Introdução
A diabetes mellitus tipo 2 afeta cerca de 13,3% da população portuguesa.1-2 A metformina foi durante muitos anos considerada primeira linha farmacológica na diabetes, continuando atualmente recomendada, em combinação com intervenções no estilo de vida, em diabéticos sem comorbidades cardiorrenais. 3-4
A metformina é um dos fármacos mais prescritos globalmente. Possui evidência de eficácia e segurança de longa data e tem um custo reduzido. 4-5
Até 30% da população exposta à metformina apresenta deficiência de vitamina B12. 6-11
A vitamina B12, também conhecida por cobalamina, é uma vitamina hidrossolúvel que participa na síntese de DNA, no metabolismo de ácidos gordos e na produção de energia, contribuindo ativamente para o adequado funcionamento do sistema hematopoiético, neurocognitivo e vascular. 12
O défice desta vitamina, definido como valores séricos inferiores a 200 pg/mL, 13 pode manifestar-se como anemia macrocítica, alterações cognitivas, alterações de memória, demência e hiper-homocisteinemia, com aumento de risco cardiovascular, risco de enfarte agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral. Pode ainda simular o aumento de HbA1C14 e causar neuropatia potencialmente irreversível que mimetiza a neuropatia diabética. 7,15 Apesar de ainda não ser totalmente claro o mecanismo fisiopatológico desta neuropatia sabe-se que, sendo a vitamina B12 coenzima para a metilmalonil-CoA mutase produzir metionina, é fundamental na produção de mielina. 12
A neuropatia resultante manifesta-se através da diminuição da sensibilidade vibratória, da proprioceção e da sensibilidade cutânea nos membros inferiores, 12 sintomas também presentes na neuropatia diabética. 5
A neuropatia diabética afeta cerca de metade dos indivíduos com diabetes mellitus tipo 2, sendo um fator de risco para úlceras, infeções, fraturas, amputações e alterações da qualidade de vida e produtividade, bem como sobrecarga dos cuidados de saúde. 5
A sintomatologia sobreponível entre a neuropatia diabética e neuropatia por défice de vitamina B12 dificultam o seu diagnóstico diferencial, que chega a ser indistinguível mesmo em estudos de condução nervosa. 5 Estes fatores conduzem frequentemente a diagnósticos erróneos, assumindo-se neuropatia diabética face a uma neuropatia periférica por défice de vitamina B12. 5
Nos Estados Unidos estima-se um custo anual de 4,6 a 13,7 biliões de dólares com a neuropatia diabética, cerca de um terço dos custos associados à diabetes. 5
Ao assumir-se que a neuropatia por défice de B12 se trata de neuropatia diabética prescrevem-se, por exemplo, anticonvulsivantes e antidepressivos tricíclicos na tentativa de aliviar sintomas e melhorar a qualidade de vida dos utentes. 5 Isto implica o consumo de recursos e efeitos secundários desnecessários, quando a suplementação com cianocobalamina seria suficiente para a melhoria clínica. 5
Outro fator que determina a importância e urgência no diagnóstico deste défice passa pela irreversibilidade do mesmo. Enquanto a anemia por deficiência de vitamina B12 é reversível, a neuropatia é irreversível e a sua progressão pode apenas ser interrompida pelo início da terapia de reposição, uma vez que culmina na desmielinização seguida de degeneração axonal e consequente morte neuronal. 16
O doseamento periódico dos níveis de vitamina B12 permite a deteção precoce e evicção do desenvolvimento desta neuropatia, 17 sendo recomendado pela Associação Americana de Diabetes (ADA), desde 2017, 3 e por outras fontes bibliográficas. 18-20 Estas recomendações são maioritariamente vagas, sendo, no entanto, notória a sua relevância crescente com orientações (recentes) da organização global KDIGO (Kidney Disease | Improving Global Outcomes), recomendando o doseamento anual dos níveis de vitamina B12 em tratamento prolongado com metformina (superior a quatro anos) ou perante risco de baixos níveis de vitamina B12 (síndroma de má absorção ou ingestão dietética reduzida como a dieta vegan). 21
A causa não dietética mais comum de deficiência de vitamina B12 é a anemia perniciosa. Outras causas comuns incluem antecedentes de cirurgia bariátrica e diagnóstico de síndroma malabsortivo. Causas menos comuns incluem o uso de medicamentos como metformina e inibidores da bomba de protões e o diagnóstico de hipotiroidismo. 13,17,22
Este estudo visa identificar a prevalência de défice de vitamina B12 associado à terapêutica com metformina e analisar fatores associados, como eventuais sintomas (anemia e neuropatia), duração do tratamento e dose de metformina utilizada.
Pretende-se contribuir cientificamente para a compreensão do défice de vitamina B12 associado à terapêutica com metformina (epidemiologia, sintomatologia e outros fatores associados) e corrigir precocemente eventuais défices e suas consequências, revertendo a anemia macrocítica e interrompendo o desenvolvimento de uma neuropatia periférica, não diabética, mas potencialmente irreversível nos doentes diabéticos.
