Introdução
A infertilidade afeta cerca de 10-15% dos casais em todo o mundo,1-2 definindo-se como a incapacidade de estabelecer uma gravidez após, pelo menos, doze meses de prática de relações sexuais desprotegidas, de forma regular, 1,3-4 constituindo uma condição com consequências devastadoras para o casal e família a nível psicológico, social e económico. 5
Apesar de a mulher ser habitualmente a primeira a procurar ajuda médica sabe-se que cerca de metade dos casos de infertilidade têm origem no sexo masculino, apontando-se a oligospermia, a astenospermia e a azoospermia. 1
A azoospermia é aquela que confere maior grau de impacto para o casal, dado que se caracteriza pela ausência total de espermatozoides no ejaculado e pela impossibilidade de o casal conceber com espermatozoides do próprio. 6-7 Este problema pode ter origem em disfunções pré-testiculares (perturbações endócrinas que afetem o eixo hipotálamo-hipófise-testículo), testiculares (perturbações intrínsecas da espermatogénese) ou pós-testiculares (habitualmente por obstrução do trato urinário), podendo ser uma condição transitória ou permanente. 7
A infeção por COVID-19 afetou milhões de pessoas a nível mundial desde o seu surto inicial, com origem na China, no final do ano de 2019. 8 Esta infeção é causada pelo vírus SARS-CoV-2, que é bastante contagioso e que, apesar de afetar ambos os sexos, tem tido um maior impacto nos homens, resultando em infeções de maior gravidade e com taxas de mortalidade mais altas. 9-10
A nível internacional têm sido relatados cada vez mais casos de infertilidade masculina após a infeção por SARS-CoV-2, parecendo haver uma relação direta com a infeção já que este vírus apresenta tropismo para o tecido testicular. 11-12
Tendo em conta todos estes dados, o presente relato tem como objetivo principal descrever o caso clínico de um homem de 42 anos que subitamente se tornou azoospérmico. Tem sido um tema cada vez mais estudado, pelo que se espera que a informação aqui partilhada possa contribuir para a investigação em curso por parte da comunidade médica e científica.
Descrição do caso
Utente do sexo masculino, caucasiano, 42 anos, empregado e a viver com a esposa de 40 anos e a filha de seis anos. Inserido numa família nuclear estadio IV do ciclo de vida familiar de Duvall e pertencente a uma classe socioeconómica média-alta, segundo a classificação de Graffar. Sem patologias relevantes, sem medicação habitual e com estilo de vida saudável. Apenas de referir hernioplastia inguinal bilateral com colocação de prótese e rede em 2015, sem intercorrências, infeção por COVID-19 em 2022 e uma prostatite não complicada em 2023. Plano nacional de vacinação atualizado. Vacinado contra a COVID-19 em 2021, com uma dose da vacina Janssen.
Em novembro/2022, o casal inicia estudo pré-concecional com o intuito de uma segunda gravidez. Perfazendo seis meses de tentativas de conceção sem sucesso, a esposa do doente, na altura com 38 anos, recorre a uma consulta de ginecologia privada, em junho/2023, onde lhe terá sido aconselhada a realização de uma histerossalpingografia. Perante a natureza invasiva do exame, o casal decide não avançar com o procedimento e o utente recorre então à consulta com a sua médica de família (MF), em janeiro/2024, com o intuito de fazer estudo de infertilidade masculina. Nesta consulta é-lhe prescrito um espermograma, que teve como resultado a ausência total de espermatozoides e de células imaturas. Pela surpresa do resultado, o utente opta pela realização de uma contra-análise em março/2024 numa clínica especializada, confirmando-se o resultado inicial de azoospermia. Perante os resultados, a médica de família opta por direcionar o utente para uma consulta de urologia. Nesta consulta, em maio/2024, o urologista pede investigação de possíveis causas de azoospermia com ecografia escrotal e estudo de hormonas hipofisárias e tiroideias, que se revelaram estar dentro da normalidade. Face aos resultados, foi recomendada a realização de biópsia testicular, que terá sido recusada pelo utente (Figura 1).
Em julho/2024, o utente recorre a uma consulta programada com a MF, por queixa de dor na região inguinal direita. Prescreveu-se uma ecografia de partes moles, que revelou não haver evidências de novas formações herniárias inguinais nem nenhuma anomalia com a prótese ou rede colocada na altura da hernioplastia (Figura 1).
