Introdução
Os profissionais dos cuidados de saúde primários têm sido responsáveis por acompanhar os casos expostos, suspeitos ou confirmados de infeção por SARS-CoV-2. Esta atividade é realizada com recurso à plataforma digital Trace COVID-19®, desenvolvida pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS).1-3 Todos os casos suspeitos ou confirmados de COVID-19 são introduzidos após terem contactado o SNS24®, após observação médica nos locais de Atendimento aos Doentes Respiratórios (ADR) ou após rastreios realizados em escolas ou empresas. Todos os utentes inseridos nesta plataforma são organizados pelas respetivas Unidades de Saúde Familiar (USF) e é da responsabilidade de cada USF realizar o seguimento telefónico aos seus utentes, o que é denominado por «tarefa» na Trace COVID-19® até que sejam atingidos critérios de alta.
Os casos suspeitos ou infetados surgem como uma tarefa de «Vigilância Sobreativa» na Trace COVID-19®, sendo da responsabilidade dos médicos de medicina geral e familiar (MGF) realizar o seu seguimento clínico. Segundo a atualização de outubro de 2020 da Norma da DGS número 004/2020 (que vigorava no momento de realização do presente estudo), o primeiro contacto telefónico a estes indivíduos deve ser realizado nas primeiras 24 h.
Na USF Alcais cada médico de família é responsável pelas tarefas de «Vigilância Sobreativa» dos utentes da sua lista. Estão definidos três contactos telefónicos obrigatórios: o primeiro, nas 24 horas seguintes à introdução do utente na plataforma; o segundo, no momento do resultado do teste de diagnóstico; o terceiro, na data previsível da alta do isolamento. É também disponibilizado o e-mail da USF caso seja necessário um contacto adicional pelo médico.
O primeiro contacto após introdução na plataforma é importante para:
Avaliação clínica e validação da suspeita de infeção por COVID-19;
Prescrição do teste molecular para SARS-CoV-2, caso ainda não tenha sido emitido;
Notificar a suspeita na plataforma SINAVE (se ainda não estiver notificado);
Assegurar que o doente tem condições de habitabilidade e exequibilidade de isolamento, bem como se se encontra a cumpri-lo;
Excluir critérios para avaliação hospitalar ou para internamento;
Prescrição de terapêutica sintomática e suporte (caso ainda não tenha sido feita);
Esclarecer dúvidas sobre a infeção e eventual necessidade de certificado de incapacidade temporária (CIT) para o trabalho e informar sobre evolução prevista;
Disponibilizar contactos em caso de agravamento e explicar circuito para avaliação presencial, caso seja necessária.
Contudo, perante um caso suspeito, o médico que o observe presencialmente (e.g., no ADR-Comunidade) consegue realizar todas estas tarefas antes de o inserir na Trace COVID-19®. Por sua vez, o enfermeiro do SNS24®, perante um caso suspeito, também consegue realizar a maioria destas tarefas, ficando a faltar apenas as prescrições de CIT e de terapêutica sintomática, as quais podem ser executadas após o resultado do teste molecular.
Assim, percebeu-se que mais importante que o contacto nas primeiras 24 horas após introdução de um caso na Trace COVID-19® seria o contacto telefónico após obtenção de resultado confirmatório. Esta medida tornava-se ainda mais importante nos casos positivos após realização de autotestes ou de testes de rastreio em massa, uma vez que nestas situações não teria havido avaliação clínica prévia nem da capacidade de cumprir autoisolamento.
No início de 2021, o número de novos casos de COVID-19 aumentou de forma acentuada, tendo início a terceira vaga da pandemia. A 28/janeiro verificou-se um pico de 16.432 novos casos em Portugal. 4 Na semana seguinte, a média foi de 7.270 novos casos diários, o que se traduziu numa média de 302 tarefas diárias em «Vigilância Sobreativa» na USF Alcais, um valor quatro vezes superior ao registado no final de 2020.
Apesar de estar a funcionar com serviços mínimos, o aumento significativo de novos casos e a ausência temporária de um elemento da equipa médica desde setembro de 2020 resultaram numa sobrecarga da atividade clínica para os recursos disponíveis. Começou a verificar-se um atraso na realização das tarefas de «Vigilância Sobreativa», nomeadamente as relativas a novos infetados, com evidente risco para a saúde destes indivíduos e para a saúde pública.
Métodos
Após identificar a sobrecarga no seguimento em ambulatório dos doentes infetados com SARS-CoV-2 na USF Alcais foi desenvolvido um estudo prospetivo quasi-experimental, pré e pós-intervenção, sem grupo controlo. Procurou-se avaliar e melhorar a eficácia na realização do primeiro contacto telefónico em menos de 24 horas a novos infetados com COVID-19.
