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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.102 Coimbra dez. 2013

https://doi.org/10.4000/rccs.5421 

ARTIGO

Para lá do binarismo? O intersexo como desafio epistemológico e político*

Beyond Binarism? Intersex as Epistemological and Political Challenge

Par delà le binarisme? L’intersexe comme défi épistémologique et politique

 

Ana Lúcia Santos**

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. analucia@ces.uc.pt

 

RESUMO

A diferença sexual conjuga vários aspetos, desde biológicos a sociais, que, uma vez delimitados, reduzem as pessoas a duas categorias políticas: mulher e homem. Apesar de estas categorias não serem naturalmente estanques, a maioria das sociedades pretere a diversidade – tomada como deformação – em favor de um sistema sexual binário. Este artigo propõe desconstruir esse binarismo, sugerindo que não é coerente falar de dois sexos, mas antes de uma multiplicidade. A reflexão sobre o intersexo é fundamentalmente desenvolvida com recurso à teoria feminista, teoria queer e filosofia. Apresenta-se o modo como o intersexo foi sendo considerado ao longo dos tempos, refere-se uma história da regulação sexual e discutem-se as suas causas e efeitos. A reflexão da noção de ser humano, que até agora tem excluído o intersexo – em larga medida colocado no limite do impossível –, leva à articulação da teoria da vida habitável de Judith Butler com o apelo de Derrida à hospitalidade incondicional, que pode ser a chave para o reconhecimento do intersexo enquanto categoria humana.

Palavras-chave: hospitalidade, identidade sexual, intersexualidade, ser humano, sistema sexual

 

ABSTRACT

Sexual difference involves various aspects (from biological to social), which, once defined, reduce people to two political categories: woman and man. Although these categories are not naturally fixed, most societies reject diversity – taken as pathological deformation – for the sake of preserving a binary sexual system. This article proposes to deconstruct such binarism, arguing that there is extensive empirical and theoretical ground to claim the need to speak of multiple sexes. Based on feminist theory, queer theory, and philosophy, the text develops a reflection on intersex, showing how it has been considered over time. It also addresses the history of sexual regulation and discusses its causes and effects. Reflection on the concept of human being, which so far has excluded intersex – placed beyond the limits of the possible – leads to the interconnection of Butler’s definition of livable life with Derrida’s notion of unconditional hospitality, which may be the key to the recognition of intersex as a human category.

Keywords: hospitality, human being, intersexuality, sexual identity, sexual system

 

RESUMÉ

La différence sexuelle conjugue plusieurs aspects, allant du biologique au social qui, une fois délimités, réduisent les individus à deux catégories politiques: femme et homme. Bien que ces catégories ne soient pas naturellement étanches, la plupart des sociétés néglige la diversité – perçue comme une déformation – au profit d’un système sexuel binaire. Cet article se propose de déconstruire ce binarisme, en suggérant qu’il n’est pas cohérent de parler de deux sexes, mais plutôt d’une multiplicité d’entre eux. La réflexion portant sur l’intersexe est fondamentalement développée en faisant appel à la théorie féministe, théorie queer et philosophie. Nous y abordons la perception qui fut celle de l’intersexe au fil du temps et y mentionnons une histoire de la régulation sexuelle, tout autant que nous y débattons de ses causes et effets. La réflexion portant sur la notion d’être humain, qui jusqu’à présent a exclu l’intersexe – placé dans une large mesure à la limite de l’impossible –, conduit à l’articulation de la théorie de la vie habitable de Judith Butler avec un appel de Derrida à l’hospitalité inconditionnelle, qui peut être la clé de la reconnaissance de l’intersexe en tant que catégorie humaine.

Mots-clés: être humain, hospitalité, identité sexuelle, intersexualité, système sexuel

 

Introdução – Definindo o campo

Em entrevista ao La Vanguardia (Amela, 2008), quando interrogada sobre a sua identidade de homem ou de mulher, a filósofa Beatriz Preciado respondeu: “Essa pergunta reflete uma ansiosa obsessão ocidental […], a de querer reduzir a verdade do sexo a um binómio”. O sistema sexual ocidental, assim como a maioria dos sistemas no resto do mundo, apenas admite dois sexos, sendo isso aceite como verdade dogmática e reproduzido pela maioria das pessoas. Mas até que ponto é esse binarismo válido? E quais são as suas consequências?

Os seres humanos são meticulosamente medidos e regulados, desde o interior ao exterior, de modo a que ninguém fique fora das reconhecidas categorias “homem” e “mulher”. Contudo, existem pessoas cujas características sexuais primárias ou secundárias não preenchem os requisitos médicos ou/e sociais passíveis de integração num desses dois grupos. Por vezes, aquando do nascimento, o sexo genital pode suscitar dúvidas: o órgão erétil pode ser demasiado grande para um clitóris “normal” ou demasiado pequeno para um pénis “normal”; a genitália pode ser anatomicamente do sexo feminino, mas os lábios vaginais envolverem testículos; ou, por outro lado, parecer ter um pénis e apresentar vagina. Mas não só no nascimento se encontram ambiguidades. O que no início parecia ser “normal”, pode revelar posteriormente discrepâncias nos órgãos genitais e/ou nas características sexuais secundárias.

Às pessoas intersexo – que desafiam de forma física o binarismo sexual –, o “tratamento” hormonal e/ou cirúrgico,1 sem alternativas, é imposto como necessidade (Fausto-Sterling, 2000a; Dreger, 2003). No fundo, trata-se de uma violação do corpo2 pelas tecnologias com a pretensão de o “normalizar” esteticamente e inseri-lo, em sentido butleriano (Butler, 2004), numa categoria que tenha reconhecimento enquanto humana.3 Idealmente concretizadas em idade precoce, essas ditas violações, mais do que serem consideradas meras cicatrizes, imprimem um sexo que transporta consigo uma identidade que, por si só, dita parte do destino de alguém que não teve qualquer poder de escolha, o que pode resultar em graves consequências a nível psicológico (Dreger, 1998).

