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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.105 Coimbra dez. 2014

https://doi.org/10.4000/rccs.5776 

ARTIGO

O fenômeno da segregação residencial no “Sul do Sul”. O caso de Neuquén (Patagônia, Argentina) no início dos anos noventa*

The Phenomenon of Residential Segregation in the “South of the South”. The Case of Neuquén (Patagonia, Argentina) in the Early 1990s

Le phénomène de ségrégation résidentielle dans le “Sud du Sud”. Le cas de Neuquén (Patagonie, Argentine) au début des années quatre-vingt-dix

 

Joaquín Perren

Centro de Estudios de Historia Regional (CEHiR) de la Unidad Exjecutora en Rede “Investigaciones Socio-Historicas Regionales” (ISHIR-CONICET), Universidad Nacional del Comahue (UNCo), Buenos Aires 1400, Neuquén (8300), Argentina joaquinperren@gmail.com

 

RESUMO

O presente trabalho analisa a segregação residencial socioeconômica na cidade de Neuquén (Patagônia, Argentina) no começo da década de 1990. Para cumprir com esse propósito, o texto divide-se em três partes. Na primeira seção, realiza-se uma aproximação teórico-metodológica ao conceito de segregação residencial e um levantamento de possíveis maneiras de medi-la. Na segunda parte, propõe-se uma descrição geral do cenário no qual se desenvolveu o fenômeno que pretendemos estudar. Para tanto, examina-se a estratégia de crescimento implementada pelo Governo Provincial e as mudanças que a mesma imprimiu na população e na sociedade de Neuquén. Na última parte do texto, apresenta-se uma análise quantitativa de três dimensões da segregação: desigualdade, concentração e isolamento. Em termos heurísticos, o artigo utiliza informação sociodemográfica fornecida pelo Censo Nacional de Población y Vivienda de 1991 da Argentina. Além disso, para espacializar muitos dos fenômenos que os dados censuais colocaram em evidência, elaboraram-se cartografias temáticas a partir da utilização de Sistemas de Informação Geográfica.

Palavras-chave: acesso à habitação, espaço urbano, história regional, Neuquén - Patagônia (Argentina), segregação social

 

ABSTRACT

This article analyzes socio-economic residential segregation in the city of Neuquén (Patagonia, Argentina) at the beginning of the 1990s and is divided into three parts. The first section explores a theoretical-methodological approach to the concept of residential segregation and surveys the possible means of measuring this. The second section provides a general description of the scenario in which this phenomenon developed. It examines the growth strategy implemented by the Provincial Government and the changes which this has brought to the Neuquén population and society. The final part of the text presents a quantitative analysis of three dimensions of segregation: inequality, concentration and isolation. In heuristic terms, the article uses socio-demographic information taken from the 1991 Argentina National Population and Housing Census. In addition, to provide a spatial perspective for many of the phenomena which the Census data brings to light, thematic maps have been produced using Geographic Information Systems.

Keywords: access to housing, Neuquén - Patagonia (Argentina), regional history, social segregation, urban space

 

RÉSUMÉ

Le présent travail se penche sur la ségrégation résidentielle socioéconomique dans la ville de Neuquén (Patagonie, Argentine) au début de la décennie quatre-vingt­dix. Pour répondre à cet objectif, le texte est partagé en trois parties. Dans la première section, nous procédons à une approche théorico-méthodologique du concept de ségrégation résidentielle ainsi qu’à un relevé de manières permettant d’en prendre la mesure. Dans la deuxième partie, nous proposons une description générale du scénario dans lequel s’est développé le phénomène que nous nous proposons d’étudier. Pour ce faire, nous examinons la stratégie de croissance mise en place par le Gouvernement Provincial et les changements que celle-ci a engendrés dans la population et dans la société de Neuquén. Dans la dernière partie du texte, nous présentons une analyse quantitative de trois dimensions de la ségrégation: inégalité, concentration et isolement. En termes heuristiques, l’article fait appel à l’information sociodémographique fournie par le Recensement National de Population et Logement de 1991 de l’Argentine. De plus, pour spécifier nombre des phénomènes que les données cadastrales ont mis en évidence, nous avons élaboré des cartographies thématiques à partir de l’utilisation de Systèmes d’Information Géographique.