As tarefas apresentadas aos profissionais de saúde na plataforma Trace COVID-19® podem ser divididas em diferentes tipos, entre eles a «Vigilância Ativa», que corresponde às tarefas relativas a casos de contacto assintomáticos. Estas tarefas eram da responsabilidade da equipa de enfermagem. A partir do momento que a pessoa se encontra infetada ou é um caso suspeito com sintomas a tarefa passa a «Vigilância Sobreativa», passando para a responsabilidade da equipa médica. A cada tarefa é ainda atribuída uma mensagem descritiva padronizada.
A tarefa relativa ao primeiro contacto após resultado positivo surge na plataforma Trace COVID-19® com a descrição: Comunicar resultado positivo ao utente. Deverá ficar em Vigilância Sobreativa e ser feito seguimento, ser atualizado o estado de exame e o estado de pessoa para ‘Infetado’. Deverá ainda notificar no SINAVE MED. Embora possam existir variantes, o excerto «Comunicar resultado positivo» está sempre presente quando há um resultado positivo no teste e é facilmente identificável e pesquisável.
Neste estudo foram incluídos todos os utentes que correspondessem a novos casos de infetados com SARS-CoV-2 inscritos na USF em estudo e inseridos na plataforma Trace COVID-19® sem um primeiro contacto pelo médico. Foram excluídos os casos positivos de utentes inscritos noutra unidade de saúde, bem como os casos cuja descrição da tarefa contivesse o excerto «Comunicar resultado positivo ao utente», mas cujo resultado decorresse de uma repetição de teste num doente já infetado (e.g., nos casos de profissionais de saúde).
A elaboração do projeto, bem como a sua implementação, decorreu no período temporal de um mês com três momentos distintos de recolha e avaliação de dados, realizada pelo autor principal e verificada pelos coautores:
Elaboração do protocolo de trabalho: 18 a 29/janeiro/2021.
Recolha inicial de dados (pré-intervenção): 1 a 6/fevereiro/2021.
Segunda recolha de dados (pós-intervenção imediato): 8 a 13/fevereiro/2021.
Terceira recolha de dados (pós-intervenção tardio): 22 a 27/fevereiro/2021.
Os dados foram recolhidos e analisados com recurso ao programa Microsoft Excel®.
O protocolo consistiu em:
Identificar os novos positivos na Trace COVID-19® através da ferramenta de pesquisa, utilizando o excerto «Comunicar resultado positivo».
Verificar se se tratava de um novo positivo e não de uma repetição de teste num indivíduo já infetado.
Registar o número total de novos casos positivos atribuídos à USF Alcais na folha de Excel® no início de cada dia a aguardar contacto.
No final de cada dia verificar quantas destas tarefas tinham ficado concluídas, sendo calculada a respetiva taxa de execução.
Relativamente às tarefas de novos infetados que ficassem por completar no final de cada dia verificar o dia e a hora de introdução na lista de tarefas e calcular o número total de horas que ficou a aguardar o contacto.
Para conseguir manter o seguimento de cada indivíduo em espera foram retirados apenas os últimos cinco algarismos do número de utente, garantindo o anonimato da sua identidade.
A intervenção foi do tipo educacional, realizada em reunião de equipa médica, no final da primeira semana de fevereiro. Todos os médicos em funções na USF Alcais foram envolvidos neste projeto. Foi feita a apresentação do protocolo e dos resultados da primeira avaliação, tendo-se definido o padrão de qualidade a atingir. Ensinaram-se todos os elementos a utilizar a filtragem da plataforma para encontrar os novos infetados. Foi destacada a importância de priorizar o contacto com estes utentes o mais brevemente possível, em detrimento de outras tarefas burocráticas. Nos dois períodos pós-intervenção, o número de novos positivos no início de cada dia foi comunicado à equipa médica por, pelo menos, dois autores do presente estudo. De forma a evitar falhas de comunicação, um dos autores transmitia essa informação de forma presencial a cada médico e o outro enviava uma mensagem de texto digital através de uma aplicação de mensagens em grupo que inclui todos os elementos da USF.
Foi estabelecido como critério de qualidade a taxa diária de novos infetados com SARS-CoV-2 que aguardavam menos de 24 horas por um primeiro contacto médico. O padrão de qualidade aceite pela equipa médica foi o seguinte:
A meta consistiu em aumentar a taxa de novos infetados com SARS-CoV-2 que aguardavam menos de 24 horas por um primeiro contacto médico.