O “tratamento” da intersexualidade, isto é, a solução dada pelos meios médicos para “corrigir”/“normalizar” e transformar o intersexo numa das duas categorias sexuais reconhecidas, assenta em fundamentos ideologicamente consolidados: o machismo e o sexismo aliados à heterossexualidade (Fonseca Santos, 2012). Os contemporâneos modelos médicos de diferenciação sexual chegam a refletir a tradicional conotação de masculino com atividade e feminino com passividade (Preves, 2005: 26). O heterossexismo espelha-se no principal fator de critério para o sucesso de um tratamento: a relação sexual com o sexo oposto (Fausto-Sterling, 2000b). Um tratamento é considerado bem-sucedido quando o novo sexo coincide com a identidade sexual a esse sexo associada e orientação heteronormativa que lhe corresponde; por exemplo, quando uma pessoa redesignada para o sexo feminino cumpre com os devidos estereótipos associados a esse sexo, assumindo-se como mulher “feminina” (o que tem implicações estéticas e comportamentais) e heterossexual. Assim, o êxito do tratamento pauta-se pela coincidência, de uma perspetiva heterossexual, entre identidade sexual e sexo de criação (o sexo para o qual a pessoa foi redesignada).4 Os casos em que existe ausência congénita da vagina numa mulher testemunham também esta tripla ideologia. A ausência congénita da vagina ou Síndrome de Rokitansky revela-se por uma agenesia mulleriana – não completa formação da vagina, colo do útero, uretra, e/ou trompas de Falópio – em pessoas de cariótipo genético 46, XX.5 As mulheres que nascem sem vagina são submetidas a uma ou várias cirurgias acompanhadas por um doloroso processo de dilatação. A dilatação é feita de forma a que consigam manter relações (heteros)sexuais com penetração vaginal por um pénis considerado de tamanho “normal”, mesmo que isso não provenha qualquer prazer físico às mulheres.6

Ao observarem a genitália da criança recém-nascida, as/os obstetras estipulam o sexo de acordo com as dimensões médias e esquemas visuais que possuem em suas mentes, de tal modo que o sexo não depende da sua natureza nem apenas da forma como aparece, mas da forma como é percebido. Tomemos como exemplo o tamanho do órgão erétil ao nascimento: um pénis que tenha menos de 2,5 cm será percebido como incapaz de penetrar uma vagina no futuro e, por conta disso, existe a possibilidade de ser amputado e criada uma neovagina. Os sexos são, desta forma, interpretações culturais e podem sofrer “emendas” se os tamanhos ou formas não forem aceitáveis dentro do que é assumido como “normal” no entendimento médico e comum. As variações sexuais não se limitam a duas; tão-pouco a identidade sexual ou género. Caso houvesse uma relação de consequência entre sexo anatómico e género, teria de haver espaço para uma série de correspondências entre outras variações genitais e de géneros.

O intersexo, assim como a incapacidade de lidar com ele, são o testemunho de que o sistema sexual que vigora no Ocidente é insuficiente para abarcar o variadíssimo espectro da sexualidade. Conforme sugere Anne Fausto-Sterling, no famoso artigo “The Five Sexes”, publicado em 1993 pela revista The Sciences: “há várias gradações que vão de mulher a homem”. A existência do intersexo desestabiliza os modelos binários mulher/homem, feminino/masculino, homossexual/heterossexual. A intersexualidade é normalmente dividida, de uma forma genérica, em hermafroditismo verdadeiro e pseudo-hermafroditismo, mas existem outras “ambiguidades normativas”, menos referidas porque menos comuns. Podem ainda existir características invulgares nos genitais que não sejam classificadas de tipo intersexo, como por exemplo o macroclitóris e a hipospádia.7 É, por isso mesmo, difícil obter uma percentagem fiável de nascimentos intersexo. Citando Alice Dreger:

não é possível fornecer com exatidão uma estatística da frequência de nascimentos em que o sexo da criança seja posto em questão […]. Tal estatística é sempre necessariamente específica em termos culturais. (2003: 42)

Dreger (ibidem) explora esta problemática da impossibilidade de uma estatística universal acerca do número de casos de intersexualidade. Recorramos ao exemplo da chamada deficiência da enzima 5-alfa-redutase (5-AR) – responsável por uma das duas causas possíveis do pseudo-hermafroditismo masculino e cuja causa é genética: em locais isolados, onde ocorrem casamentos consanguíneos, a baixa variedade genética contribui para a presença preponderante dessa variação enzimática nos genes, caso ela estivesse previamente presente em alguma linhagem. Nas regiões isoladas da República Dominicana habita uma população cuja pouca variedade genética mantém na sua linhagem precisamente esta variação enzimática (Dreger, 2003: 40; Preves, 2005: 40), de tal modo que se pode concluir que a tendência para este tipo de pseudo-hermafroditismo masculino será maior aí do que em qualquer outro local. Ainda relativamente a esta questão dos dados estatísticos, o fator cultural também é relevante: existem, por exemplo, culturas em que o sexo é raramente examinado, o que impossibilita o conhecimento e registo das incidências. Culturas que consideram que clitóris grandes ou pénis pequenos constituem órgãos com tamanhos inaceitáveis, tenderão, consequentemente, a apresentar estatisticamente mais casos de intersexualidade do que aquelas que os consideram de tamanhos “normais” (Dreger, 2003: 42). O fator geracional é igualmente relevante: recorde-se o tratamento hormonal dado a muitas mulheres nos Estados Unidos em 1960 para prevenir o aborto espontâneo, que teve como consequência um surto de nascimentos de crianças com hiperplasia adrenal congénita (ibidem: 41). Contudo, a historiadora sugere uma incidência de um a três casos de intersexo, a cada duzentos nascimentos nos Estados Unidos (ibidem: 42). Já Sharon Preves (2005: 2), com base numa pesquisa exaustiva em literatura médica, aponta para um a quatro casos de intersexo, para cada cem nascimentos.

