Introdução
A doença renal crónica (DRC) é definida pela Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) como uma anomalia da estrutura ou da função renal, que está presente durante, pelo menos, três meses e com implicações para a saúde do doente.1
A DRC representa um grave problema de saúde pública, 2 com elevada incidência e prevalência a nível mundial e que se associa a elevada morbimortalidade, assim como a uma importante redução da qualidade de vida. Em Portugal, os dados publicados reportam uma prevalência de DRC entre 6,1%3 e 10,62%,4 o que representa a prevalência mais elevada da Europa e uma das maiores do mundo. A Organização Mundial da Saúde aponta como principais fatores de risco para o desenvolvimento de DRC a diabetes mellitus, a hipertensão arterial, uma idade superior a 65 anos, os hábitos tabágicos e etílicos e a obesidade. A elevada prevalência destes fatores de risco, em Portugal, poderá justificar a elevada incidência da DRC. 5
Entre as principais causas de DRC encontram-se a nefropatia diabética, glomerulonefrites, a doença renal associada a hipertensão, doença renal poliquística autossómica dominante e outras nefropatias quísticas ou túbulo-intersticiais. 6-7
Os critérios para o diagnóstico de DRC incluem a diminuição da taxa de filtração glomerular (TFG) para valores inferiores a 60 ml/min/1,73 m² ou a presença de marcadores de lesão renal como: albuminúria (taxa de excreção de albumina ≥30 mg/24 horas ou rácio albumina/creatinina ≥ 30 mg/g), alterações no sedimento urinário, alterações eletrolíticas devido a distúrbios tubulares, alterações histológicas, anomalias estruturais detetadas em estudo imagiológico ou antecedentes de transplantação renal. 1,6
O prognóstico da DRC depende da causa da doença, da TFG, da albuminúria e de outros fatores de risco e comorbilidades presentes concomitantemente. A KDIGO resume o prognóstico e o número de avaliações anuais da TFG e albuminúria de acordo com o risco de cada doente. 8
Para um médico de família é de vital importância saber se o seu doente tem DRC e/ou qual a sua TFG atual, dado que à medida que a função renal ou TFG do doente diminui o seu risco de complicações cardiovasculares aumenta. 1,9 Uma vez que existe uma ampla variedade de fármacos que são excretados a nível renal, é necessário que o médico de família proceda ao ajuste terapêutico nos doentes com DRC de forma a prevenir complicações. 1 Por outro lado, se um doente necessitar de um meio complementar de diagnóstico de imagem, com recurso a contraste, é essencial instruir o doente para que este reforce a hidratação e interrompa a medicação diurética para reduzir o risco de nefropatia induzida por contraste. 10
Apesar de não existirem dados relativos à prevalência de DRC na área geográfica do Agrupamento de Centros de Saúde Grande Porto VII - Gaia (ACeS Gaia), a proporção de utentes inscritos com diagnóstico de obesidade, diabetes mellitus, hipertensão arterial e alterações do metabolismo dos lípidos é igual ou superior aos valores registados para o Continente e região Norte. 11 O presente estudo tem dois objetivos: 1) estimar a prevalência de DRC na população das USF do ACeS Gaia: Saúde no Futuro, Abel Salazar, Arco do Prado, Gaya, Nova Salus e Barão do Corvo; e 2) avaliar a qualidade da codificação de DRC e que fatores a influenciam.
Métodos
Contexto
O ACeS Gaia fica localizado na região norte do concelho de Vila Nova de Gaia e serve uma população de 164.337 pessoas. É composto por doze Unidades de Saúde Familiar (USF) e uma Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). Os problemas de saúde dos utentes são codificados, ao nível dos cuidados de saúde primários (CSP), utilizando a Classificação Internacional de Cuidados Primários, 2.ª edição (ICPC-2). No que concerne à DRC, considerou-se o código U99, definido como «Doença Urinária, Outra», no qual se podem incluir as seguintes patologias: divertículo da bexiga, hidronefrose, rim hipertrófico, obstrução do colo vesical, insuficiência renal, carúnculo uretral, aperto uretral, refluxo uretérico, uremia e outras doenças do aparelho urinário não especificadas.
