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Revista Nutrícias
versão On-line ISSN 2182-7230
Nutrícias no.20 Porto mar. 2014
ARTIGO PROFISSIONAL
Segurança Alimentar: uma Revolução Cultural nas Empresas da Cadeia Alimentar
Food Safety: a Cultural Revolution in Food Chain Companies
Ricardo Bessa Martins1
1Gestor de Operações, Silliker Portugal, S.A., Rua Industrial dos Terços, n.º 44, 4410-477 Canelas - Vila Nova de Gaia, Portugal
RESUMO
Apesar da comunidade científica já ter compreendido a relevância da cultura das organizações na segurança alimentar, este conceito está ainda pouco difundido. Pretende-se, com este artigo, divulgar o conceito de cultura de segurança alimentar e o seu papel na indução de comportamentos que favorecem a protecção do consumidor. Para tal, recorremos à revisão da literatura essencial sobre o tema. São enunciados os principais factores que permitem desenvolver e caracterizar a cultura de segurança alimentar.
Palavras-Chave: Cultura de segurança alimentar, Comportamentos, Liderança, Comunicação, Manipuladores de alimentos
ABSTRACT
Although scientists have already understood the importance of organizational culture on food safety this concept is still not widespread. With this article we intend to describe the concept of food safety culture and highlight its role in changing peoples’ behaviors and in the promotion of consumer health protection. In order to do it, we made a review of the main literature on the subject. The main factors that enable the development and characterization of food safety culture will be discussed.
keywords: Food safety culture, Behavior, Leadership, Communication, Food handlers
INTRODUÇÃO
As doenças de origem alimentar continuam a revelar-se como um grave problema de saúde pública, mesmo nos países desenvolvidos, causando um custo social e económico significativo nas populações e nos sistemas de saúde pública. Um estudo realizado nos EUA (1) estima que os custos anuais das doenças de origem alimentar provocadas por bactérias, parasitas e vírus ascendam a 152 mil milhões de dólares. Os valores calculados incluem custos médicos e custos relacionados com a perda de qualidade de vida, mas não consideram os custos associados às empresas do sector alimentar, nomeadamente, os custos de promoção, recolha ou destruição do produto.
Os dados publicados pela Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA) (2) mostram que, em 2012, 25 dos estados membros comunicaram 5363 surtos de doenças de origem alimentar, atingindo 55453 pessoas das quais 5118 foram hospitalizadas e 41 morreram. É, no entanto, reconhecido que os valores apresentados, nos países industrializados, correspondem a cerca de 1 a 10% da real incidência destas doenças, dependendo do país e do agente etiológico (3, 4).
De que forma os comportamentos dos agentes que intervêm na cadeia alimentar podem contribuir para os números apresentados nos anteriores parágrafos Quantos de nós, na nossa vida profissional, já não nos deparamos com violações das boas práticas de higiene e segurança alimentar por parte de manipuladores de alimentos que, em muitos casos, frequentaram acções de formação específicas sobre esses temas Quantas vezes, em organizações com sistemas de segurança alimentar implementados, verificamos o incumprimento sistemático de algumas regras de higiene alimentar com a complacência das chefias intermédias Outras vezes, apesar da formação e dos sistemas de gestão da segurança alimentar, constatamos uma atitude descrente e relaxada por parte da gestão de topo das organizações, subalternizando as questões relativas à segurança alimentar. Estes e outros comportamentos dos diferentes actores que participam, directa ou indirectamente, nas diversas etapas da cadeia alimentar têm uma influência real no risco associado aos alimentos e, consequentemente, têm reflexos na segurança alimentar.
Mas, afinal, quais são as razões que justificam que, apesar de todas as inspecções, formações e de todas as verificações inerentes aos sistemas de segurança alimentar, comportamentos equivalentes aos relatados continuem a prevalecer Autores como Christopher Griffith (5), Frank Yiannas (6) e Powell et al (7) defendem que o que está em causa é a cultura de segurança alimentar das organizações e instituições do sector, considerando-a como um factor de risco associado às doenças de origem alimentar.
Cultura de segurança alimentar
A cultura de segurança alimentar foi definida como “o conjunto das crenças, valores e atitudes dominantes, e relativamente constantes, que são apreendidas e compartilhadas e que contribuem para os comportamentos relativos à higiene alimentar praticados num ambiente (organização) onde ocorre a manipulação de alimentos” (5). De uma forma simples, a cultura de segurança alimentar corresponde ao conjunto das convicções que os colaboradores das empresas alimentares têm sobre a segurança alimentar, aquilo que pensam ser correcto e incorrecto, importante ou irrelevante fazer para proteger os alimentos contra eventuais perigos e, consequentemente, para defender o consumidor. A expressão mais visível dessa cultura são os seus comportamentos.