A noção e a nomeação do intersexo diferem, então, de cultura para cultura e de geração para geração. Para Aristóteles, o hermafroditismo era a condição de existência de um sexo extra, não funcional, que se somava, como se fosse um tumor, ao verdadeiro sexo funcional. A causa de tais “deformidades” residia na quantidade de matéria fornecida pela mãe (Long, 2006: 14).8 Até ao século xix, a genitália masculina foi vista como sendo superior à feminina; a genitália feminina era considerada uma formação não total da genitália masculina, um órgão inacabado (Dreger, 2003: 34).9 Posto isto, se uma mulher tivesse os órgãos genitais “muito desenvolvidos” assemelhar-se-ia a um/a hermafrodita ou a um homem, e um homem com genitais “pouco desenvolvidos” assemelhar-se-ia a uma mulher ou a um/a hermafrodita (ibidem: 35). Também na Encyclopaedia Medica (Watson, 1900: 491) o hermafroditismo é apresentado como uma camuflagem do sexo verdadeiro por via de malformações, sendo o termo ainda aplicado a casos cujos indivíduos apresentam gónadas dos dois sexos.

No âmbito da biologia, o primeiro uso do termo “intersexualidade” deve-se ao geneticista Richard Goldschmidt no artigo “Intersexuality and the Endocrine Aspect of Sex”, para o jornal Endocrinology, em 1917, onde são feitas referências a uma série de ambiguidades sexuais, incluindo o hermafroditismo (Dreger, 2003: 31). Contudo, o termo já tinha sido usado por outros autores para mencionar a homo- e bissexualidade, sendo que o próprio Goldschmidt admitira que a homossexualidade seria uma forma de intersexualidade. A palavra ganhou popularidade a partir do artigo supracitado como substituta do termo hermafroditismo, prevalecendo na literatura médica a partir de meados do século xx.

Atualmente, a noção é usada na biomedicina para designar variações sexuais em relação à genitália externa ou a outras. De uma forma sucinta, pode dizer-se que intersexo é a circunstância em que a harmonia entre cromossomas sexuais, hormonas sexuais, genitália, gónadas (testículos e ovários) e características sexuais secundárias foge aos critérios estipulados para a categorização de uma pessoa como masculina ou feminina, o que torna impossível determinar o “sexo global” dessa mesma pessoa.

Este artigo começa por desvelar os processos de regulação sexual no Ocidente, com especial atenção ao modo como o intersexo é submetido a esses processos e ao mesmo tempo os desafia. A História da sexualidade de Foucault servirá para demonstrar o paralelismo que percorre nos corpos intersexo desde a Idade Média até à contemporaneidade, com enfoque no seu poder de transgressão das leis. Também a noção de biopoder acompanha o entendimento do controlo de vida, especificamente o controlo sexual da população que se iniciou a partir do século xviii e que se mantém até aos dias de hoje. Para falar em regulação sexual será útil prosseguir com a noção de reconhecimento, operada por Judith Butler em Undoing Gender (2004), porque apenas as pessoas submetidas aos processos de regulação são reconhecidas enquanto seres humanos e têm uma vida possível de ser vivida – vida habitável. Por fim, uma leitura em torno da noção de hospitalidade proclamada por Derrida tenta demonstrar uma possível solução para uma vida habitável daquela categoria que ainda não alcançou reconhecimento – a categoria do intersexo.

 

1. Regulação sexual e normatividades

Sempre existiram pessoas transexuais, assim como homossexuais e intersexo.10 Contudo, de forma consistente ao longo da história verifica-se uma tendência para classificar estas pessoas como anómalas e doentes. Vejamos que elementos nos ajudam a perceber as razões subjacentes a esta regularidade.

A diferença sexual e a aparente verdade anatómica servem apenas para legitimar a organização política (Preciado, 2008: 61-62) e perpetuar as relações de poder.11 Quando um corpo se apresenta ambíguo, tudo se fará para que este entre na normalidade da diferença sexual, para tal fazendo valer as tecnologias, de modo a evitar que este corpo cause um desequilíbrio na organização da sociedade. Os corpos sexualmente ambíguos são controlados pela medicina, submetidos a processos de “normalização” no intuito de que sexo, corpo, comportamento, sexualidade e caracteres secundários funcionem em harmonia entre si e conforme a ideologia de uma sociedade heterossexista. À semelhança dos “corpos dóceis” de Foucault (2001), estes deverão ser produtivos e submissos. Por isso, a intersexualidade deixou de ser objeto de estudo apenas da medicina e biologia, passando também a ser abordada por áreas como a sociologia, a antropologia, o feminismo e os estudos queer.

Foucault (2001: 83-85) considerava privilegiados os “monstros hermafroditas” da Idade Clássica quando colocados em relação aos que viveram entre a Idade Média e inícios do século xvii, uma vez que estes eram queimados vivos pelo facto de possuírem dois sexos (alegadamente um dos sexos ser-lhes-ia atribuído por Satanás, depois de um coito com este). A partir do século xvii ninguém mais foi condenado por hermafroditismo, mas antes por ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, uma vez imposta a obrigatoriedade de escolha por um dos sexos – à semelhança do que ainda hoje acontece em muitos países. A condenação era então motivada não pela natureza do corpo mas pelo comportamento, reflexo do que aconteceu, principalmente, partir do século xix: a monstruosidade perdera o estatuto jurídico-natural para ganhar o de jurídico-moral. A escolha por um dos sexos servia apenas para se saber que roupas usar, se se teria obrigatoriedade de casar e com quem (alguém do sexo oposto ao escolhido) (Riolan apud Foucault, 2001: 89). Este tipo de monstruosidade perturbava as regularidades jurídicas, não só no âmbito do casamento mas também no do batismo ou nas regras de sucessão. Hoje em dia, e à semelhança do que aconteceu a partir da Idade Média, os casos de pessoas intersexo ainda desestabilizam o princípio considerado natural, o princípio moral, e as leis. Eles colocam em questão o sistema médico, o sistema jurídico e a organização das instituições. Veja-se o caso do atletismo, cujas competições viram as suas regras alteradas em termos de determinação de sexo para admissão de atletas femininas (IAAF, 2012). Ou ainda o caso de Halterina Hofan, pessoa intersexo que foi presa na Indonésia em 2010, acusada de falsificação de documentos, e cuja estadia na prisão foi conturbada, tendo passando de uma cadeia masculina para uma feminina e finalmente para uma cela solitária, devido à incerteza de ser homem ou mulher por parte das entidades policiais (Yessir, 2010).