Participantes
Foi realizado um estudo multicêntrico observacional transversal descritivo. Os participantes foram recrutados das USF Saúde no Futuro, Abel Salazar, Arco do Prado, Gaya, Nova Salus e Barão do Corvo. Foram incluídos todos os utentes inscritos nestas USF com idade igual ou superior a 18 anos e que tivessem registo de análise clínica de creatinina nos últimos cinco anos.
Recolha de dados
A recolha dos dados ocorreu em junho/2022, por consulta do processo clínico dos utentes, sendo a informação preenchida de forma sequencial para garantir a correta alocação das variáveis ao utente. A proteção dos dados pessoais foi garantida através do registo dos dados num ficheiro Excel, devidamente protegido por palavra-chave, assegurando assim a confidencialidade e segurança dos dados dos participantes. A lista de utentes a incluir foi obtida do programa informático MIM@UF® e a restante informação clínica foi recolhida no SClínico®. Foram recolhidas as seguintes variáveis: sexo (masculino e feminino), idade (em anos), peso (em kg) e o valor de creatinina do último registo. Estas variáveis foram posteriormente utilizadas para o cálculo da TFG através da fórmula de Cockcroft-Gault.
Foi ainda aplicado um questionário (Anexo 1) aos médicos das USF (n=55) para identificar as possíveis barreiras à codificação da DRC. A participação no estudo foi voluntária e mediante obtenção de consentimento informado livre, esclarecido e dado por escrito. Os dados foram recolhidos através do preenchimento de um formulário online da plataforma digital Google Forms®, que esteve disponível para resposta de 24/outubro a 09/dezembro de 2022.
Análise de dados
A análise de dados foi realizada com recurso ao programa informático Microsoft Office Excel® 2019. As variáveis categóricas foram descritas através de frequências absolutas (n) e relativas (%) e as variáveis contínuas foram apresentadas como média, máximo e mínimo.
O protocolo do estudo foi submetido à apreciação da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Norte, tendo obtido parecer favorável (referência de aprovação n.º 20220040). Foi também obtida aprovação dos coordenadores das seis USF incluídas no estudo, da diretora executiva e da presidente do Conselho Clínico e de Saúde do ACeS Gaia.
Resultados
Em junho/2022 encontravam-se inscritos 75.170 utentes nas seis USF incluídas no estudo. Destes, 44.410 utentes foram excluídos do estudo por não cumprirem os critérios de inclusão, tendo sido incluídos os restantes 30.760.
Na população do estudo foi verificado um ligeiro predomínio do sexo feminino (n=18.111, 58,9% vs n=12.649, 41,1%) e uma média de idades de 58,1 anos (mínimo 18 anos e máximo 105 anos). O grupo etário dos 18-64 anos foi o que apresentou maior número de indivíduos (61,2%). A média de idades da população do sexo feminino foi de 57,4 anos e do sexo masculino de 59,1 anos. A distribuição dos participantes em relação ao sexo e ao grupo etário consta da Tabela 1.
Relativamente ao peso, este variou entre os 30 e os 174 kg, com um valor médio de 73,1 kg. Na população do sexo feminino, o peso médio foi de 68,7 kg e no sexo masculino foi de 79,4 kg.
Dos utentes incluídos, 4.800 (15,6%) apresentaram uma TFG <60 ml/min, estimando uma prevalência de DRC nos utentes das USF em estudo de 6,4%. Destes, 2.904 (60,5%) eram do sexo feminino e 1.896 (39,5%) eram do sexo masculino.
Relativamente à codificação do problema, 1.863 utentes estavam codificados com o código ICPC-2 U99 na lista de problemas (6,1%). Dos doentes com DRC, 862 utentes (18,0%) apresentaram simultaneamente uma TFG <60 ml/min e a codificação U99 na lista de problemas.