Mots-clés: accès au logement, espace urbain, histoire régionale, Neuquén - Patagonie (Argentine), ségrégation sociale

 

Nos últimos anos, foram publicados dois interessantes trabalhos que estudaram a segregação residencial socioeconômica na América Latina. O primeiro foi parte de uma pesquisa de longa duração realizada pelo Centro Latinoamericano de Demografía (CELADE), cuja autoria é de Rodríguez e Arriagada (2004). Em suas páginas, os autores destacaram, não sem assombro, que a produção acadêmica sobre a segregação residencial socioeconômica era “escassa, fragmentada e pouco comparável entre países”, e isso, como não poderia ser de outra forma, traduzia-se na “debilidade ou ausência de intervenções públicas explícitas sobre este assunto” (Rodríguez e Arriagada, 2004: 6). O segundo texto, mais enfocado no caso argentino, foi elaborado por um geógrafo especializado na análise da diferenciação socioespacial (Gómez, 2011). Mesmo tendo transcorrido mais de meia década entre esses textos, a avaliação realizada por Gómez não era muito diferente da apresentada pelos técnicos da CELADE. Após uma revisão rigorosa, este autor visualizava a necessidade “de contar com estudos que consigam evidenciar e quantificar a segregação junto à identificação de suas manifestações espaciais, para conhecer as particularidades das diferentes cidades e, por sua vez, aprofundar as indagações de longo prazo sobre a evolução da segregação residencial, muito analisada em outros contextos regionais” (ibidem: 65).

Considerando como fontes as duas reflexões, este trabalho pretende colaborar para preencher as três lacunas que surgiram a partir das constatações dos referidos especialistas. Em primeiro lugar, consideramos necessário testar enfoques e instrumentos aplicados em outros casos, o que permitiria uma maior comparabilidade entre os resultados obtidos em diferentes cenários. Em segundo lugar, acreditamos ser importante oferecer uma perspectiva histórica aos trabalhos dedicados ao estudo da segregação residencial. Decididamente, conhecer as mudanças e as continuidades que esse fenômeno apresenta é o que as ciências sociais “podem e devem fazer”, seguindo o sábio conselho de Bourdieu (1996), e é também a principal contribuição que a história pode realizar para uma melhor compreensão das desigualdades sociais e espaciais. Por fim, julgamos fundamental complementar os estudos sobre as áreas metropolitanas da região com outros cujo foco de atenção seja as cidades de tamanho intermédio. Este interesse não se justifica apenas a partir da menor quantidade de trabalhos relacionados a elas, senão essencialmente por sua crescente importância no contexto latino-americano. Para corroborar este ponto, basta revisar algumas cifras sobre o caso argentino: no período compreendido entre 1950 e 1991, a taxa de crescimento das urbes cuja população oscilava entre 500 mil e 1 milhão de habitantes foi 50% mais elevada do que a correspondente à área metropolitana de Buenos Aires; enquanto a apresentada pelas aglomerações que tinham entre 50 mil e 500 mil habitantes foi 70% superior (Jordan e Simioni, 1998: 57).

A fim de avançar em cada uma das três direções acima indicadas, no presente trabalho propomos estudar o caso de Neuquén, uma cidade de tamanho intermédio localizada na Patagônia argentina. Neste sentido, e para organizar a exposição, traçamos o seguinte caminho: na primeira parte do artigo, faremos uma breve aproximação ao conceito de segregação residencial e investigaremos possíveis vias para medi-la, utilizando a informação fornecida pelo Censo Nacional de Población y Vivienda de 1991 da Argentina. Posteriormente, com o propósito de analisar os “condicionantes societais da segregação”, nas palavras de Machado Barbosa (2001: 12), examinaremos a estratégia de crescimento implementada pelo Governo Provincial e as mudanças que a mesma imprimiu na população e na sociedade de Neuquén. Na última parte do texto, apresentaremos uma análise quantitativa de três dimensões da segregação (desigualdade, concentração e isolamento), por meio das quais exploraremos as assimetrias socioespaciais que caracterizaram a cidade durante o período selecionado. Em todo este percurso, para espacializar muitos dos fenômenos que as fontes censuais colocaram em evidência, elaboramos cartografias temáticas a partir da utilização de Sistemas de Informação Geográfica, em particular o programa ArcView GIS 3.3.

 

As ferramentas1

Existe certo consenso acadêmico em relação à definição de segregação residencial. Nas palavras de Rodríguez e Arriagada, este conceito remete a “formas de desigual distribuição de grupos de população no território” (2008: 6). Neste sentido, a segregação pode ser pensada como uma das formas em que se expressa o processo de diferenciação social ou mesmo como a cristalização da estrutura social no espaço (Machado Barbosa, 2001). Se aplicássemos esta ideia no âmbito das cidades, chegaríamos a uma definição como a de Sabatini, Cáceres e Cerda (2001: 27), que entendem a segregação residencial urbana como “o grau de proximidade espacial ou de aglomeração territorial das famílias pertencentes a um mesmo grupo social, seja este definido em termos socioeconômicos, étnicos, etários ou de preferências religiosas, entre outras possibilidades”. Para o nosso caso em particular, deixamos de lado as três últimas opções e concentramos nossa atenção no primeiro dos aspectos considerados pelos autores mencionados.