Segundo Foucault (1994), foi a partir do século xviii que se iniciou um processo de racionalização, classificação e regulação do sexo. Também foi nesse período que prosperou o interesse pela sexualidade das crianças, das pessoas “loucas”, criminosas e homossexuais – ou seja, o interesse por sexualidades “desviantes”. Estes discursos multiplicaram-se durante os séculos xix e xx e, com eles, as perversões.12 Foram estipuladas normas de desenvolvimento sexual de acordo com as idades; as perversões eram condenadas nos tribunais; quem praticasse as irregularidades sexuais era considerado/a doente mental, sendo as mesmas controladas pedagogicamente ou através de tratamentos médicos (ibidem). Os discursos sobre o comportamento tornaram-se objeto de análise e interpretação – por parte de instituições como a medicina, psiquiatria, justiça penal –, analisaram-se os comportamentos sexuais, que se pretendiam comportamentos económicos e políticos. As instituições de saber e poder controlavam a sexualidade, o que tornou os discursos sobre o sexo lugares de poder que se viam perturbados por sexos ambíguos. Por exemplo, pessoas hermafroditas eram consideradas criminosas ou filhas de criminosos/as, devido à anatomia que “confundia a lei que distinguia os sexos e prescrevia a sua conjunção” (ibidem: 42).

Dada a racionalização dos discursos sobre o sexo e, subsequentemente, o aumento do acesso aos cuidados médicos (incluindo ginecológicos), assistiu-se a uma multiplicação dos discursos e narrativas, sobretudo publicações médicas, que fizeram com que o século xix experimentasse um súbito e aparente aumento de casos de sexo atípico. Para tal contribuiu também a proliferação de feministas e homossexuais assumidos/as, considerados/as “hermafroditas comportamentais”, que desafiavam os limites da sexualidade (Dreger, 2003: 26). As consequências desta diversidade refletiram-se numa delimitação demasiado rigorosa de masculinidade e feminilidade por parte das comunidades médica e científica, qualificando-se como raro, imoral e não natural tudo o que não encaixasse nos padrões. Tornou-se inconcebível ver nascer um/a hermafrodita e não regularizar a situação. Assim, a partir de meados do século xx iniciaram-se as primeiras cirurgias de redesignação sexual. A forma como se realizavam estas cirurgias obedecia a procedimentos médicos precários e arriscados (Dreger, 2003; Fausto-Sterling, 2000a).

A necessidade de controlar a vida da população remonta ao século xviii, quando os esforços que até então existiam em prol da defesa de vida do soberano passaram a existir em prol da defesa da população. A defesa que até então se situara ao nível da existência jurídica (soberano) deslocou-se para a existência biológica, ao exercer-se positivamente sobre a população: “ao velho direito de fazer morrer ou de deixar viver se substitui um poder de fazer viver ou rejeitar a morte” (Foucault, 1994: 140). O poder dedicou-se à manutenção e gestão da vida e criou-se uma série de teorias para a obtenção da sujeição dos corpos e do controlo da população – iniciando-se, assim, a era do Biopoder. Adaptando esta teoria à atualidade: quando nasce uma pessoa intersexo, o poder político inscreve-se no bios e altera-lhe o corpo. Esta alteração mais não é do que a defesa dos interesses da população em geral disfarçada em nome da “defesa” do bem-estar da pessoa intersexo, uma vez que a organização da maioria das sociedades não está preparada para incluir corpos intersexo nem identidades genderqueers. O que parece ser um poder positivo para o bem-estar da pessoa intersexo é, afinal, a única solução que as entidades médicas encontram para colmatar a sua própria incapacidade, e a da maioria das instituições, em lidar com um sexo diferente, por não saberem posicioná-lo na sociedade.13 As cirurgias de redesignação sexual fazem-se em nome do bem-estar da população, de forma a resguardar o seu sistema organizacional. A transmissão do poder para a manutenção da vida da população, que se fez sentir no século xviii, ainda persiste. No entanto, esta manutenção da vida continua a “fazer morrer”, ou em termos butlerianos, continua a desfazer (Butler, 2004) outras possibilidades de existência, outras formas de ser.

 

2. Reconhecimento e humanidade

De acordo com Judith Butler (1999), o sujeito (enquanto género) é definido na sequência dos atos que realiza, em sucessivas performances, resultando num efeito dos mesmos e não na causa. Isto significa que a identidade sexual (ou de género) é um efeito da reiteração dos atos no corpo. Por outras palavras, é a repetição de atos no corpo que dota o sujeito de uma identidade sexual, sendo essa identidade uma categoria resultante do efeito de instituições, práticas e discursos. Essa repetição levará ao reconhecimento do sujeito enquanto mulher ou homem (porque o género enquanto prática ocorre num cenário de constrangimentos), e em última análise enquanto humano, porque apenas estas duas categorias são reconhecidas como dotadas de humanidade. Influenciada pela importância atribuída por Hegel à questão do desejo de reconhecimento, Butler (2004: 2) considera que a identidade sexual é movida pelo desejo na procura do reconhecimento, tornando-se este um lugar de poder. Interroga-se: “Se eu desejar determinadas formas, serei capaz de viver?” Esta questão constitui o cerne do seu argumento, pois a autora chama a atenção para a mutabilidade das condições pelas quais cada indivíduo é reconhecido enquanto ser humano: se existem condições que conferem humanidade a certas pessoas, essas circunstâncias podem destituir outras do mesmo estatuto, lançando-as para o anonimato, e, em última análise, para uma não existência. “Posso sentir que sem algum reconhecimento não consigo viver. Mas também posso sentir que os termos pelos quais sou reconhecida tornam a minha vida inabitável.” (ibidem: 4). Se, por um lado, existem pessoas que reivindicam um reconhecimento enquanto homens ou mulheres, por outro, há as que reivindicam um reconhecimento que escape a essas categorias limitadoras, ambicionando reconhecimento enquanto seres humanos com autonomia sobre os seus corpos, libertos de manipulações médicas e de constrangimentos discursivos. Enquanto as normas que regem o mundo não forem repensadas e este reorganizado, os lugares de poder serão sempre codificados pelo binarismo, e todos os corpos, não só os intersexo, suas vítimas. Em Undoing Gender (2004: 1), Judith Butler reflete sobre as consequências de uma vida vivida à margem dos padrões sexuais dualistas vigentes na sociedade, que tem no seu expoente o não reconhecimento da pessoa enquanto ser humano, uma vez que as conceções normativas do sexo podem impedir alguém de ter uma vida habitável,14 a que Butler chama devir desfeita/o. É a vulnerabilidade que define o humano, a condição humana. Uma vez inserido na sociedade, o ser humano vê-se determinado pelas normas e deixa-se definir pelo que estas ditam, caso contrário será excluído. Portanto, em conformidade com um dos dois sexos que nos foi designado, ou redesignado, haverá um padrão de práticas sociais a seguir e que pouco tem a ver com as do “sexo oposto”. São as normas que constituem o sexo e nos determinam, já que o nosso destino será estabelecido em função dele. Se, por um lado, as normas permitem a construção do sujeito, sendo essa construção impositiva, ela vai impossibilitar que ele se construa de outra forma. No caso da pessoa intersexo, ela precisa de se desfazer daquilo que é, para se ir construindo de outra forma; deixa de ser intersexo para ser sexo (e género) feminino ou sexo (e género) masculino. Nas palavras de Butler, são as normas que nos fazem, construindo-nos de determinada forma, e por outro lado, nos desfazem, impedindo-nos de nos constituirmos de outra forma não correspondente. “O pensamento de uma vida possível é apenas uma indulgência para aquelas/es que se sabem possíveis. Para aquelas/es que ainda procuram tornar-se possíveis, a possibilidade é uma necessidade.” (Butler, 2004: 219). Pessoas intersexo são aquelas que ainda estão à espera de se tornarem possíveis, de existirem, isto é, de terem reconhecimento. Fazendo uma aproximação a Beatriz Preciado (2008), é necessária intervenção política para uma reprogramação do sexo. Esta intervenção não é utópica. A definição de humano difere de cultura para cultura, não existem definições imutáveis nem no espaço nem no tempo, os conceitos estão sempre sujeitos a ressignificações, as categorias sempre sujeitas a mudanças. O mesmo acontece às pessoas e ao mundo.