Verificou-se uma proporção de resposta ao questionário aplicado de 69,1% (n=38). A maioria dos médicos afirmou conhecer o código ICPC-2 U99 (n=33, 86,8%) e referiu utilizá-lo (n=31, 81,6%). Consideraram relevante não só a codificação de DRC na lista de problemas do utente (n=36, 94,7%) como também a possibilidade de cálculo automático da TFG no SClínico® para a população em geral (n=37, 97,4%) e a verificação regular da TFG, uma vez que este ato poderia melhorar a sua prática clínica (n=36, 94,7%).
Os motivos para a não-codificação do problema descrevem-se na Figura 1. Os três principais motivos que pareceram influenciar a não-codificação da DRC foram: o esquecimento (n=21, 55,3%), a falta de tempo na consulta (n=19, 50%) e a inexistência de um código ICPC-2 específico para DRC (n=16, 42,1%).

Figura 1 Motivos que influenciam a não-codificação de DRC na prática clínica. Legenda: DRC = Doença renal crónica; ICPC-2 = Classificação Internacional de Cuidados Primários, 2.ª edição; TFG = Taxa de filtração glomerular.
No entanto, e apesar de um dos motivos apontados ser a pouca especificidade do código U99, os médicos consideraram que a codificação do problema através desse código é importante para a prevenção de iatrogenia (n=38, 100%), para o ajuste posológico de fármacos (n=38, 100%), para a otimização terapêutica em doentes com DRC (n=38, 100%), para melhor gestão de comorbilidades (n=37, 97,4%) e para o ajuste na periodicidade da vigilância do doente com DRC (n=37, 97,4%).
Discussão
A presente investigação pretendeu quantificar a prevalência de DRC em algumas USF do ACeS Gaia, assim como a sua codificação de acordo com o código U99 da ICPC-2. Apresentou ainda os resultados de um questionário realizado aos profissionais de saúde dessas USF, procurando perceber os motivos pelos quais a codificação deste problema poderia não estar a ser feita.
A prevalência de DRC foi de 6,4% (quando considerada uma TFG <60 ml/min), encontrando-se abaixo da média nacional (10,62%, quando considerada uma TFG <60 ml/min) estimada recentemente.4 Apesar de no estudo citado os autores terem identificado a possibilidade de uma sobrestimação pela metodologia utilizada, a presente investigação pode também ter subestimado a DRC, dado que foi estimada tendo em conta o registo da creatinina, que pode estar ausente. À parte disto, os utentes incluídos neste estudo poderão apresentar características sociodemográficas e clínicas que justifiquem estas diferenças (e.g., no que concerne à prevalência de determinados fatores de risco).
Relativamente à codificação verificou-se que apenas 18,0% dos utentes com DRC apresentavam o código U99, o que mostra uma importante subcodificação do problema. Dado que este é o primeiro artigo português a estudar esta temática, não é possível compreender se a proporção de codificação se encontra abaixo ou acima da média nacional. Por outro lado, representa a realidade ao nível das USF, pelo que a sua generalização para outras unidades de CSP (nomeadamente, UCSP) pode ser menos válida, assim como a generalização para zonas menos urbanas ou em que a demografia dos profissionais de saúde seja diferente a ponto de condicionar a utilização dos recursos informáticos. É necessário ressalvar que são necessárias duas medições separadas de pelo menos três meses para o diagnóstico de DRC, pelo que o problema pode estar sobrestimado (a percentagem de codificação pode ser inferior se nem todos os indivíduos mantiverem a TFG abaixo dos 60 ml/min). No entanto, é plausível assumir que o efeito será residual se se considerar que o valor obtido se encontra já abaixo da média nacional. 4
Apesar da baixa proporção de codificação, quando questionados, os médicos que participaram no estudo realçaram a importância da mesma nestes doentes (94,7%) e mostraram conhecer o código U99 (86,8%). Aliás, 81,6% referiram utilizá-lo. No entanto, comparando esta proporção com a proporção de codificação encontrada (18,0%) observa-se que a sua utilização não é sistemática, mesmo que se considere que os médicos que não aderiram codificam menos. Os principais motivos para não-codificação identificados foram o esquecimento (55,3%), a falta de tempo (50,0%) e inexistência de um código ICPC-2 específico para DRC (42,1%). No que se refere ao esquecimento na utilização do código para esta patologia, este problema pode ser parcialmente resolvido através do reforço de comportamentos. Este reforço pode ser conseguido através da utilização de nudges, que já se verificou ter algum sucesso. 12 Relativamente ao reforço da codificação junto de médicos internos, de acordo com o estudo de Pinto e colaboradores, parece haver um aumento da codificação naqueles que fizeram formação, pelo que a utilização desta metodologia pode também ter sucesso neste contexto (sendo uma forma de reforço de comportamentos). 13 Este fator é mais relevante se se considerar que existe pouca formação específica, para médicos de medicina geral e familiar, no âmbito desta temática.