A definição anterior destaca o papel da interacção social na construção de uma cultura de segurança alimentar. É através da partilha de conhecimentos e de experiências, pela exposição continuada às atitudes e práticas organizacionais, que os indivíduos integram as crenças e valores da organização e reformulam e/ou reforçam as suas ideias e práticas relativas à segurança alimentar (5,8). Uma verdadeira cultura de segurança alimentar perdura pelo tempo, de uma forma estável apesar de dinâmica, e é difundida a cada um dos novos colaboradores da organização (5,6,8). Estes tendem a adoptar os comportamentos que são habituais na organização através do exemplo dos colegas e das chefias (5,6).
A criação de uma cultura de segurança alimentar positiva implica, muitas vezes, modificar o entendimento que os indivíduos têm sobre a segurança alimentar. Implica tornar claro que existe uma responsabilidade individual na segurança dos consumidores e que práticas desadequadas podem ter consequências negativas para esses mesmos consumidores (6,7,9). O desenvolvimento de uma cultura de segurança alimentar positiva pode resultar na mudança dos comportamentos dos indivíduos, aumentando a sua adesão a práticas mais seguras (5,6). E é esta mudança nos comportamentos que pode levar a uma melhoria nos níveis de segurança alimentar (6).
Os cinco factores de maior risco para o aparecimento de doenças de origem alimentar, identificados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (10), são a confecção inadequada, a quebra da cadeia de frio, a limpeza e higienização desajustada com as necessidades, a contaminação cruzada e as matérias-primas inseguras. Resultam, portanto, frequentemente, de comportamentos humanos que podem ser modificados através da construção de uma cultura de segurança alimentar positiva. Apesar de ser uma decisão individual, o comportamento dos manipuladores de alimentos é condicionado pela cultura da organização para a segurança alimentar. A forma como ela é entendida e promovida pelos seus líderes pode muito bem ser o factor mais decisivo no combate ao aparecimento das doenças de origem alimentar (11).
Não são apenas os comportamentos dos manipuladores de alimentos que são condicionados pelas suas convicções quanto à segurança alimentar. O mesmo sucede com os outros actores que participam na cadeia alimentar. Como exemplo, vejamos os resultados de um estudo realizado em lares de 3.ª idade e infantários da região do Porto (12). Neste estudo foram entrevistados 155 indivíduos responsáveis pela segurança alimentar. O autor concluiu que todos os entrevistados que se manifestaram convictos que não existiam vantagens na implementação do HACCP (Hazard Analysis and Critical Control Points) (7,2%), optaram por não avançar com a sua implementação (12). Esta convicção fomentou uma atitude negativa e condicionou a execução de um comportamento que poderia fortalecer a segurança alimentar. A concordância ou a convicção são componentes geradores da atitude (13,14,15).
Um outro exemplo são os resultados de um estudo, realizado na Hungria, sobre a relação entre a atitude dos responsáveis/gerentes de empresas de restauração e a eficácia dos sistemas de segurança alimentar (16). Os autores identificaram dois tipos de atitudes: uma centrada na higiene alimentar; outra centrada na redução de custos. As empresas onde os responsáveis apresentaram uma atitude que tem como forte valor a higiene alimentar exibiram resultados significativamente superiores na avaliação das condições higio-sanitárias comparativamente com as empresas geridas por responsáveis com uma atitude centrada na redução de custos. Neste último caso, verificou-se um efeito negativo sobre os resultados da avaliação das condições higio-sanitárias. A partir dos resultados obtidos, os autores concluem sobre a importância da educação e da mudança de atitudes para que a introdução dos sistemas de segurança alimentar, baseados no HACCP, não resultem numa mera realização de um conjunto de tarefas administrativas (16). As atitudes descritas relacionam-se directamente com a cultura de segurança alimentar de cada uma das empresas estudadas (11). A mudança de atitudes sugerida pelos autores pode ser um dos resultados da criação de uma nova cultura de segurança alimentar.