 

3. Recuperação da diferença pela hospitalidade derridiana

Recordando Rosi Braidotti (2011: 138), a noção de “diferença” foi desenvolvida na história da filosofia europeia, a qual, a partir de oposições binárias, criou categorias de alteridade com conotação de inferioridade. Esta noção de diferença foi adotada por modos de pensamento hierárquicos e excludentes, sobretudo pelos regimes políticos totalitários que, encarando a diferença como biologicamente determinada, a tomaram como mote para o extermínio de milhares de humanos. Hoje em dia, em vez de exterminada, a diferença é sobretudo transformada em mesmidade. À semelhança do que sucedia em regimes ditatoriais relativamente à diferença, o intersexo é tomado por uma diferença pejorativa, censurado na sociedade, manipulado pela medicina e pelos discursos que sustentam a ordem social. O intersexo toma agora o lugar de outro que até então pertencia, no registo europeu, à população judia, homossexual, cigana, do sexo feminino, deficiente, entre outras minorias. O intersexo é o outro sexo e o outro ser, destituído de reconhecimento enquanto humano. Não obstante, este ‘outro’ pode ser recuperado e enaltecido pela hospitalidade, alcançando o estatuto de condição humana enquanto tal.

De Sófocles a Derrida, o alcance da palavra “hospitalidade” sofreu várias alterações: enquanto para Platão e Kant é merecedor de hospitalidade o ser humano na condição de cidadão, portanto, o sujeito jurídico-político, para Levinas e Derrida, é-o todo e qualquer sujeito na condição humana, sendo o dever de acolher não jurídico mas absoluto. Esta questão liga-se diretamente à questão do reconhecimento, discutida por Butler (2004), que possibilita uma vida habitável. Butler proclama por uma maior abrangência do termo humano, de modo a que ao ser reconhecida enquanto tal, a pessoa tenha uma vida habitável, aproximando-se à ética de Derrida que proclama o acolhimento (que poderia ser análogo a uma forma de habitabilidade) a todo e qualquer outro. A hospitalidade, tal como é tratada por Derrida em Da hospitalidade (2008b), permite-nos colocar o intersexo em analogia com o estrangeiro da hospitalidade em sede grega, que o autor desenvolve recorrendo às obras de Platão, e com o outro15 da hospitalidade em sede bíblica, desenvolvida a partir da cena Bíblica do Génesis, em que Sara e Abraão acolhem três visitantes não convidados.

A hospitalidade no regime do absoluto é a hospitalidade incondicional, de lei anómica acima das leis, que clama a cada momento por justiça. Se por um lado temos a pessoa convidada, cuja vinda é à partida prevista, por outro temos a pessoa visitante que interrompe a normatividade sem aviso, causando perturbação – é um evento. A hospitalidade incondicional é aquela prestada ao/à “outro/a”, todo/a e qualquer outro/a independentemente de sexo, religião, nacionalidade, nome, etc., contrariamente à hospitalidade condicional (de Platão e Kant), que, sendo regida por leis, é prestada apenas ao indivíduo convidado – ao estrangeiro (alguém que vem de fora) ou cidadão da polis, – e não a um/a outro/a absoluto/a, enigmático/a.

A palavra hospitalidade tem na sua etimologia a latina hospitalitate, que designa o ato de hospedar. Daqui deriva a expressão hospes (“hôte” em francês) a qual apresenta, como atenta Benveniste (1969: 87-89), um caráter ambíguo. A expressão francesa “hôte”, quando traduzida para português, significa simultaneamente hospedeiro (indivíduo que acolhe) e hóspede (indivíduo acolhido) e é um acusativo de hostis e hospes (ou hosti-pet).16 Hostis significa hostil, inimigo, e hospes significa convidado, hóspede. Esta aglutinação, hosti-pet, é um aviso à ameaça que a hospitalidade aporta, ou seja, a hostilidade no seio da hospitalidade alerta para o seu próprio perigo. “Não há, é impossível, hospitalidade pura – na sua incondicionalidade, ela só é possível (já) contaminada pela hostilidade” (Bernardo, 2002: 443).17 Ao acolher alguém em nossa casa, não estamos livres do risco de esse alguém afetar negativamente a nossa interioridade. Ainda assim, enquanto hospedeiras/os, temos a obrigação de cuidar da pessoa acolhida, de igual para igual.