Métodos
Desenho do estudo
Foi realizado um estudo transversal.
Em sessão clínica sensibilizou-se a equipa médica de uma unidade de saúde familiar para o doseamento da vitamina B12 aos utentes diabéticos sob metformina. Tendo por base uma revisão bibliográfica, foi exposta a prevalência do problema e suas consequências.
Posteriormente, durante as consultas de vigilância de diabetes mellitus, os médicos dessa unidade de saúde solicitaram o doseamento de vitamina B12 aos utentes diabéticos sob esta terapêutica.
Decorridos vinte meses foram recolhidos e analisados os dados referentes a esta população.
O presente estudo respeitou a Declaração de Helsínquia e foi aprovado pela comissão de ética da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo.
População
Os critérios de inclusão foram: adultos (≥18 anos) com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2 (ICPC-2 T90) sob tratamento com metformina. Os critérios de exclusão foram: antecedentes de cirurgia bariátrica, diagnóstico de anemia perniciosa e diagnóstico de síndroma malabsortivo.
Estes critérios foram aplicados através da consulta dos processos clínicos dos utentes, recorrendo às bases de dados MIMUF®, S.Clínico®, RSE® e PEM®.
Análise
Dentro da população selecionada, que cumpria os critérios de inclusão e exclusão definidos, analisaram-se diversas variáveis: doseamento de vitamina B12 (código A-634 do S.Clínico), proporção de défice (valores inferiores a 200 ng/L - valorizada a determinação com o valor mais baixo), sintomatologia (anemia por deficiência de vitamina B12/folatos - ICPC-2 B81 - e neuropatia - ICPC-2 N94), duração do tratamento com metformina, dose de metformina utilizada, terapêutica simultânea com inibidores da bomba de protões e diagnóstico concomitante de hipotiroidismo (ICPC-2 T86).
A sintomatologia foi avaliada tendo por base diagnósticos de anemia e neuropatia codificados no processo clínico dos utentes com défice de vitamina B12, sendo confirmados através da consulta dos registos médicos do mesmo. Verificou-se que o diagnóstico de anemia teve por base o hemograma e o de neuropatia a sintomatologia do doente e exame objetivo médico.
Foi criada uma base de dados, onde foi atribuído um ID por cada utente elegível para o estudo, assegurando desta forma a anonimização dos dados.
Os autores extraíram os resultados das diferentes variáveis com recurso às bases de dados MIMUF®, S.Clínico®, RSE® e PEM® e registaram-nos na base de dados.
A análise de dados foi realizada em SPSS® (Statistical Package for Social Sciences), v. 25 e os resultados foram expressos em frequências pela utilização de variáveis categóricas.
O presente estudo não foi financiado e não se identificaram conflitos de interesse na sua realização.
Resultados
A amostra de 779 pessoas foi composta por 367 homens (47,11%) e 412 mulheres (52,89%). A idade média da amostra foi de 72,16 anos. Como exposto na Tabela 1, ao longo de 20 meses foram solicitados doseamentos de vitamina B12 a 362 pessoas, correspondendo a 46,47% de todos os diabéticos sob metformina. Destes, 58 (16,02%) apresentaram défice. A população que apresentou défice foi composta por 26 homens (44,83%) e 32 mulheres (55,17%) e a idade média foi de 75,22 anos.
O valor de vitamina B12 entre 100-200 ng/L foi o intervalo de défice mais frequente, apresentado por 53 pessoas (91,38%) (Tabela 2).
Todos os indivíduos com défice faziam metformina há seis ou mais anos e a dose de metformina mais utilizada na população com défice foi a de 2000 mg/dia (n=38, 65,52%). Cerca de 27,59% (n=16) encontrava-se medicado com dose de metformina inferior a 2000 mg/dia e 6,90% (n=4) com dose superior a 2000 mg/dia.
Na Tabela 3 constata-se que apenas seis (10,34%) dos utentes com défice apresentaram sintomatologia: um anemia (1,72%) e cinco neuropatia (8,62%). Entre os utentes com défice, 25 (43,10%) faziam simultaneamente um inibidor da bomba de protões. Entre os utentes sem défice, 97 (31,91%) encontravam-se também medicados com inibidor da bomba de protões. Apenas três (5,17%) dos utentes com défice apresentaram diagnóstico concomitante de hipotiroidismo (ICPC-2 T86).
Discussão
O presente estudo pretende contribuir para a compreensão do défice de vitamina B12 associado à terapêutica com metformina, clarificando as recomendações atuais.
