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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.41 no.2 Lisboa abr. 2025  Epub 30-Abr-2025

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v41i2.14134 

Relatos de caso

Bisalbuminemia, um traço familiar: relato de caso

Bisalbuminaemia, a family trait: case report

Marta Veloso1 

Mariana Braga2 
http://orcid.org/0000-0002-7491-2892

Mariana Mendes2 

Marta Portugal2 

Rebeca Hatherly2 

1 Médica Especialista em Medicina Geral e Familiar. USF Delta, ULS Lisboa Ocidental. Paço d’Arcos, Portugal.

2 Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Delta, ULS Lisboa Ocidental. Paço d’Arcos, Portugal.


Resumo

Introdução:

A albumina sérica humana constitui a proteína sérica mais abundante no plasma, desempenhando múltiplas funções essenciais. Entre os vários polimorfismos na sua expressão encontra-se a bisalbuminemia. Este fenótipo pode surgir de forma hereditária, uma patologia genética relativamente rara, ou de forma transitória (secundária).

Descrição do caso:

Apresenta-se uma criança de quatro anos de idade, do sexo masculino, com um quadro de seletividade alimentar, sem alterações ao exame objetivo. Realizou avaliação analítica, que revelou anemia ferropénica e um padrão de bisalbuminemia na eletroforese de proteínas, sem outras alterações. Foi presumida a forma inata, com causa genética, tendo sido solicitada avaliação com eletroforese de proteínas à mãe, que mostrou a presença de um padrão idêntico, corroborando esta hipótese. Iniciou suplementação com ferro e em reavaliação confirmou-se a correção da anemia ferropénica e manutenção do padrão de bisalbuminemia.

Comentário:

A bisalbuminemia hereditária tem uma prevalência reduzida na população; no entanto, o reconhecimento deste padrão é de particular relevância na prática clínica, sobretudo no contexto dos cuidados de saúde primários. A identificação precoce desta variante benigna permite ao médico de família orientar o utente de forma adequada, esclarecendo a natureza genética e não patológica da condição, evitando intervenções desnecessárias.

Palavras-chave: Eletroforese de proteínas; Albumina sérica; Bisalbuminemia; Relato de caso

Abstract

Introduction:

Human serum albumin is the most abundant serum protein in plasma and plays several essential roles. Among the various polymorphisms in its expression is bisalbuminaemia. This phenotype can be hereditary, a relatively rare genetic condition, or transient (secondary).

Case description:

We present a 4-year-old male child with food selectivity and no abnormalities on physical examination. An analytical assessment revealed iron deficiency anaemia and a protein electrophoresis pattern of bisalbuminaemia, with no other abnormalities. The innate form was presumed to be a genetic cause, and the mother was asked to undergo protein electrophoresis, which showed an identical pattern, corroborating this hypothesis. Iron supplementation was started, and a reassessment confirmed the ferropenic anaemia correction and the bisalbuminaemia pattern’s maintenance.

Comment:

Hereditary bisalbuminaemia has a low prevalence in the population, however recognising this pattern is particularly important in clinical practice, especially in the context of primary healthcare. Early identification of this benign variant allows the family doctor to guide the patient appropriately, clarifying the genetic and non-pathological nature of the condition and avoiding unnecessary interventions.

Keywords: Blood protein electrophoresis; Serum albumin; Bisalbuminaemia; Case report

Introdução

A albumina sérica humana (ASH) pertence à superfamília das albuminas e constitui a proteína sérica mais abundante no plasma, representando cerca de 60-65% das proteínas totais. Desempenha uma importante função como proteína de transporte, essencial tanto para a distribuição de componentes endógenos como exógenos, nomeadamente fármacos. São atualmente conhecidos diversos polimorfismos na expressão da ASH, resultando em fenótipos que variam entre a presença de variantes genéticas funcionais (como a aloalbuminemia ou bisalbuminemia) até à ausência completa da sua expressão (analbuminemia congénita).1

A bisalbuminemia caracteriza-se por uma variação qualitativa da ASH, traduzindo a co-expressão de dois tipos de ASH, com mobilidade eletroforética diferente, apresentando-se como uma dupla banda. Esta apresentação pode surgir de forma inata nos indivíduos heterozigóticos, uma patologia genética relativamente rara (1:1.000-1:10.000), ou de forma transitória (adquirida) como alteração secundária a várias patologias. 2