Quando nasce uma criança intersexo, a entidade hospedeira (sejam as entidades médicas, a família, a sociedade, ou o mundo em geral) exorbita da soberania (potis) associada à sua condição, ditando as regras e estabelecendo os limites que o intersexo, enquanto hóspede, não poderá transgredir. Nesta dinâmica, o próprio indivíduo hospedeiro acaba por ser o hostil, ao pressentir a hostilidade em potência do intersexo – ou a revolução relativamente à ordem sexual da sociedade.18

Evocando Montandon (2004), tudo começa na ombreira da porta. A ombreira da porta representa uma linha que separa hospedeiro/a de hóspede e leva este/a último/a a cometer a primeira violência: o ato de transgressão ao atravessar a linha, ato esse que implica, ainda assim, a aceitação das regras da pessoa anfitriã. Conforme Montandon (2004: 7), “a sua travessia implica tacitamente para o/a convidado/a a aceitação das regras do/a outro/a”. Uma mulher biológica dá à luz uma criança. Enquanto presa pelo cordão umbilical mantém-se no limiar da hospitalidade, mas quando este é cortado dá-se a primeira violação. A recém-nascida é levada a transgredir a fronteira entre a sua casa (a bolsa amniótica), e a casa do mundo. Apresenta-se como refém19 ao curioso olhar dos/as obstetras que, tendo em consideração o perigo subjacente do evento que vem de fora, sem perda de tempo procuram a marca que consideram distintiva dos humanos (o sexo); qual não é o desassossego quando observam que este ousado ser comete outra transgressão: trazer consigo a ambiguidade. Tendo chegado sem avisar, o inesperado rompeu com a norma binária dos sexos, mas ao mesmo tempo apresenta-se submissa a ela.

Todos os sexos, em especial o intersexo, vêm ao mundo com o peso da sujeição às regras, de forma a alcançar, recordando Butler (2004), uma vida habitável. Irrompo contra esta sujeição e esta falsa hospitalidade, pois o acolhimento feito ao intersexo não deve ser encarado como um ato de poder que estabelece à partida uma relação de assimetria de hóspede submisso/a (pessoa intersexo) para hospedeiro/a soberano/a (todo e qualquer outrem que o/a receba), mas antes ser como um dom,20 respondendo incondicional e responsavelmente ao apelo urgente de acolhimento.21 A lei da hospitalidade incondicional que Derrida dá a pensar em Da hospitalidade, é uma lei jurídico-politicamente impossível: se o mundo deve ser pensado como uma casa, então, o espaço geográfico deve ser pensado a partir dessa hospitalidade, uma hospitalidade incondicional arquioriginária,22 pré-política, pré-social e pré-jurídica. A hospitalidade condicional, por sua vez, é jurídico-política, já que tem uma série de leis impostas ao estrangeiro, na medida em que este é pensado a partir da pólis. Para além de uma receção em forma de questionário, o estrangeiro é ainda obrigado a responder na língua do outro.23 Sócrates, apesar de estar na sua cidade, assumiu-se perante os juízes do tribunal como estrangeiro à língua do direito. O estrangeiro é, antes de mais, “estrangeiro à língua do direito na qual o dever de hospitalidade está formulado” (Derrida, 2008b: 35), e esta é a primeira violência. Tal como o estrangeiro é obrigado a falar uma língua que não é a sua, o intersexo é obrigado a assumir um sexo que não é o seu, nunca podendo assumir o seu sexo enquanto tal, pois a hospitalidade incondicional está no campo da impossibilidade, e fazer o impossível é um desafio para uma ética da incondicionalidade.24 Mas o intersexo difere do estrangeiro na medida em que este tem um estatuto social enquanto sujeito dotado de nome próprio e sujeito de direito, enquanto o intersexo, até ver o seu o sexo redefinido, é um outro absoluto, sem nome nem lei, como um bárbaro.

A hospitalidade incondicional poderia ser definida pela feminilidade biológica enquanto corpo gestante, já que é no corpo biologicamente “feminino” que gera uma criança, onde se dá o primeiro acolhimento de forma incondicional, onde se acolhe o outro enquanto absolutamente outro, antes de qualquer conhecimento. Uma hospitalidade incondicional no âmbito de uma organização sociossexual binária é absolutamente impossível, uma vez que tal binarismo só existe na medida em que é moldado a partir da multiplicidade nunca acolhida como tal. É necessária uma hospitalidade absoluta que desafie a hospitalidade condicional, não a contrariando nem condenando, mas fazendo-a aceitar que é preciso acolher todo e qualquer outro. Conforme Derrida,

a hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa e que dê, não apenas ao estrangeiro (dotado de um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anónimo, e que lhe dê lugar […] sem lhe pedir reciprocidade, e sem mesmo lhe perguntar pelo nome. (2008b: 40)

Este “sem perguntar pelo nome” pode já ter implícito o desinteresse pelo conhecimento do sexo, já que o nome, apesar de considerado por Derrida como uma marca da singularidade, é também marca da mesmidade, tendo em consideração que a maioria dos nomes visa uma diferenciação sexual através do género gramatical.

A hospitalidade absoluta está no campo da justiça, é uma hospitalidade justa que rompe com a hospitalidade condicional, aquela que está no campo do direito. Entre as duas não há uma oposição delimitada; em vez disso, existe uma relação de heterogeneidade (diferença sem oposição) e indissociabilidade. A hospitalidade justa impulsiona a hospitalidade de direito à progressão, mas “é-lhe tão estranhamente heterogénea quanto a justiça é heterogénea ao direito” (ibidem). As leis (as normas, os direitos, os deveres) precisam da Lei (da justiça) para que sejam mais justas; por seu lado, a Lei precisa das leis para ter significado de existência, precisa delas para as intersetar e dizer-lhes o que está errado. É necessário fazer do impossível a meta e retirar o Estado do âmbito do privado sempre que ele pretenda legislar o corpo de outrem, acabar com este biopoder. Segundo Derrida, se o Estado interfere na vida privada, quebra-se a hospitalidade: “A intervenção do Estado torna-se uma violação do inviolável, aí onde a imunidade inviolável permanece a condição da hospitalidade” (Derrida, 2008b: 52). Também Foucault partilhava a mesma aversão a este tipo de organização de poder sobre a vida: “processos de poder e de saber assumem os processos da vida e tentam controlá-los e modificá-los” (Foucault, 1994: 144). Uma sociedade normalizadora – é esta a consequência dos processos de uma tecnologia de poder centrada na vida (ibidem). Sempre que a biopolítica opere sob a forma de disciplinas normalizadoras que tendam a produzir corpos e identidades “normais”, há que rejeitar esses dispositivos por serem mecanismos de normalização da sexualidade.

