador de qualidade dos serviços das USF, mas reconhece-se a dificuldade de tal proposta pelo volume de trabalho que significaria.
A integração da ICPC-3 no SClínico, por se enquadrar melhor no modelo biopsicossocial e na medicina baseada na pessoa, articulando com a ICD-11, permitirá um maior rigor científico e de classificação diagnóstica. 2
O presente estudo apresenta como limitação a pré-seleção de classificações ICPC-2 e o desconhecimento da qualidade formativa de especialistas e internos de especialidade quanto ao correto uso da ICPC-2. Propõe-se, apesar do tipo de trabalho desenvolvido, que, noutras regiões do País, estudos semelhantes sejam realizados.
Conclusão
Numa população de 59.152 utentes abrangidos pelas seis USF aleatoriamente selecionadas para o estudo verificaram-se 8.538 (14,5%) utentes com CIC.
Das classificações pré-selecionadas as mais frequentes foram L03 - Sintoma/Queixa da coluna lombar, P01 - Sensação de ansiedade/Nervosismo/Tensão e L15 - Sintoma/Queixa do joelho.
Verificaram-se diferenças de frequência de CIC por sexo (p<0,001) e por grupo etário (p<0,001), não se verificando em função do modelo de USF, A ou B (p=0,564).
A redução do problema CIC pode estar na formação médica, no plano de trabalho médico na consulta e no aperfeiçoamento do programa eletrónico de registos.
A criação de indicadores de qualidade de classificações é, assim, algo a eventualmente a investir.
As CIC na lista de problemas crónicos descredibilizam as bases de dados e os estudos delas dependentes, prejudicando ainda a comunicação entre profissionais de saúde e o acompanhamento dos doentes.
Contributo dos autores
Conceptualização, BC, BO, JP e LMS; metodologia, BC, BO, JP e LMS; software, BC, BO e LMS; validação, BC, BO, JP e LMS; análise formal, BC, BO e LMS; investigação, BC, BO, JP e LMS; recursos, BO, JP e LMS; curadoria de dados, BC, BO e LMS; redação do draft original, BC e LMS; revisão, validação e edição do texto final, BC, BO, JP e LMS; visualização, BC e LMS; supervisão, BO, JP e LMS; administração do projeto, BC, JP e LMS.



