Conhecem-se apenas dois estudos retrospetivos que estimam a prevalência de défice de vitamina B12 em diabéticos portugueses sob metformina. 17,23 Dos utentes diabéticos sob metformina com doseamento de vitamina B12, 16,02% apresentaram défice, valor concordante com o intervalo de 10-30% reportado em estudos anteriores. 6-11,17,23 Apurou-se que a totalidade de indivíduos com défice fazia metformina há seis ou mais anos, dados concordantes com a bibliografia, que aponta para a redução na concentração de vitamina B12 com o aumento da duração da terapia com metformina. 18 Em 91,38% dos casos, o défice foi diagnosticado perante valores de B12 entre 100-200 ng/L, sendo poucos os indivíduos sintomáticos (10,34% dos utentes com défice), como previamente reportado na literatura. 21 Entre os utentes com défice, 43,10% faziam simultaneamente um inibidor da bomba de protões. Este valor é ligeiramente superior aos 31,91% dos utentes sem défice medicados com inibidor da bomba de protões. Apenas três (5,17%) dos utentes com défice apresentaram diagnóstico concomitante de hipotiroidismo (ICPC-2 T86), sendo importante salientar que a maioria dos utentes com este diagnóstico se encontrava controlado, em estado eutiroideu.
A adição do doseamento sérico de vitamina B12 às análises habituais dos utentes diabéticos sob metformina permite a identificação do seu défice. Permite também identificar indivíduos com risco aumentado de défice no futuro ao identificar valores borderline (200-300 ng/L). Esta avaliação laboratorial poderá considerar-se, assim, um rastreio, já que cumpre os seguintes critérios: incide na população diabética, que tem elevada prevalência de doença (16,02% neste estudo); identifica um défice que conduz a doença grave, com elevada comorbilidade e impacto na qualidade de vida, passível de tratamento efetivo e consequente modificação do curso da doença; o doseamento é reprodutível, fiável, pouco invasivo, aceitável pela população e cómodo, uma vez que se sugere a sua adição às análises habitualmente pedidas ao utente diabético; a sensibilidade e especificidade deste doseamento são muito variáveis, mas aceitáveis. Assim, o diagnóstico seria facilmente confirmado, permitindo a instituição de um tratamento disponível, aceitável, acessível e efetivo, constituindo também um programa economicamente viável.
Como alternativas ou adjuvantes a esta avaliação, a literatura identifica o doseamento de ácido metilmalónico e homocisteína (aumentados no défice de cobalamina). 6,23 No entanto, estes dois últimos parâmetros não são comparticipados nos cuidados de saúde primários.
Com a crescente incidência de diabetes mellitus e diagnósticos mais precoces é expectável que existam cada vez mais utentes a fazer metformina por períodos prolongados. 12 Perante o défice, a suspensão da metformina constituiu uma atitude terapêutica pouco comum, uma vez que as biguanidas são eficazes no controlo da DM e a suplementação com cianocobalamina corrige o défice.
Atualmente não existe consenso sobre a vigilância e tratamento adequado da deficiência de B12 em diabéticos sob metformina, apesar da descoberta desse efeito ter ocorrido há cerca de meio século. 5
Sabendo que as reservas de vitamina B12 no organismo têm uma duração média de dois a cinco anos e que o tratamento prolongado com metformina (superior a quatro anos) aumenta o risco do seu défice, sugere-se um doseamento pelo menos a cada quatro anos nos utentes sem défice. 18,21-22
Como limitações do presente estudo identifica-se a ausência de grupo de controlo e a não inclusão de marcadores indiretos e mais sensíveis de défice de vitamina B12, como a homocisteína e o ácido metilmalónico, 23 que, por não serem comparticipados, não foram doseados. O diagnóstico de neuropatia baseou-se apenas na consulta retrospetiva de registos clínicos que refletem sintomas dos doentes e exame objetivo médico, sem implicar a realização de exames complementares de diagnóstico específicos. Sublinhe-se ainda que a metodologia seguida na investigação limita o estabelecimento de causalidade entre os parâmetros analisados.
Apesar das suas limitações, o estudo releva dados que reforçam a importância do rastreio de défice de vitamina B12 em diabéticos sob metformina. Este doseamento periódico permite corrigir precocemente eventuais défices e evitar as suas consequências, como o desenvolvimento de neuropatia potencialmente irreversível nos doentes diabéticos, população por si só já dotada de grande fragilidade.
Conclusão
No presente estudo, 16,02% dos utentes diabéticos sob metformina com doseamentos de vitamina B12 apresentaram défice, encontrando-se todos medicados com metformina há seis ou mais anos. A maioria dos indivíduos com défice de vitamina B12 apresentava valores de 100-200 ng/L e encontrava-se assintomático (89,66% dos utentes com défice).
O estudo argumenta a favor do doseamento dos níveis de vitamina B12 durante a terapêutica com metformina, sendo necessária mais investigação sobre outras variáveis que possam influenciar os valores séricos de vitamina B12 e a duração do tratamento deste défice.
Contributo dos autores
Conceptualização, JA; metodologia, JA, AP e ES; validação, JA, AP e ES; análise formal, JA, AP, ES, MF e MO; investigação, JA, AP, ES e MF e MO; recursos, JA, AP, ES, MF e MO; curadoria de dados, JA, AP, ES, MF e MO; redação do draft original, JA; revisão, validação e edição do texto final, AP, ES, MF e MO; visualização, JA e ES; supervisão, JA; administração do projeto, JA.

















