Introdução
A homeostasia da água é essencial para o bom funcionamento do organismo, sendo regulada principalmente pela hormona vasopressina e pelo mecanismo da sede.1 Distúrbios neste equilíbrio podem levar ao desenvolvimento do síndroma polidipsia-poliúria - condição caracterizada pela ingestão excessiva de água (mais de três litros/dia) e eliminação aumentada de urina (mais de 50ml/kg/24h). 2 O diagnóstico diferencial deste síndroma é crucial para determinar o tratamento adequado, 2 de forma a evitar complicações como a hiponatremia grave. 3 Existem diferentes etiologias, nomeadamente diabetes insípida central, diabetes insípida nefrogénica e polidipsia primária, 4 sumariamente descritos na Tabela 1.
O diagnóstico é feito na maioria dos casos à custa do teste de privação hídrica com medição da atividade da vasopressina, embora os resultados nem sempre sejam fáceis de interpretar de forma a estabelecer um diagnóstico inequívoco. 1 Mais recentemente surgiu a copeptina, uma glicoproteína C-terminal de uma molécula precursora da AVP (arginina vasopressina), que funciona como um marcador estável da secreção da AVP e que se tem revelado promissora. Contudo, estes testes são apenas passíveis de ser realizados a nível hospitalar. Ao nível dos cuidados de saúde primários deverão ser inicialmente solicitados hemograma, painel de bioquímica que inclua sódio, potássio, cálcio e glicose, beta-HCG, assim como osmolaridade sérica e urinária.
Neste artigo descreve-se o caso clínico de uma mulher com síndroma polidipsia-poliúria, diagnosticada como diabetes insípida central devido a uma lesão na região da hipófise. A apresentação deste caso pretende incitar a uma reflexão sobre alguns sintomas inespecíficos presentes na consulta do médico de família e que podem estar na base de entidades mais raras, com necessidade de colheita de uma anamnese detalhada, assim como a caracterização das queixas através de métodos complementares de diagnóstico e referenciação céleres.
Descrição do caso
Mulher de 44 anos sem hábitos toxicológicos, com antecedentes pessoais de cefaleias de tensão, anemia ferropénica em tratamento com ferro em esquema bidiário e seguimento prévio em consultas de neurologia e psiquiatria devido a queixas mnésicas entretanto resolvidas. A história familiar contempla irmão e tia paterna com hipotiroidismo. São desconhecidos outros antecedentes em familiares diretos.
Foi observada em consulta em outubro/2022, apresentando como queixa principal perturbação do sono com afetação da qualidade de vida e disrupção das atividades diárias. Ao longo da anamnese foram apuradas queixas súbitas de sede intensa e sensação de boca “salgada”, com um desejo específico por água gelada, especialmente durante o período noturno, com dois meses de evolução. Relatou acordar três a quatro vezes durante a noite para urinar e ingerir água. Além disso, mencionou amenorreia com quatro meses de evolução. Na colheita da anamnese foram descartados sintomas gastroenterológicos e otorrinolaringológicos. A utente relatou ainda ter sido informada, em consulta de oftalmologia, sobre uma eventual xeroftalmia que, à data, não considerou relevante. Durante a consulta foi apurada uma glicemia capilar ocasional, que apresentou resultado de 92mg/dL, descartando uma possível diabetes mellitus inaugural. Devido à persistência dos sintomas foram solicitados exames laboratoriais séricos e urinários, que revelaram aumento dos níveis de prolactina, elevação do volume total de urina de 24 horas e osmolaridade urinária diminuída - resultados e valores de referência figuram na Tabela 2. Os demais exames foram normais. Foi mantido um contacto bidirecional regular entre a utente e o médico de família através de consultas presenciais e contactos por via telefónica e email, permitindo uma celeridade na avaliação dos exames propostos e melhor caracterização dos sintomas.
