Introdução
A hérnia da parede abdominal é uma condição na qual ocorre uma protrusão de uma porção do conteúdo abdominal através de um ponto fraco ou abertura na parede muscular abdominal. A hérnia inguinal é um tipo de hérnia da parede abdominal e constitui a patologia cirúrgica mais comum nos cuidados de saúde primários, afetando pessoas de todas as idades e ambos os sexos.1 Estima-se que a prevalência global de hérnia inguinal seja de 7,7%.2 A incidência aumenta com a idade e é mais frequente em homens do que em mulheres (prevalência de 9.61% e 1,31%, respetivamente).1-2
Os sintomas de apresentação de uma hérnia inguinal mais comuns incluem uma protuberância visível ou palpável na região inguinal, dor ou desconforto, sensação de peso ou pressão local e, em casos mais graves, sintomas de obstrução intestinal, como náuseas, vómitos e obstipação. 1 Em casos assintomáticos ou na presença de sintomas ligeiros, a vigilância pode ser suficiente. No entanto, em casos sintomáticos ou com risco de complicações, a sua correção cirúrgica com prótese é a primeira linha de tratamento. 1
A infeção local e a formação de seroma ou hematoma são complicações bem conhecidas que ocorrem principalmente no pós-operatório imediato. Por outro lado, complicações mais graves, como a migração da prótese ou a perfuração de órgãos adjacentes, são situações mais raras e podem apresentar-se em diferentes intervalos de tempo após a cirurgia. 3 Na literatura estão descritos casos de migração de prótese para o intestino delgado, cego, cólon sigmoide e bexiga e as manifestações variam conforme a localização, podendo apresentar-se sob a forma de dor abdominal, alteração do padrão de trânsito intestinal, obstrução intestinal, recorrência da hérnia, infeção urinária ou hematúria. 4-6
Com este artigo pretende-se relatar um caso raro de migração de uma prótese de hérnia da parede abdominal para o lúmen intestinal, cujos sintomas tiveram início três anos após a cirurgia.
Descrição do caso
Relata-se o caso de um utente do sexo masculino, de 57 anos, autónomo nas atividades de vida diária. Apresenta, como problemas de saúde, perturbação depressiva reativa a divórcio, hipertensão arterial, tabagismo, dislipidemia e excesso de peso; e múltiplos antecedentes cirúrgicos relativos a hérnias da parede abdominal, nomeadamente: herniorrafia umbilical na infância, hernioplastia inguinal esquerda aos 17 anos, hernioplastia inguinal bilateral aos 27 anos e hernioplastia inguinal bilateral com colocação de prótese por laparoscopia aos 54 anos de idade (por abordagem transabdominal pré-peritoneal). Sem antecedentes familiares de relevo. Medicado com valsartan + hidroclorotiazida 160 mg + 12,5 mg, bisoprolol 5 mg e mexazolam 1 mg.
Recorreu à consulta de saúde de adulto no seu centro de saúde, por queixas álgicas na fossa ilíaca esquerda, com meses de evolução e aumento da flatulência desde a última hernioplastia. Sem relação com os movimentos, com agravamento ao longo do dia. Negava alterações do trânsito gastrointestinal, das características das fezes e perda de peso. O médico responsável pela medicina do trabalho já havia pedido colonoscopia, que o utente já tinha agendado, mas estava receoso de realizar este exame.
Ao exame objetivo apresentava bom estado geral, mucosas coradas e hidratadas, o abdómen apresentava ruídos hidroaéreos audíveis, era mole e depressível, com um ligeiro desconforto à palpação da fossa ilíaca esquerda, sem defesa nem dor à descompressão. Não se palpavam massas ou organomegalias. Dada a necessidade de esclarecimento do quadro reforçou-se a necessidade de realização da colonoscopia, prescreveu-se analgesia e alertou-se o utente dos sinais de alarme que o deviam conduzir ao serviço de urgência.
Três semanas depois, o utente regressou à consulta, revoltado com a possível relação das suas queixas e dos achados da colonoscopia com a última cirurgia a que tinha sido submetido.
As queixas iniciais mantinham-se, não havendo, no entanto, sinais de agravamento como aumento da intensidade da dor abdominal, surgimento de náuseas ou vómitos, alteração na emissão de gases ou fezes. A colonoscopia total que trazia revelava, aos 50 cm, múltiplos divertículos e um corpo estranho (malha metálica) a ocluir parte do lúmen intestinal (Figura 1). Durante a colonoscopia foi realizada uma tentativa de remoção sem sucesso, pelo que foi pedida tomografia computorizada a realizar com urgência. Este exame, que também trouxe à consulta, confirmava a presença de “um corpo estranho de alta densidade, com 2,5 cm por 1,8 cm no plano axial e uma extensão máxima coronal de 4 cm, aparentemente impactado no lúmen cólico, condicionando procidência focal do mesmo, coexistindo sinais de densificação da gordura imediatamente adjacente por provável reação inflamatória. Sem sinais de síndrome oclusivo”. Perante estes achados, e por não se tratar de um quadro de abdómen agudo, foi feita referenciação urgente à consulta de cirurgia geral do hospital da área de residência e, mais uma vez, explicaram-se os sinais de alarme que deveriam motivar a ida ao serviço de urgência.