Temos assim o dever incondicional de acolher o/a outro/a sem álibis, condições ou preconceitos. Temos de fazer o impossível de Derrida e sermos hospitaleiras/os incondicionais, ir contra as leis do direito se for necessário, tal como o próprio filósofo fez quando acolheu indivíduos estrangeiros sem papéis, mesmo sabendo que isso era proibido, um crime até.25 Há que reinventar a ética, a política, o direito. Há que acolher não só a pessoa convidada como também a visitante, com a mesma dignidade humana de que ambas são portadoras.

 

Conclusão

Desmistificado o intersexo, a conclusão é que não se pode reduzir a sexualidade a uma dicotomia. Se o século xix foi áureo em casos conhecidos de pessoas intersexo, com as cirurgias de redesignação sexual feitas compulsoriamente caminhamos, na contemporaneidade, para a erradicação da intersexualidade, afunilando uma sexualidade que se quer plural. Apesar de a genitália ambígua poder ter distúrbios metabólicos implícitos, conforme atenta Alice Dreger (2000: 162), em si mesmos os genitais não são doentes. Os tratamentos que visam a “normalização estética” e o encaixe numa categoria sexual nunca permitirão uma emancipação do intersexo. Mais do que criar uma harmonia entre genitais e cromossomas, o corpo deve estar em harmonia com a pessoa que o encarna. Torna-se, por isso, imperativa e urgente a despatologização da intersexualidade, a não realização e mesmo criminalização de qualquer cirurgia sem o consentimento individual.

É de extrema importância discutir a intersexualidade, uma vez que este é um assunto controverso sobre o qual pouco se sabe. A questão do intersexo coloca em questão os outros sexos, a fronteira entre eles, os ideais de beleza, a orientação sexual, a identidade de género, a legislação, os serviços médicos, a ética… O intersexo é, por isso, a chave para a rutura e ressignificação das normas sexuais. Será necessário pensar o sexo, tal como o faz Fausto-Sterling (1993), como um continuum vasto e maleável. Torna-se necessário repensar as normas e repensar o conceito de ser humano.

Aliada à questão butleriana do reconhecimento, a hospitalidade derridiana pode ser a chave teórica para a inclusão absoluta,26 já que sem reconhecimento as pessoas carecem de dignidade enquanto humanas, não sendo acolhidas nem pela família, nem pela sociedade em geral. Se uma hospitalidade incondicional é impossível, então que se faça o impossível e se torne possível outro modo de ser.

 

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NOTAS

* Parte da reflexão apresentada neste artigo resulta do trabalho desenvolvido no âmbito do Projeto “Intimidade e deficiência: cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência n.º PTDC/CS-SOC/118305/2010).

**Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Feministas pela mesma faculdade, com a tese “Um sexo que são vários: a (im)possibilidade do intersexo enquanto categoria humana”. Atualmente é investigadora júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde integra o projeto de investigação “Intimidade e deficiência: cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal”, coordenado pela Doutora Ana Cristina Santos. Os atuais interesses de investigação centram-se na cidadania íntima e sexual, estudos feministas, teoria crip e teoria queer.

1 As técnicas de modificação corporal podem implicar cirurgia de redesignação sexual (CRS), terapia de reposição hormonal (TRH), mastectomia, vaginoplastia ou faloplastia.

2 Os corpos intersexo são de facto violados com artimanhas sofisticadas. Mas, recordando Butler, todos os corpos são de facto violados. A filósofa acusa as categorias sexuais de atuarem como violações por não serem escolhidas mas impostas, penalizando quem ousa recusar as normas determinadas por cada categoria (perda de emprego, perda de poder maternal ou paternal, ou até, perda da própria vida, entre outras consequências) (Butler, 2004: 213-214).

3 Na secção 2 deste artigo, “Reconhecimento e humanidade”, a questão das categorias humanas é explorada em torno de Judith Butler, que teoriza acerca das categorias merecedoras de reconhecimento enquanto humanas.

4 O modo como o intersexo é pensado é dominado por uma série de poderes engendrados (médico, social, familiar, etc.). Esses poderes fundam-se naquilo que Judith Butler designou por matriz heterossexual em Gender Trouble, e que mais tarde veio a designar por hegemonia heterossexual. A matriz sexual são as normas que regulam os sujeitos de modo a que sexo biológico, identidade sexual e desejo funcionem entre si harmoniosamente, do ponto de vista de uma lógica heterossexual.

5 XX e XY são os pares de cromossomas sexuais, sendo o par XX conotado ao sexo feminino e o par XY ao sexo masculino. 46 corresponde ao número total de cromossomas numa célula somática. No entanto, o número de cromossomas sexuais por célula pode ser menor ou maior que dois. Se uma pessoa tiver apenas um cromossoma X em cada célula, então ela terá cariótipo genético 45, X0; se tiver três cromossomas em cada célula, terá cariótipo genético 47, XXY ou 47, XYY. Existe uma série de possibilidades cromossómicas que podem ser consideradas do tipo intersexual.

6 Esther Morris, autora de “The Missing Vagina Monologue”, nasceu sem vagina e quando tal foi descoberto, aos 13 anos, foi submetida a quatro operações para criar uma neovagina. Quando iniciou a sua atividade (hetero)sexual sentiu-se revoltada, já que todo o transtorno por que passou não resultou em nada de positivo no seu corpo. “Depois de tudo descobri que um pénis não responderia a nada. Senti-me abusada da forma mais intangível, vítima de arrogância e presunção” (Morris, 2001: 4).

7 A hipospádia é uma condição em que a uretra não abre na glande do pénis, mas algures ao longo do falo até à base, dificultando o ato de mictar em pé, tão simbólico para a masculinidade, motivo pelo qual se considera importante operar desde cedo.