Descrição do caso

Apresenta-se o caso de uma criança de quatro anos de idade, do sexo masculino, raça negra, natural de Portugal. Inserido numa família reconstruída, de ascendência cabo-verdiana, pertencente a uma classe socioeconómica média-baixa (classe IV), segundo classificação de Graffar. Reside com os pais, três irmãos maternos e um irmão paterno, sendo de destacar como antecedentes familiares um irmão de 18 anos de idade, com diagnóstico de arterite de Takayasu, sob imunossupressão.

Mantém um seguimento médico adequado, cumprindo o Programa de Vigilância de Saúde Infantil e Juvenil, bem como o Programa Nacional de Vacinação. Em consulta de vigilância com a médica de família, a mãe refere um quadro com cerca de um ano de evolução de seletividade alimentar excessiva, com receio de repercussões no desenvolvimento estaturo-ponderal da criança. Este padrão alimentar era mantido desde há vários anos em casa e de forma idêntica em ambiente escolar, sendo também descrito pelos educadores. Descrita preferência por alimentos de textura mole, com recusa de alimentos inteiros como carne. À data tinha como antecedentes pessoais síndroma de apneia obstrutiva do sono, a aguardar tratamento cirúrgico, sem terapêutica habitual.

Ao exame objetivo não foram detetadas alterações, com pele e mucosas coradas, progressão estaturo-ponderal dentro dos percentis habituais (estatura P50-85 e peso P15-50), sem sinais sugestivos de défices vitamínicos específicos. Não apresentava alterações do desenvolvimento psicomotor, cumprindo todos os itens de avaliação do desenvolvimento na escala de Mary Sheridan.

De forma a excluir défices nutricionais foram solicitados exames complementares de diagnóstico, que a criança realizou no mês de maio em contexto de ambulatório. A avaliação analítica (Tabela 1) revelou anemia ferropénica, ligeira elevação dos parâmetros inflamatórios e na eletroforese de proteínas um padrão de bisalbuminemia com distribuição em dois picos (Figura 1), sem alteração dos valores absolutos ou da distribuição das restantes proteínas.

Tabela 1 Resultados analíticos 

Figura 1 Eletroforese da criança na primeira avaliação. 

Perante o diagnóstico de bisalbuminemia foi complementada a avaliação de forma a excluir que esta fosse uma apresentação secundária a outra causa. Não foram encontradas outras comorbilidades, com função renal normal, sem marcadores de lesão hepática e função tiroideia sem alterações. Foram pesquisadas ainda outras causas como iatrogenia medicamentosa, associada à toma recente de antibioterapia com betalactâmicos, que também não se verificou.

Não existindo indícios de que se tratasse de uma causa secundária foi presumida a forma inata, com causa genética. Para corroborar esta hipótese foi solicitada avaliação com eletroforese de proteínas à mãe, que mostrou a presença de um padrão idêntico (Figura 2), sem outras comorbilidades identificadas.

Figura 2 Eletroforese da mãe. 

De forma dirigida à seletividade alimentar e anemia ferropénica foi iniciada suplementação com ferro 4-5 mg/kg/dia durante dois meses, pelo défice nutricional identificado, e foram adotadas estratégias comportamentais. Após três meses foi realizada reavaliação analítica (Tabela 1), onde se confirmou correção da anemia ferropénica, resolução dos parâmetros inflamatórios e manutenção do padrão de bisalbuminemia (Figura 3).

Figura 3 Eletroforese da criança na segunda avaliação. 

A criança mantém o seguimento com a sua médica de família, sem intercorrências e sem necessidade de referenciação a outras especialidades médicas.

Comentário

A expressão genética dos genes codificantes da ASH, bem como de outras proteínas desta superfamília, como a α-fetoproteína e a proteína ligante da vitamina D, é determinada de forma codominante, estando localizados no cromossoma 4. A sua grande variabilidade genética associa-se à presença de variantes funcionais, tendo sido identificadas até à data 73 variantes circulantes da albumina. 3

A bisalbuminemia é um achado raro e geralmente o seu diagnóstico é incidental. O padrão apresentado na eletroforese de proteínas resulta da mobilidade eletroforética diferente de dois tipos de albumina ou de porções alteradas de parte desta proteína. 2 Perante este resultado torna-se imperativo diferenciar as formas inatas - de causa genética - das formas adquiridas, que são habitualmente transitórias e secundárias a outras patologias.