Deve ser realçada a importância da codificação precisa. Tendo como referência os 30 milhões de consultas médicas em CSP ocorridos em 2019, uma adequada codificação será relavente não só em termos de investigação como também no que se refere à estimativa da carga de doença, mostrando a magnitude do problema, e à organização dos cuidados de saúde, permitindo uma melhor gestão de recursos na abordagem à doença. 14 Aliás, os profissionais inquiridos referem a importância da doença no sentido de ajustar a terapêutica ao doente, em termos de prevenção terciária (“otimização terapêutica em doente com DRC”) e quaternária (“prevenção de iatrogenia”).
Vários são os pontos fortes desta investigação. Em primeiro lugar, permitiu estimar a prevalência da DRC em contexto de CSP e determinar concomitantemente a subcodificação ICPC-2 da doença. Internamente possibilita identificar um problema e implementar uma intervenção. Apesar de não ser generalizável é provável que a subcodificação seja transversal a outros problemas (alterando-se apenas a magnitude da importância). A aplicação dos questionários aos profissionais de saúde permitiu identificar algumas das barreiras à codificação, o que pode levar a que novas medidas sejam implementadas para reduzir a subnotificação exigente.
Há algumas limitações associadas a esta investigação. A realidade das USF incluídas não é necessariamente representativa da realidade nacional, o que limita a validade externa. Os profissionais que aceitaram participar podem ter características diferentes dos que não aceitaram, introduzindo um possível viés diferencial nas respostas. A estimativa da TFG através da fórmula Cockcroft-Gault pode indicar resultados imprecisos, pois não tem em conta valores de creatinina padronizados.
Conclusão
A DRC é um grave problema de saúde pública com elevada prevalência e impacto significativo na qualidade de vida dos doentes. Este estudo revelou uma subcodificação importante da DRC, o que limita o reconhecimento e tratamento adequados da doença. A correta codificação da DRC não só permite melhorar a gestão clínica individual dos doentes, como também contribui para uma melhor organização dos cuidados de saúde e para uma melhor estimativa da carga de doença a nível populacional. Implementar medidas que incentivem e facilitem a codificação nos CSP poderá ter um impacto significativo na redução da iatrogenia, otimização terapêutica e prevenção de complicações. Com base nos resultados do presente estudo recomenda-se uma revisão das práticas de codificação da DRC nos CSP e o desenvolvimento de estratégias locais e nacionais para melhorar a sua implementação. Estas ações poderão promover uma abordagem mais eficaz à gestão da DRC, beneficiando tanto os doentes como o sistema de saúde.
Contributo dos autores
Conceptualização, ARP, ARM, AIT, MPN e IR; metodologia, AM, MTH, MPN e PS; validação, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; análise formal, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; investigação, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; redação do draft original, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; revisão, validação e edição do texto final, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; visualização, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; supervisão, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS; administração do projeto, AM, ARP, ARM, MTH, AIT, MPN, IR e PS.