Os sistemas de segurança alimentar como, por exemplo, o descrito pela ISO 22000, fundamentam-se num conjunto de boas práticas de higiene alimentar e nos princípios do HACCP e, apesar de integrarem alguns dos factores relevantes para a criação da cultura de segurança alimentar, por exemplo, o compromisso da gestão para com a segurança alimentar ou um requisito relativo à comunicação, concentram a sua atenção nos processos. Estes sistemas estão alicerçados na autoridade dos gestores e não nas convicções e compromissos dos seus colaboradores com a segurança alimentar (6).
Elementos que caracterizam a cultura de segurança alimentar
Existem alguns factores que podem ajudar a caracterizar a cultura de segurança alimentar das organizações (Tabela 1). São elementos-chave para o seu
desenvolvimento. Frank Yiannas (6) considera a liderança como um factor preponderante. O desenvolvimento de uma cultura de segurança alimentar positiva é, em primeiro lugar, uma decisão de gestão, e compete aos líderes das empresas assumir esse papel (6). Ela tem de ser adoptada e demonstrada pelas lideranças, em todos os momentos, principalmente quando confrontada com uma cultura economicista que nem sempre é compatível com a segurança alimentar (5,7). A cultura de uma organização é “criada por líderes, e uma das suas funções mais decisivas da liderança bem pode ser a criação, condução, e sempre que necessário, destruição da cultura. A cultura e a liderança são duas faces da mesma moeda” (17).
Os líderes devem criar um clima de confiança e de credibilidade perante os seus colaboradores. A sua credibilidade e a da cultura de segurança alimentar que pretendam desenvolver passa pela consistência das decisões e da sua consonância com os valores assumidos. Empresas com culturas de segurança enraizadas ganharam a confiança dos seus colaboradores através das suas acções e não pelos discursos (6).
As chefias intermédias têm uma importância inegável na formação da cultura organizacional pelo papel orientador que exercem. É decisivo que assumam o compromisso de construir, juntamente com a liderança da empresa, a cultura de segurança alimentar. As suas práticas diárias e as suas atitudes perante a segurança alimentar serão seguidas como exemplo pelos restantes colaboradores. O seu envolvimento e a visibilidade que derem a esse envolvimento, as suas capacidades relacionais, comunicacionais e técnicas, são cruciais para a construção e difusão dessa cultura (6,9).
Para concretizar uma cultura de segurança alimentar, é importante garantir, por um lado, que os colaboradores percebam as expectativas que a organização tem no seu desempenho e, por outro, que seja possível verificar ou monitorizar se essas expectativas estão a ser alcançadas. No entanto, quando uma cultura positiva está enraizada, a motivação para executar comportamentos adequados resulta do sentimento de posse dos colaboradores para com a segurança alimentar, da relevância que eles lhe atribuem, do reconhecimento do seu papel individual na protecção do consumidor, e não do controlo que decorre do sistema de verificação implementado (6).
A comunicação é outro dos factores decisivos na construção da cultura de segurança alimentar (6,7,9,18). Comunicar, mais do que transmitir informação, é estabelecer uma relação. Mas é também impor um comportamento. Uma boa comunicação influencia a cultura das organizações já que a socialização está inerente à definição de cultura (17).
No âmbito da segurança alimentar, é recomendada a utilização de diversos canais de comunicação, desde os mais informais (conversas no local de trabalho) aos mais formais (e-mails ou newsletters informativas). Outros canais de comunicação podem ser utilizados como, por exemplo, os flyers, fichas informativas, posters, vídeos, sinalização, internet ou intranet (6,9). As mensagens sobre segurança alimentar mais bem-sucedidas são de curta duração, reconhecidas como relevantes, credíveis e convincentes pelos receptores, devendo ser repetidas regularmente (19).
A formação profissional deve desempenhar um papel de relevo na política de comunicação das organizações e na constituição da sua cultura. No entanto, não basta fornecer conhecimento aos manipuladores de alimentos. É necessário motivá-los para a sua aprendizagem efectiva e, posteriormente, para a sua transferência para o local de trabalho.