8 Segundo Aristóteles, a mãe proveria a “substância” (ou matéria) e o pai a “forma” (características específicas). Esta crença encontra fundamento na sua doutrina hilemórfica, a qual defende que todas as coisas são compostas por matéria e forma.

9 Não seria despropositado, na sequência deste pensamento, ponderar que, se o sexo feminino era tido como um sexo masculino inacabado, então o feminino seria já uma espécie de hermafroditismo, uma “malformação” a somar ao sexo masculino, que se encontraria degenerado.

10 A começar pela mitologia grega: a figura por excelência hermafrodita é Hermafrodito, filho do deus Hermes e da deusa Afrodite, que se terá unido ao corpo da ninfa Salmancis e assim permanecido eternamente uma entidade com dois sexos – Hermafrodite. Tirésias é a figura por excelência do ser transexual, tendo vivido tanto enquanto homem como enquanto mulher, em momentos distintos da vida. Sardanápalo, rei da Assíria no século vii a. C., vestia roupas de mulher, tal como o fez mais tarde o imperador romando Elagábalo (século iii). A rainha da Suécia Cristina Augusta, no século xvii, era considerada bissexual, tinha maneirismos ditos masculinos e voz grossa, vestia roupas de homem e chegou mesmo a autorrenomear-se Conde Dohna. Geneviève d’Eon, espião do rei de França Luís XV (século xviii), viveu metade da sua vida como homem e a outra metade como mulher. Herculine Barbin (Barbin e Foucault, 1980), famosa hermafrodita registada e criada como rapariga, foi, em idade adulta, coagida a mudar de identidade depois de ter sido considerada um homem pelos médicos, que constataram a existência de um pénis (apesar de possuir também vagina); pouco depois de ter assumido a nova identidade, Herculine acabaria por se suicidar.

11 Segundo Preciado (2008: 86-87), para a produção dessa diferença em muito contribuíram as técnicas de representação do corpo através dos desenhos anatómicos e pornográficos desenvolvidos partir do século xvii, assim como, e principalmente, a invenção da fotografia em finais do século xix, que atribuiu realismo visual e qualidade de verdade à diferença.

12 Estas “perversões” não são novas formas de sexualidade descobertas. Elas sempre existiram, mas agora estavam catalogadas e patologizadas.

13 Hoje em dia, as entidades que decidem sobre o destino da criança intersexo são a endocrinologia, a pediatria, a urologia, a psicologia, a cirurgia e a genética. Em caso de atipicidade genital, a redesignação do sexo é feita com base na capacidade reprodutora de uma potencial fêmea, ou no tamanho do pénis ou clitóris (Fausto-Sterling, 2000a; Dreger, 1998).

14 Em Undoing Gender, Butler desenvolve a noção de “vida habitável”. Apenas tem uma vida passível de ser vivida, ou suportada, a pessoa que vive conforme as normas e que, por esse motivo, é reconhecida enquanto ser humano. Butler propõe que se repensem os limites da humanidade e que se interroguem os termos que constrangem a vida de certas pessoas.

15 A palavra “outro” será aqui usada no âmbito da ética derridiana. Contrariamente ao “outro” do feminismo, um outro secundário, este outro é o absolutamente outro (“tout autre”), uma alteridade absoluta, independente de qualquer identidade que lhe seja atribuída posteriormente, que vem antes do “eu” e a partir do qual o “eu” reconhece a sua existência. “Antes de ser, eu porto, antes de ser eu, eu porto o outro. Eu porto-te e devo fazê-lo.” (Derrida, 2008a: 54). A relação entre o eu e o outro é uma relação de heteronomia dissimétrica, em que vigora a singular primazia do outro ao qual sou obrigada a responder (“il faut”). O outro situa-se ao nível do ser vivente, de modo que também o animal é um outro, antes de mim, diante de mim, em mim e fora de mim (cf. Derrida, L’animal que donc je suis). O uso no masculino genérico gramatical justifica-se com a tradução assim feita pelas obras em português de “autre”; contudo, relembro que este outro é um outro para além do sexo.

16 Pet apresenta-se sob a forma de potis (dono de casa) e i-pse (o poder mínimo do eu).

17 Derrida utiliza a palavra hos-ti-pitalidade para referir precisamente a ambiguidade da hospitalidade, “para dizer a hospitalidade incondicional interrompida e contaminada, pervertida, pela hostilidade” (Bernardo, 2002: 422).

18 “Eis a questão temível, a hipótese revolucionária do Estrangeiro”, afirmou Derrida (2008b: 32). O estrangeiro era o outro que com a sua vinda perturbava a ordem, analogamente ao que acontece com o intersexo, que vem lembrar a falsa dualidade nos sexos.

19 “Le sujet est otage” (Levinas, 1978: 177).

20 O dom tem implícita uma dádiva sem economia, sem troca. A hospitalidade incondicional é um dom enquanto tal, contrariamente à hospitalidade condicional, que implica uma economia baseada na troca. Cf. Derrida, 1991.

21 Abraão respondeu incondicionalmente aos visitantes misteriosos. Esta é “a grande cena fundadora da hospitalidade abraâmica”. Vide Derrida (2008b: 94).

22 Arqui-originariedade significa que antes de o sujeito “ser” (sujeito social, de direito), ele está subjugado ao dever absoluto de hóspede.

23O sofista, o estrangeiro é “alguém que não fala como os outros, alguém que fala uma língua estranha” (Derrida, 2008b: 43). Na Apologia de Sócrates, Sócrates “faz de Estrangeiro sem o ser” (ibidem: 35).

24 “Eu interrogo a impossibilidade como possibilidade da ética: a hospitalidade incondicional é impossível, no campo do direito ou da política, até mesmo no da ética em sentido estrito. E, no entanto, é o que é preciso fazer, o im-possível” (Derrida apud Bernardo, 2004: 18).

25 O crime era denominado “delito de hospitalidade”, vide Bernardo (2002: 439).

26 Esta inclusão absoluta pretende-se uma inclusão positiva, que abre lugar a todas as sexualidades que não implicam relações de assimetria – anarquia sexual positiva (Fonseca Santos, 2012) –, excluindo-se as sexualidades pedófilas, zoófilas e outras baseadas em relações de poder sobre outrem.

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