Tabela 2 Exames laboratoriais solicitados na abordagem inicial do caso e respetivos valores de referência
Em novembro/2022, a paciente referiu agravamento da cefaleia habitual nas últimas três semanas. Após exame neurológico sumário, que se revelou normal, solicitou-se uma tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE), que evidenciou uma lesão ovoide isodensa na cisterna supracelar, próxima à haste hipofisária e ao quiasma ótico, requerendo uma melhor caracterização por ressonância magnética da hipófise. Com base nos resultados, a paciente foi encaminhada para consulta hospitalar de endocrinologia, onde foi diagnosticada diabetes insípida central em provável relação com a lesão descrita. Iniciou tratamento com desmopressina 0,06mg bidiário, entretanto titulado para uma vez por dia por noção de efeitos laterais associados (edemas e astenia), com indicação de ingestão obrigatória de um litro de água por dia. A paciente referiu alívio sintomático dos sintomas de poliúria/polidipsia. Foi também medicada com cabergolina 0,5mg semanal.
Conclusão
O síndroma poliúria-polidipsia caracteriza-se pela ingestão excessiva de água e eliminação aumentada de urina. O diagnóstico diferencial é essencial para identificar a etiologia subjacente e fornecer o tratamento adequado.2 No caso apresentado foi diagnosticada diabetes insípida central devido a uma lesão na região da hipófise, resultando na secreção insuficiente de vasopressina. O tratamento com desmopressina, um análogo sintético da vasopressina, e cabergolina, um agonista dopaminérgico, proporcionou alívio sintomático à utente. É importante ressaltar que a diabetes insípida central requer um diagnóstico e tratamento específicos, uma vez que outras etiologias, como a diabetes insípida nefrogénica e a polidipsia primária, têm abordagens terapêuticas diferentes. Neste caso, o surgimento de queixas de cefaleia em contactos posteriores, aliado aos valores de prolactina, levou à solicitação precoce de TC-CE que teve um papel crucial no diagnóstico e encaminhamento adequados da utente.
Os cuidados de saúde primários desempenham um papel fundamental na gestão de sintomas comuns e inespecíficos, sendo responsáveis por identificar possíveis diagnósticos diferenciais e encaminhar os pacientes para especialidades hospitalares, quando necessário. Também essenciais nesta atuação posicionam-se a estreita relação médico-paciente e a acessibilidade aos cuidados. No caso descrito, estas características permitiram a pronta identificação e diagnóstico de diabetes insípida através de teleconsultas e comunicação por email, sendo possível obter informações adicionais e realizar uma avaliação seriada mais aprofundada e abrangente, facilitando a celeridade no início do tratamento. Bem posicionados para lidar com uma ampla gama de queixas e sintomas, os médicos de família têm o conhecimento necessário para realizar uma avaliação inicial diversificada. Além disso, a relação médico-doente estabelecida neste nível de cuidados permite uma comunicação eficaz e uma compreensão mais profunda das queixas e preocupações dos utentes e gestão da doença, comorbilidades e incapacidades ao longo da sua evolução.
É ainda importante realçar a importância da colaboração interdisciplinar e da referenciação aos cuidados de saúde secundários quando os diagnósticos mais comuns são descartados ou são necessários exames complementares adicionais. Esta abordagem colaborativa garante que os utentes recebem a gestão da doença e o tratamento mais adequados à situação.
Em suma, a atuação dos cuidados de saúde primários foi fundamental na identificação e diagnóstico atempado da diabetes insípida apresentada no presente caso clínico. A gestão de sintomas inespecíficos e de vários sistemas de órgãos, a comunicação eficaz e a colaboração interdisciplinar são aspetos essenciais desta atuação, garantindo uma prestação de cuidados de qualidade.
Contributo dos autores
Conceptualização, RR e NR; metodologia, RR e NR; investigação, RR e NR; recursos, RR e NR; curadoria de dados, RR e NR; redação do draft original, RR; revisão, validação e edição do texto final, RR e NR; visualização, RR; supervisão, NR; administração do projeto, RR. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.















