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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173versão On-line ISSN 2182-5181

Rev Port Med Geral Fam vol.41 no.3 Lisboa jun. 2025  Epub 30-Jun-2025

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v41i3.14167 

Relatos de caso

Migração de uma prótese de hérnia inguinal: relato de caso

Migration of an inguinal hernia prosthesis: case report

Maria Mendes1 
http://orcid.org/0000-0003-2404-7367

Andreia Pacheco1 

Carlos Russo2 

Maria João Martins1 

1 Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Conde de Oeiras, ULS de Lisboa Ocidental. Oeiras, Portugal.

2 Médico de Medicina Geral e Familiar. USF Conde de Oeiras, ULS de Lisboa Ocidental. Oeiras, Portugal.


Resumo

Introdução:

A hérnia inguinal é um tipo de hérnia da parede abdominal e constitui a patologia cirúrgica mais comum nos cuidados de saúde primários. A infeção local e a formação de seroma ou hematoma são complicações comuns, ao contrário de complicações mais graves, como a migração da prótese ou a perfuração de órgãos adjacentes.

Descrição do caso:

Utente do sexo masculino, de 57 anos de idade, com múltiplos antecedentes cirúrgicos relativos a hérnias da parede abdominal, recorreu à consulta no centro de saúde por dor na fossa ilíaca esquerda e aumento de flatulência, sintomas que surgiram após a sua última hernioplastia laparoscópica. Realizou colonoscopia que revelou múltiplos divertículos e uma malha metálica a obstruir o cólon. A tomografia computorizada confirmou a presença de um corpo estranho e inflamação adjacente. Foi encaminhado para a consulta de cirurgia geral, onde se concluiu que o corpo estranho no cólon sigmoide se devia a uma provável migração de prótese de hernioplastia inguinal, tendo sido agendada cirurgia. Por agravamento clínico enquanto aguardava pela cirurgia, o utente acabou por ser internado e intervencionado por infeção adjacente ao corpo estranho.

Após a cirurgia e vários ciclos de antibioterapia sofreu complicações, incluindo uma infeção pós-operatória, tendo sido reintervencionado.

Comentário:

Este caso destaca a importância de reconhecer a migração da prótese de hérnia da parede abdominal como uma complicação da correção de hérnia, um fenómeno raro, mas com elevada morbilidade, sendo fundamental a sua deteção e referenciação atempadas. O contacto inicial com o médico de família foi fundamental para o desencadeamento do diagnóstico, bem como o acompanhamento próximo do utente através de consultas presenciais e telefónicas, que contribuiu para a gestão da reação emocional e recuperação da confiança nos cuidados de saúde prestados.

Palavras-chave: Hérnia da parede abdominal; Prótese de hérnia inguinal; Migração

Abstract

Introduction:

Inguinal hernia is a type of abdominal wall hernia and is the most common surgical condition in primary health care. Local infection and development of seroma or hematoma are common complications, unlike more severe complications such as mesh migration or perforation of adjacent organs.

Case description:

A 57-year-old male patient with a history of multiple abdominal wall hernia surgeries presented to the health center with pain in the left iliac region and increased flatulence, symptoms that arose after his last laparoscopic hernia repair.

A colonoscopy revealed multiple diverticula and a metallic mesh obstructing the colon. A CT scan confirmed the presence of a foreign body and adjacent inflammation. He was referred to general surgery, where the presence of a foreign body in the sigmoid colon was diagnosed, due to probable migration of a hernia mesh, and surgery was scheduled. Due to worsening clinical conditions while awaiting surgery, the patient was admitted and treated for an infection related to the foreign body. After surgery and several cycles of antibiotic therapy, he suffered complications, including a postoperative infection, requiring reoperation.