Resultados
Na primeira fase do estudo, a avaliação pré-intervenção revelou uma média de 302 tarefas de «Vigilância Sobreativa» por dia na USF Alcais. Trinta e nove correspondiam a novos doentes infetados com SARS-CoV-2, dos quais apenas 35,9%, em média, eram contactados por dia (Tabela 1), ficando mais de metade a aguardar por um primeiro contacto.
Em pormenor, na primeira semana de fevereiro registou-se um total de 148 novos infetados que ficaram a aguardar um primeiro contacto (Tabela 2). Destes, apenas 19, cerca de 12,8%, foram contactados nas primeiras 24 horas após o resultado positivo. A maioria ficou a aguardar por este contacto mais de 72 horas e a proporção de doentes com mais de três dias de espera por um primeiro contacto médico aumentou ao longo dessa semana (Tabela 2; Figura 1).
Tabela 1 Média diária de tarefas de «Vigilância Sobreativa», de novos doentes infetados e de novos infetados a aguardar o primeiro contacto médico nas três fases do estudo. Taxa de novos infetados relativamente ao total de tarefas em «Vigilância Sobreativa» e taxa de execução do primeiro contacto aos novos infetados
Tabela 2 Fase pré-intervenção. Número total diário de novos infetados no início de cada dia, número de novos infetados em espera pelo primeiro contacto no final do dia e respetivo tempo em espera na USF Alcais
No período pós-intervenção imediato houve, em média, 195 tarefas de «Vigilância Sobreativa» por dia, das quais 14 corresponderam a novos doentes infetados. A taxa de execução de primeiros contactos foi de 92,9%, bastante superior à da pré-intervenção, ficando, em média, apenas um doente por contactar diariamente (Tabela 1). Em termos absolutos, nesta fase verificou-se um total de 82 novos infetados. Ao longo da semana, sete pessoas ficaram por contactar no final do dia. Contudo, apenas uma aguardou mais de 24 horas pelo primeiro contacto médico, o que corresponde a uma eficácia de 85,7% (Tabela 3; Figura 2).
Tabela 3 Fase pós-intervenção imediato. Número total diário de novos infetados no início de cada dia, número de novos infetados em espera pelo primeiro contacto no final do dia e respetivo tempo em espera na USF Alcais
No período pós-intervenção tardio, o número médio de tarefas de «Vigilância Sobreativa» foi de 58 por dia, com cerca de dois novos casos diariamente (Tabela 1). Em termos absolutos houve um total de catorze novos infetados nessa semana. Todos foram contactados no próprio dia, o que corresponde a uma taxa de 100%, quer na execução destas tarefas quer na eficácia da realização do primeiro contacto em menos de 24 horas (Figura 3).
Discussão
O rastreio de contactos através de ferramentas digitais tem sido fundamental no controlo da pandemia por COVID-19 a nível mundial, juntamente com outras medidas de saúde pública. 5-6 Em Portugal foi desenvolvida para este efeito a plataforma digital Trace COVID-19®, que permite o rastreio de contactos, bem como o seguimento em ambulatório de pessoas infetadas com o vírus SARS-CoV-2. O presente trabalho centrou-se neste segundo aspeto, mais especificamente na melhoria do tempo de resposta até à primeira avaliação médica de novos infetados.
A COVID-19 é uma doença altamente contagiosa e potencialmente grave. Assim, é necessário garantir o isolamento destes doentes e assegurar a prestação de cuidados. Enquanto os casos de maior gravidade necessitam de observação e internamento hospitalar, os indivíduos com doença ligeira podem realizar o isolamento no domicílio e ser periodicamente submetidos a avaliação clínica. No início da pandemia, este seguimento foi executado com uma periodicidade quase diária pelos médicos de família. O crescente conhecimento sobre a doença, quer pelos profissionais de saúde quer pela população em geral, permitiu que a avaliação clínica fosse mais intervalada. Além disso, o desenvolvimento contínuo da Trace COVID-19® possibilitou o reporte de sintomas na plataforma pelo próprio doente, reduzindo ainda mais a necessidade de contactos telefónicos.
Contudo, no início de 2021, uma série de fatores contribuíram para a sobrecarga dos profissionais dos cuidados de saúde primários. Além do aumento acentuado de novos casos, assistiu-se à requisição destes profissionais para os centros de vacinação e para estruturas residenciais para idosos. Tudo isto contribuiu para alguma desorganização da atividade clínica habitual, comprometendo a saúde dos utentes.