A bisalbuminemia hereditária é geralmente benigna, assintomática e não está associada a patologias clínicas. No entanto, algumas variantes da ASH podem ter uma afinidade diferente para hormonas, iões metálicos, ácidos gordos ou fármacos. 4

A forma adquirida é habitualmente transitória e frequentemente associa-se a quadros de gamapatia, como o mieloma múltiplo ou a macroglobulinemia de Waldenstrom. Pode ainda cursar com síndroma nefrótico, doença renal crónica ou doença pancreática quística. Por fim, está descrita em contextos de exposição a elevadas doses de beta-lactâmicos. 5

O caso apresentado relata o achado incidental de um padrão de bisalbuminemia, sem comorbidades identificadas, cujo padrão de transmissão heredofamiliar se verifica com a confirmação de um padrão idêntico na mãe da criança. A manutenção do padrão de forma idêntica na reavaliação analítica permite também reforçar a hipótese diagnóstica da forma genética, uma vez que o padrão se mantém inalterado. 6

O conhecimento deste padrão pelos médicos no âmbito dos cuidados de saúde primários (CSP) torna-se relevante, de forma que possa ser realizada uma investigação adequada das possíveis causas associadas à forma adquirida, uma vez que o estudo analítico é de fácil acesso e interpretação, sem a necessidade de referenciação aos cuidados de saúde secundários na ausência de outras alterações. Perante a necessidade de confirmação do padrão hereditário será relevante complementar o estudo com outros membros familiares, um estudo também facilmente realizado pelo médico de família. Nos casos em que este achado seja confirmado noutro membro familiar, também ele sem comorbidades identificadas, a causa genética é assim corroborada, dispensando outras intervenções.

Embora a bisalbuminemia hereditária tenha uma prevalência reduzida na população, o seu reconhecimento é de particular relevância na prática clínica, sobretudo no contexto dos CSP. A identificação precoce desta variante benigna permite ao médico de família orientar o utente de forma adequada, esclarecendo a natureza genética e não patológica da condição. Esta clarificação é essencial para evitar exames complementares e intervenções desnecessárias, promovendo uma gestão clínica eficiente e alinhada com o princípio da não-maleficência. Assim, o papel do médico de família centra-se na educação e tranquilização do utente, assegurando um acompanhamento informado e evitando preocupações infundadas, dada a ausência de repercussões clínicas significativas.

Contributo dos autores

Conceptualização, MV; redação do draft original, MB, MM, MP e RH; revisão, validação e edição do texto final, MV, MB, MM, MP e RH; supervisão, MV.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

1. Caridi G, Lugani F, Angeletti A, Campagnoli M, Galliano M, Minchiotti L. Variations in the human serum albumin gene: molecular and functional aspects. Int J Mol Sci. 2022;23(3):1159. [ Links ]

2. Garcez C, Carvalho S. Bisalbuminémia: uma variante rara da albumina. Acta Meda Port. 2017;30(4):330-3. [ Links ]

3. Minchiotti L. The albumin website [homepage]. Pavia: Università di Pavia; s.d. [cited 2024 Jul 21]. Available from: https://albumin.orgLinks ]

4. Chhabra S, Bansal F, Saikia B, Minz RW. Bisalbuminemia: a rarely encountered protein anomaly. J Lab Physicians. 2013;5(2):145-6. [ Links ]

5. Bagade S, Anjum A. Bisalbuminemia: a rare incidental finding in monoclonal gammopathy. EJIFCC. 2023;34(4):325-9. [ Links ]

6. Lefrère B, Dedôme E, Garcia-Hejl C, Ragot C, Chianea D, Delacour H, et al. Les bisalbuminémies: à propos d'un cas. Rev Med Interne. 2018;39(12):950-4. [ Links ]

Recebido: 11 de Setembro de 2024; Aceito: 13 de Janeiro de 2025

Endereço para correspondência Mariana Braga E-mail: mblpb.braga@gmail.com

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