Quatro dias depois, o utente compareceu na primeira consulta hospitalar de cirurgia geral, onde foi avaliado e ficou acordado que o caso seria discutido com a gastroenterologia. No mesmo mês retornou à consulta hospitalar, com queixas de obstipação de agravamento progressivo, o que condicionou a realização de uma segunda tomografia computorizada, cujos aspetos radiológicos favoreciam a hipótese de gossipiboma [material cirúrgico de matriz têxtil deixado inadvertidamente no interior de cavidade após o encerramento da ferida operatória] intraperitoneal, já com topografia endoluminal no cólon sigmoide. Dado o achado imagiológico de corpo estranho no cólon sigmoide por provável migração de prótese de hernioplastia inguinal e dado o agravamento clínico, foi programada laparotomia exploradora e sigmoidectomia.
Enquanto aguardava pela cirurgia, o utente dirigiu-se várias vezes ao serviço de urgência por episódios de agravamento das queixas, tendo o último episódio motivado internamento com cirurgia de urgência. Tratava-se já de uma coleção complexa a envolver o gossipiboma, pelo que foi submetido a colectomia segmentar com remoção parcial de uma prótese de propileno. Durante o internamento ocorreu infeção do local cirúrgico, o que implicou nova ida ao bloco operatório para desbridamento cirúrgico e múltiplos ciclos de antibioterapia prévios e posteriores à intervenção, que justificaram quarenta dias de internamento. Após a alta, na consulta de pós-operatório, verificaram-se novas coleções da ferida operatória que motivaram drenagem percutânea e novo internamento. Durante todo este processo ocorreu um agravamento da perturbação depressiva, com manifestações de ideação suicida, tendo recebido apoio da psiquiatria intra-hospitalar. Após completar mais vinte e sete dias de internamento teve alta e foi reavaliado em consulta de cirurgia geral, onde foi detetada desta vez uma hérnia incisional, a ponderar correção cirúrgica eletiva.
O utente foi também reavaliado em consulta de psiquiatria, pois mantinha o pensamento centrado nos acontecimentos ocorridos aquando do internamento, que recordava de forma traumática, sem, contudo, apresentar sintomas depressivos ou ideação suicida. Teve alta da consulta com indicação para manter acompanhamento com o seu médico de família e psicoterapia.
Comentário
Este caso pretende dar a conhecer a existência do fenómeno raro de migração de uma prótese de hérnia inguinal para o lúmen intestinal.
Numa revisão de literatura sobre migração de próteses após cirurgia de correção de hérnia abdominal apurou-se que ocorre sobretudo em homens (76,2%) e a média de idades é de 59,8 anos. Cerca de 62,9% das migrações ocorrem após correção de hérnia inguinal, 28,1% de hérnia incisional, 6,7% de hérnia umbilical e 2,2% de outros tipos de hérnia. Dentro do grupo de migração de prótese de hérnia inguinal, 51,8% ocorre após cirurgia aberta/laparotomia, 42,9% após cirurgia laparoscópica e 1,8% após cirurgia robótica. 7 Estes dados são concordantes com a história clínica do presente caso.
Apesar de estarem descritos casos de migração de prótese de hérnia abdominal, a incidência exata de erosão e migração de uma prótese ainda não está bem descrita na literatura. 8 Quando ocorre erosão, os achados mais comuns são infeção, formação de abcesso, fístula ou obstrução. A migração para uma posição completamente intraluminal é extremamente rara. 9 Os principais mecanismos sugeridos para este fenómeno são a migração primária - deslizamento da prótese ao longo das regiões anatómicas com menor resistência, por fixação inadequada ou forças externas - e a migração secundária - movimento lento e gradual da prótese através das estruturas adjacentes como consequência de uma reação de corpo estranho crónica. 10
Este caso destaca a importância de reconhecer a migração da prótese de hérnia da parede abdominal como uma complicação da cirurgia de correção de hérnia, um fenómeno raro, mas que pode ter elevada morbilidade, sendo fundamental a sua deteção e referenciação atempadas. É importante que o médico de família esteja atento a esta possível complicação que, à semelhança deste caso, pode apenas surgir anos após a cirurgia, não sendo imediata a sua associação ao procedimento cirúrgico. Um nível de suspeição elevado para esta complicação poderia ter adiantado o diagnóstico e evitado a evolução desfavorável e o internamento prolongado.
Apesar da resolução da situação ter ocorrido maioritariamente em meio hospitalar, o contacto inicial com o médico de família foi fundamental para incentivar a realização da colonoscopia e desencadear o diagnóstico, gerador de grande ansiedade e desconfiança relativa aos cuidados de saúde por parte do utente. O acompanhamento próximo através de consultas presenciais e telefónicas contribuiu para a gestão da reação emocional e recuperação da confiança nos cuidados de saúde prestados. O presente caso pode ainda servir de reflexão sobre a inércia médica. Nesta situação, em que havia evidência clara da necessidade de intervenção, o sucessivo adiamento da intervenção cirúrgica foi causador de um intenso sofrimento físico e psicológico para o doente, que talvez pudesse ter sido minimizado.
Por último, salienta-se ainda a importância do registo detalhado dos antecedentes cirúrgicos de cada utente no seu processo clínico para que possam estar sempre presentes as complicações pós-operatórias tardias nos possíveis diagnósticos diferenciais de um quadro clínico.
Contributo dos autores
Conceptualização, MM e AP; metodologia, MM, AP, CR e MJM; investigação, MM e AP; recursos, MM e CR; curadoria de dados, MM e AP; redação do draft original, MM, AP e MJM; revisão, validação e edição do texto final, AP, CR e MJM; visualização, MM; supervisão, MM; administração do projeto, MM. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.