Comment:

This case highlights the importance of recognizing hernia mesh migration as a complication of hernia repair, a rare but highly morbid phenomenon, underscoring the need for timely detection and referral. The initial contact with the family doctor was crucial in triggering the diagnosis and the close follow-up of the patient through in-person and telephone consultations, which contributed to managing the emotional response and restoring confidence in the healthcare provided.

Keywords: Abdominal wall hernia; Inguinal hernia prosthesis; Migration

Introdução

A hérnia da parede abdominal é uma condição na qual ocorre uma protrusão de uma porção do conteúdo abdominal através de um ponto fraco ou abertura na parede muscular abdominal. A hérnia inguinal é um tipo de hérnia da parede abdominal e constitui a patologia cirúrgica mais comum nos cuidados de saúde primários, afetando pessoas de todas as idades e ambos os sexos.1 Estima-se que a prevalência global de hérnia inguinal seja de 7,7%.2 A incidência aumenta com a idade e é mais frequente em homens do que em mulheres (prevalência de 9.61% e 1,31%, respetivamente).1-2

Os sintomas de apresentação de uma hérnia inguinal mais comuns incluem uma protuberância visível ou palpável na região inguinal, dor ou desconforto, sensação de peso ou pressão local e, em casos mais graves, sintomas de obstrução intestinal, como náuseas, vómitos e obstipação. 1 Em casos assintomáticos ou na presença de sintomas ligeiros, a vigilância pode ser suficiente. No entanto, em casos sintomáticos ou com risco de complicações, a sua correção cirúrgica com prótese é a primeira linha de tratamento. 1

A infeção local e a formação de seroma ou hematoma são complicações bem conhecidas que ocorrem principalmente no pós-operatório imediato. Por outro lado, complicações mais graves, como a migração da prótese ou a perfuração de órgãos adjacentes, são situações mais raras e podem apresentar-se em diferentes intervalos de tempo após a cirurgia. 3 Na literatura estão descritos casos de migração de prótese para o intestino delgado, cego, cólon sigmoide e bexiga e as manifestações variam conforme a localização, podendo apresentar-se sob a forma de dor abdominal, alteração do padrão de trânsito intestinal, obstrução intestinal, recorrência da hérnia, infeção urinária ou hematúria. 4-6

Com este artigo pretende-se relatar um caso raro de migração de uma prótese de hérnia da parede abdominal para o lúmen intestinal, cujos sintomas tiveram início três anos após a cirurgia.

Descrição do caso

Relata-se o caso de um utente do sexo masculino, de 57 anos, autónomo nas atividades de vida diária. Apresenta, como problemas de saúde, perturbação depressiva reativa a divórcio, hipertensão arterial, tabagismo, dislipidemia e excesso de peso; e múltiplos antecedentes cirúrgicos relativos a hérnias da parede abdominal, nomeadamente: herniorrafia umbilical na infância, hernioplastia inguinal esquerda aos 17 anos, hernioplastia inguinal bilateral aos 27 anos e hernioplastia inguinal bilateral com colocação de prótese por laparoscopia aos 54 anos de idade (por abordagem transabdominal pré-peritoneal). Sem antecedentes familiares de relevo. Medicado com valsartan + hidroclorotiazida 160 mg + 12,5 mg, bisoprolol 5 mg e mexazolam 1 mg.

Recorreu à consulta de saúde de adulto no seu centro de saúde, por queixas álgicas na fossa ilíaca esquerda, com meses de evolução e aumento da flatulência desde a última hernioplastia. Sem relação com os movimentos, com agravamento ao longo do dia. Negava alterações do trânsito gastrointestinal, das características das fezes e perda de peso. O médico responsável pela medicina do trabalho já havia pedido colonoscopia, que o utente já tinha agendado, mas estava receoso de realizar este exame.