Atualmente, tendo em conta os resultados dos espermogramas e da intenção de uma conceção natural, o casal decidiu não progredir mais com os estudos e não recorrer a métodos de reprodução medicamente assistida. Na consulta programada de julho/2024 foi oferecido apoio psicológico pela MF, devido à natureza da situação e ao possível impacto emocional e social desta problemática na família.
Comentário
A azoospermia pode impactar a vida de um indivíduo, bem como o seu núcleo familiar e social, pelo que o papel do MF é fundamental no que se refere ao apoio psicológico e emocional, bem como na desmitificação de crenças que podem ser levantadas pelo doente perante a situação.
Tendo em conta o historial do utente existem várias hipóteses que podem justificar a azoospermia, como a hernioplastia, vacinação contra a COVID-19, infeção por COVID-19 e prostatite.
A hernioplastia inguinal bilateral com colocação de prótese e rede é um procedimento cirúrgico que tem habitualmente um baixo risco de complicações. Para ser causa de infertilidade teria de se associar a algum tipo de compromisso vascular dos testículos ou a uma hemisecção dos vasos deferentes, pelo que muitos autores o desconsideram. 13-15 Para além disso, de acordo com a descrição do caso, a filha do utente nasceu três anos após este procedimento cirúrgico, pelo que provavelmente não será esta a causa e a ecografia às partes moles feita recentemente reforça esta conclusão.
Uma vez que na época de vacinação contra a COVID-19 houve muita controvérsia relativamente a uma possível associação entre esta e a infertilidade, outra hipótese colocada foi a implicação da vacina Janssen. Apesar de haver vários estudos referentes a vacinas de mRNA que afirmavam não haver evidências científicas que comprovem essa associação16-17 não existem estudos específicos da vacina tomada pelo utente, pelo que seria interessante estudar o seu impacto.
Relativamente à infeção por COVID-19 têm sido documentados cada vez mais casos da sua relação com a infertilidade masculina e descritos os mecanismos da infeção. O vírus penetra nas células através do recetor da enzima conversora de angiotensina (ECA2) e do correcetor protease de serina transmembranar do tipo celular II, 7-9 pelo que se sabe que a ECA2 se encontra presente nas espermatogónias, túbulos seminíferos, células de Sertoli e células de Leydig. 8 Ao haver infeção vai ser induzida uma tempestade de citoquinas que diminuirá a espermatogénese. 7 Em prol disso observou-se um aumento de IL-4, IL-6, IL-8, IL-17, TNF-± e IL-1) e a presença de stress oxidativo que, no seu conjunto, gera uma produção desregulada de ROS e apoptose celular. 8-10 Foi ainda recentemente identificado um caso clínico semelhante ao do utente em que é referido que um doador de esperma de 42 anos, após infeção por SARS-CoV-2, desenvolveu oligoastenozoospermia, tendo mesmo chegado a azoospermia, que entretanto evoluiu para oligonecrozoospermia. 10 Outro caso semelhante ao do utente foi um doador de esperma de 55 anos que, após a infeção, ficou azoospérmico durante um mês e evoluiu para oligozoospermia. No entanto, ao contrário do utente do presente caso clínico, o doente recuperou, tendo voltado ao normal, apesar de se verificarem mesmo assim níveis altos de danos oxidativos no DNA. 8
Por fim, a prostatite poderá afetar a fertilidade masculina pela diminuição das secreções prostáticas que permitem a capacitação e motilidade dos espermatozoides. No entanto, a maioria dos casos descritos associados a infertilidade é referente a prostatites crónicas, o que não é o caso do utente. 18
Considerando estes factos, torna-se evidente que a causa mais provável da azoospermia será a infeção por SARS-CoV-2. No entanto, a única forma de se determinar a causa seria através da realização de uma biópsia testicular. Atualmente o utente e a esposa conformaram-se com o diagnóstico e com o facto de não terem mais filhos. No entanto, é uma situação que tem um grande impacto na vida de um casal, que pode ou não ser mais profundo consoante o histórico do mesmo (se houve sucesso nas conceções prévias ou partos, número de conceções, entre outros fatores). Assim, o MF representa alguém que pode oferecer uma perspetiva diferente relativamente a diagnósticos como o do presente caso, oferecer soluções e alternativas e ajudar no luto do casal perante estas situações.