Para além da liderança e da comunicação, Griffith et al (9) consideram quatro outros factores indicadores de uma cultura de segurança alimentar positiva: o compromisso com a segurança alimentar, não apenas das lideranças mas de todos os colaboradores, e que é definido como uma medida da proximidade entre os valores e as crenças dos colaboradores e da organização relativamente à segurança alimentar; a percepção do risco, isto é, a capacidade do indivíduo reconhecer a existência de um perigo e avaliar a sua gravidade e probabilidade de ocorrência. A percepção do risco desempenha um papel importante na formação das atitudes e dos comportamentos. A consciência de quais são os processos/produtos de risco e que o comportamento adoptado em cada uma dessas situações pode gerar consequências negativas no consumidor pode ter um papel positivo na modificação desses comportamentos (6,7,9,19); condições ambientais e infra-estruturas, que reflectem a importância dada pelos responsáveis das organizações à segurança alimentar, sendo uma potencial barreira física e psicológica para a implementação das boas práticas de higiene (5,12,20,21); sistemas e formas de gestão da segurança alimentar, que devem ter como base não apenas as boas práticas de higiene, o HACCP e os seus princípios científicos, mas também os conhecimentos necessários para influenciar e modificar os comportamentos dos manipuladores de alimentos (6,9).
Wright et al (18) acrescentam à liderança, à comunicação, à percepção do risco, ao envolvimento de todos os colaboradores e ao sentimento de posse (aqui mais numa perspectiva de contraponto entre aqueles que consideram que as organizações são responsáveis pela segurança alimentar dos bens que produzem e os que atribuem essa responsabilidade aos organismos reguladores, assumindo uma postura reactiva perante a segurança alimentar), mais três elementos: a competência para a organização gerir os riscos para a segurança alimentar; as prioridades e atitudes da organização, isto é, as atitudes e comportamentos da gestão perante a segurança alimentar, por exemplo, na disponibilização de recursos ou na gestão de incidentes que envolvam a higiene alimentar (7,18); a confiança nos sistemas de segurança alimentar, o que implica a percepção da relevância, da aplicabilidade e da eficácia da legislação alimentar por parte das organizações (18).
ANÁLISE CRÍTICA
A realidade indesmentível apresentada pelos dados epidemiológicos e económicos relativos às doenças de origem alimentar indica que a segurança alimentar continua a ser um desafio por vencer (1,2,22). Um desafio que necessita de trilhar novos caminhos, experimentar novas abordagens que permitam reforçar os avanços que já foram alcançados. A relação íntima da segurança alimentar com o comportamento humano (como foi descrito, os principais factores de risco associados às doenças de origem alimentar resultam, frequentemente, de comportamentos humanos) indicia que uma das vias para reduzir a probabilidade destes factores de risco ocorrerem é uma melhor compreensão da dimensão humana da segurança alimentar. Neste sentido, a formação dos profissionais que ocupam ou podem vir a ocupar posições de liderança na área alimentar deve conferir conhecimentos e competências não só na área das ciências e tecnologias alimentares mas também nas ciências sociais e comportamentais.
A criação de uma cultura organizacional para a segurança alimentar permitirá influenciar a forma como esta é valorizada, a relevância que lhe é atribuída e, consequentemente, adequar os comportamentos dos colaboradores das organizações. No entanto, o desenvolvimento de uma cultura de segurança alimentar positiva é um processo complexo. Essa complexidade é ainda maior se pensarmos na realidade em que vivem, por exemplo, as pequenas empresas da área da restauração ou da venda a retalho. Nestas áreas, em particular, em que as empresas não possuem todas as competências e recursos necessários para desenvolver uma cultura de segurança alimentar positiva, o papel dos organismos reguladores do Estado, bem como das associações profissionais, é decisivo para promover um ambiente favorável à sua evolução. Esta promoção deve incluir todos os intervenientes que possam ter influência na segurança alimentar, incluindo as empresas (os seus responsáveis/gerentes e os manipuladores de alimentos), os seus fornecedores, os clientes, as associações que os representam, os consultores que os apoiam, mas também os inspectores que as fiscalizam.
CONCLUSÕES
Transformar o entendimento burocrático e legalista bem como uma postura reactiva perante a segurança alimentar, que parece ser a atitude dominante nos nossos dias, numa postura proactiva, resultante da consciencialização dos indivíduos envolvidos na relevância do seu papel na segurança do consumidor, implica realizar uma verdadeira revolução cultural na segurança alimentar. Trata-se de um caminho longo, trabalhoso, em que todos teremos que participar, cada indivíduo, cada instituição, assumindo a sua função.
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Endereço para correspondência
Ricardo Filipe de Bessa Martins
Rua Industrial dos Terços, n.º 44, 4410-477 Canelas - Vila Nova de Gaia, Portugal
bessablue@gmail.com
Recebido a 21 de Março de 2014
Aceite a 30 de Março de 2014