Ao exame objetivo apresentava bom estado geral, mucosas coradas e hidratadas, o abdómen apresentava ruídos hidroaéreos audíveis, era mole e depressível, com um ligeiro desconforto à palpação da fossa ilíaca esquerda, sem defesa nem dor à descompressão. Não se palpavam massas ou organomegalias. Dada a necessidade de esclarecimento do quadro reforçou-se a necessidade de realização da colonoscopia, prescreveu-se analgesia e alertou-se o utente dos sinais de alarme que o deviam conduzir ao serviço de urgência.

Três semanas depois, o utente regressou à consulta, revoltado com a possível relação das suas queixas e dos achados da colonoscopia com a última cirurgia a que tinha sido submetido.

As queixas iniciais mantinham-se, não havendo, no entanto, sinais de agravamento como aumento da intensidade da dor abdominal, surgimento de náuseas ou vómitos, alteração na emissão de gases ou fezes. A colonoscopia total que trazia revelava, aos 50 cm, múltiplos divertículos e um corpo estranho (malha metálica) a ocluir parte do lúmen intestinal (Figura 1). Durante a colonoscopia foi realizada uma tentativa de remoção sem sucesso, pelo que foi pedida tomografia computorizada a realizar com urgência. Este exame, que também trouxe à consulta, confirmava a presença de “um corpo estranho de alta densidade, com 2,5 cm por 1,8 cm no plano axial e uma extensão máxima coronal de 4 cm, aparentemente impactado no lúmen cólico, condicionando procidência focal do mesmo, coexistindo sinais de densificação da gordura imediatamente adjacente por provável reação inflamatória. Sem sinais de síndrome oclusivo”. Perante estes achados, e por não se tratar de um quadro de abdómen agudo, foi feita referenciação urgente à consulta de cirurgia geral do hospital da área de residência e, mais uma vez, explicaram-se os sinais de alarme que deveriam motivar a ida ao serviço de urgência.

Figura 1 (A e B). Colonoscopia: corpo estranho no colón sigmoide. 

Quatro dias depois, o utente compareceu na primeira consulta hospitalar de cirurgia geral, onde foi avaliado e ficou acordado que o caso seria discutido com a gastroenterologia. No mesmo mês retornou à consulta hospitalar, com queixas de obstipação de agravamento progressivo, o que condicionou a realização de uma segunda tomografia computorizada, cujos aspetos radiológicos favoreciam a hipótese de gossipiboma [material cirúrgico de matriz têxtil deixado inadvertidamente no interior de cavidade após o encerramento da ferida operatória] intraperitoneal, já com topografia endoluminal no cólon sigmoide. Dado o achado imagiológico de corpo estranho no cólon sigmoide por provável migração de prótese de hernioplastia inguinal e dado o agravamento clínico, foi programada laparotomia exploradora e sigmoidectomia.

Enquanto aguardava pela cirurgia, o utente dirigiu-se várias vezes ao serviço de urgência por episódios de agravamento das queixas, tendo o último episódio motivado internamento com cirurgia de urgência. Tratava-se já de uma coleção complexa a envolver o gossipiboma, pelo que foi submetido a colectomia segmentar com remoção parcial de uma prótese de propileno. Durante o internamento ocorreu infeção do local cirúrgico, o que implicou nova ida ao bloco operatório para desbridamento cirúrgico e múltiplos ciclos de antibioterapia prévios e posteriores à intervenção, que justificaram quarenta dias de internamento. Após a alta, na consulta de pós-operatório, verificaram-se novas coleções da ferida operatória que motivaram drenagem percutânea e novo internamento. Durante todo este processo ocorreu um agravamento da perturbação depressiva, com manifestações de ideação suicida, tendo recebido apoio da psiquiatria intra-hospitalar. Após completar mais vinte e sete dias de internamento teve alta e foi reavaliado em consulta de cirurgia geral, onde foi detetada desta vez uma hérnia incisional, a ponderar correção cirúrgica eletiva.

O utente foi também reavaliado em consulta de psiquiatria, pois mantinha o pensamento centrado nos acontecimentos ocorridos aquando do internamento, que recordava de forma traumática, sem, contudo, apresentar sintomas depressivos ou ideação suicida. Teve alta da consulta com indicação para manter acompanhamento com o seu médico de família e psicoterapia.