Na USF Alcais, no período pré-intervenção, a avaliação inicial corroborou a sobrecarga da equipa, verificando-se um número excessivo de tarefas prioritárias por completar. A maioria dos novos infetados ficava a aguardar pelo primeiro contacto médico. Apenas 12,8% destes indivíduos foram contactados em menos de 24 horas, o que corresponde a um nível de qualidade insuficiente. A reduzida taxa de execução destas tarefas levou ao progressivo aumento do tempo de espera pelo primeiro contacto médico ao longo da semana, que foi superior a três dias para a maioria das pessoas.
A intervenção procurou alertar a equipa médica para as falhas encontradas e conjugar o trabalho de cada médico para um objetivo comum. Em primeiro lugar, apesar de serem informados do número total de tarefas diárias por realizar, nem todos os médicos verificavam o número de novos casos positivos. Em segundo lugar, certos elementos tinham limitações do foro tecnológico, nomeadamente não saber utilizar a pesquisa para refinar a filtragem de tarefas na Trace COVID-19®. Por último, verificou-se que os médicos priorizavam as tarefas relativas aos utentes que já se encontravam a seguir.
É sabido que a comunicação é um pilar fundamental para melhorar a efetividade do trabalho em equipa, 7 especialmente em momentos de crise. Assim, a reunião da equipa médica foi importante para esclarecimento de dúvidas, definição clara de prioridades e estabelecimento de metas a atingir. A implementação dos lembretes diários permitiu que cada médico se mantivesse atualizado sobre o número de novos infetados, o que poderá ter funcionado como um alerta sobre as tarefas prioritárias, mas também como um estímulo para cumprir com as metas estabelecidas em equipa.
Nos períodos após a intervenção, imediato e tardio, a taxa de realização do primeiro contacto com novos infetados melhorou para valores de 92,9% e de 100%, respetivamente, o que demonstra que as medidas implementadas foram eficazes. De facto, a maioria destes indivíduos foi contactada no próprio dia ou aguardou menos de 24 horas por esse contacto, atingindo-se o padrão de qualidade muito bom, o nível máximo estabelecido, nas duas fases pós-intervenção.
É importante notar que uma limitação deste trabalho consiste na variação de novos infetados a nível nacional ao longo das diferentes fases do estudo. Ainda que não fosse possível de controlar ou prever, verificou-se uma redução progressiva do número de novos casos a nível nacional em resultado das medidas de saúde pública, o que aliviou o número de tarefas atribuídas à USF Alcais e contribuiu para o atingimento dos objetivos.
Desta forma, é um trabalho que tem maior relevância em fases mais críticas da pandemia, quando há um aumento rápido e significativo do número de casos, ou em fases incipientes da pandemia, em que a importância de esclarecer o doente é maior. É nessas fases de maior sobrecarga ou de incerteza que pode surgir desorganização na equipa, como se verificou nesta USF. Assim, além de se ter atingido o padrão mais alto de qualidade estabelecido, o desenvolvimento deste trabalho pode ter sido, em si mesmo, uma ferramenta que trouxe motivação e coesão à equipa médica num momento de crise.
Conclusão
O presente estudo é mais um exemplo da resiliência dos profissionais de saúde, neste caso, dos médicos de família. Tratou-se de um estudo que demonstrou ser possível aumentar a eficácia de uma equipa, mesmo perante uma fase crítica, nomeadamente perante a limitação de recursos humanos, a necessidade de atualização sobre uma nova doença e, ainda, a necessidade de adaptação a uma nova plataforma digital de saúde (Trace COVID-19®).
Neste contexto de sobrecarga, a identificação de uma só tarefa prioritária e a implementação de simples lembretes diários relativos a essa tarefa foi o suficiente para redirecionar o foco da equipa médica, conseguindo melhorar a sua eficácia e, indiretamente, obter ganhos em saúde pública.
A sustentabilidade das medidas implementadas no presente estudo ficará dependente da facilidade com que os elementos comunicam entre si e mantêm o foco relativamente ao objetivo definido. Nesse sentido, poderá ser benéfico envolver os restantes elementos da USF no projeto, nomeadamente os enfermeiros na colaboração das tarefas clínicas e os assistentes técnicos na facilitação da comunicação em equipa.
Apesar de não existirem estudos semelhantes em Portugal é um trabalho que pode ser reproduzido noutras USF em momentos de crise, não necessariamente relacionados com eventos pandémicos.
Protocolos de melhoria contínua de qualidade são raros na literatura nacional. No futuro, seria interessante haver mais trabalhos desta tipologia publicados e de diferentes níveis de cuidados, já que são um estímulo ao desenvolvimento de estratégias de trabalho mais eficazes e sustentáveis.

