Comentário

Este caso pretende dar a conhecer a existência do fenómeno raro de migração de uma prótese de hérnia inguinal para o lúmen intestinal.

Numa revisão de literatura sobre migração de próteses após cirurgia de correção de hérnia abdominal apurou-se que ocorre sobretudo em homens (76,2%) e a média de idades é de 59,8 anos. Cerca de 62,9% das migrações ocorrem após correção de hérnia inguinal, 28,1% de hérnia incisional, 6,7% de hérnia umbilical e 2,2% de outros tipos de hérnia. Dentro do grupo de migração de prótese de hérnia inguinal, 51,8% ocorre após cirurgia aberta/laparotomia, 42,9% após cirurgia laparoscópica e 1,8% após cirurgia robótica. 7 Estes dados são concordantes com a história clínica do presente caso.

Apesar de estarem descritos casos de migração de prótese de hérnia abdominal, a incidência exata de erosão e migração de uma prótese ainda não está bem descrita na literatura. 8 Quando ocorre erosão, os achados mais comuns são infeção, formação de abcesso, fístula ou obstrução. A migração para uma posição completamente intraluminal é extremamente rara. 9 Os principais mecanismos sugeridos para este fenómeno são a migração primária - deslizamento da prótese ao longo das regiões anatómicas com menor resistência, por fixação inadequada ou forças externas - e a migração secundária - movimento lento e gradual da prótese através das estruturas adjacentes como consequência de uma reação de corpo estranho crónica. 10

Este caso destaca a importância de reconhecer a migração da prótese de hérnia da parede abdominal como uma complicação da cirurgia de correção de hérnia, um fenómeno raro, mas que pode ter elevada morbilidade, sendo fundamental a sua deteção e referenciação atempadas. É importante que o médico de família esteja atento a esta possível complicação que, à semelhança deste caso, pode apenas surgir anos após a cirurgia, não sendo imediata a sua associação ao procedimento cirúrgico. Um nível de suspeição elevado para esta complicação poderia ter adiantado o diagnóstico e evitado a evolução desfavorável e o internamento prolongado.

Apesar da resolução da situação ter ocorrido maioritariamente em meio hospitalar, o contacto inicial com o médico de família foi fundamental para incentivar a realização da colonoscopia e desencadear o diagnóstico, gerador de grande ansiedade e desconfiança relativa aos cuidados de saúde por parte do utente. O acompanhamento próximo através de consultas presenciais e telefónicas contribuiu para a gestão da reação emocional e recuperação da confiança nos cuidados de saúde prestados. O presente caso pode ainda servir de reflexão sobre a inércia médica. Nesta situação, em que havia evidência clara da necessidade de intervenção, o sucessivo adiamento da intervenção cirúrgica foi causador de um intenso sofrimento físico e psicológico para o doente, que talvez pudesse ter sido minimizado.

Por último, salienta-se ainda a importância do registo detalhado dos antecedentes cirúrgicos de cada utente no seu processo clínico para que possam estar sempre presentes as complicações pós-operatórias tardias nos possíveis diagnósticos diferenciais de um quadro clínico.

Contributo dos autores

Conceptualização, MM e AP; metodologia, MM, AP, CR e MJM; investigação, MM e AP; recursos, MM e CR; curadoria de dados, MM e AP; redação do draft original, MM, AP e MJM; revisão, validação e edição do texto final, AP, CR e MJM; visualização, MM; supervisão, MM; administração do projeto, MM. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Financiamento

O presente estudo não foi alvo de qualquer tipo de financiamento.

Referências bibliográficas

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Recebido: 08 de Novembro de 2024; Aceito: 27 de Janeiro de 2025

Endereço para correspondência Maria Mendes E-mail: maria.ms@hotmail.com

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