Em termos metodológicos, o estudo da segregação residencial na cidade de Neuquén nos obriga a tomar três decisões de enorme importância. A primeira delas consiste em selecionar uma variável de segmentação socioeconômica. Acerca deste ponto, os dados disponíveis apresentam uma primeira dificuldade. Infelizmente, o Censo Nacional de Población y Vivienda de 1991 da Argentina não oferece informação sobre o nível de renda nem sobre os estratos que conformavam a estrutura social da cidade de Neuquén. Sendo assim, só podemos ter acesso às diferenças sociais da população através do seguinte exercício de aproximação: devido à ausência de informação sobre a condição econômica da população, utilizaremos o máximo nível de instrução do chefe de família (MNI) como variável proxy da condição socioeconômica. Apesar de tratar-se de um paliativo, não poderíamos dizer que é uma decisão caprichosa. Longe disso, numerosos trabalhos abraçaram esta opção metodológica e todos eles partem de uma ideia comum: existe una estreita correlação entre a educação do chefe de família e a probabilidade de obter uma maior renda (Rodríguez, 2008; Natera Rivas y Gómez, 2008; Marcos e Mera, 2011).

Agora vejamos como o Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC) da Argentina tornou operacional a observação do MNI. O censo de 1991 nos proporciona oito categorias educativas, que abarcam uma gama de situações que vão desde o analfabetismo até à titulação universitária. Para facilitar nossa aproximação ao fenômeno da segregação, prestaremos especial atenção às categorias que se encontram nos extremos da escala: de um lado, os que possuíam até ao nível primário completo; e de outro, aqueles chefes de família que apresentavam uma passagem bem-sucedida pela universidade. O Quadro 1 nos mostra a pertinência da seleção de critérios educativos como forma de ter acesso ao nível socioeconômico da população de Neuquén. De acordo com os dados fornecidos pela Encuesta Permanente de Hogares2 para a região patagônica, o grupo de maior nível de instrução tinha, em meados dos anos noventa, uma renda familiar entre três a quatro vezes superior à do grupo que tinha as credenciais educacionais mais baixas. Esses números dependiam do facto de se tratar de uma família cujo chefe não tinha formação, ou de uma cujo “responsável” apresentava nível primário completo.

 

 

A segunda decisão nos remete ao problema da escala. Poderíamos resumir esta questão de uma maneira que resulte simples para o leitor. Quanto menor seja a unidade espacial escolhida, maiores serão as possibilidades de analisar situações que seriam impossíveis de observar a nível geral. Mas os riscos de pecar pelo excesso estão sempre presentes: se a unidade espacial escolhida é muito pequena, é provável que produza uma superestimação da segregação. Por isso, o desafio reside na definição de subunidades espaciais que sejam suficientemente pequenas, mas ao mesmo tempo suficientemente significativas quanto ao número de habitantes. Em função destas recomendações, utilizamos no presente estudo informação a nível de raio censual que, embora seja a escala-limite de desagregação fornecida pelo censo de 1991, proporciona unidades espaciais cuja dimensão poderia assimilar-se à de uma vizinhança, já que em sua imensa maioria superam os 1000 habitantes (Figura 1).

 

 

Em relação ao problema dos indicadores, terceira das decisões que devemos tomar, optamos por seguir o rastro deixado por Massey e Denton (1988), duas referências imprescindíveis no estudo da segregação residencial. Em uma obra clássica, os autores indicavam que a diferenciação socioespacial podia ser analisada a partir de distintas dimensões. Para os fins que este trabalho persegue, e em função da informação com a qual contamos, conformar-nos-emos com abordar três dimensões em particular: igualdade, concentração e exposição. Sem querer ser exaustivos, poderíamos dizer que os indicadores que derivam da primeira captam a distribuição desigual dos grupos sociais nas áreas espaciais em que a cidade pode subdividir-se; enquanto os vinculados à segunda se referem à quantidade relativa de espaço físico ocupado por um grupo no meio urbano. Em outras palavras, a desigualdade nos fala da mescla habitacional que existe entre dois grupos da população e a concentração acerca da pequena dimensão das áreas nas quais um determinado grupo tem uma forte presença. A terceira dimensão, aquilo que Massey e Denton denominam “exposição”, trata de elucidar o modo pelo qual a distribuição espacial condiciona as possibilidades de interação entre grupos sociais, medindo “a experiência da segregação sentida pela média dos membros de grupos minoritários ou maioritários” (1988: 287).

 

O cenário

Uma vez resolvido cada um dos desafios metodológicos que implica o estudo da diferenciação socioespacial, convém apresentar uma descrição geral do cenário no qual se desenvolveram os fenômenos que pretendemos estudar. Se tivéssemos que enumerar estes condicionantes societais da segregação, não poderíamos deixar de marcar aspectos relativos à economia, população e ao mercado de trabalho.

 

Economia

Em meados do século xx, a Patagônia ainda apresentava como atividade predominante uma pecuária extensiva, uma agricultura intensiva de oásis e a extração de hidrocarbonetos. Como é lógico supor, esta orientação produtiva colaborou muito pouco para o fortalecimento de um perfil urbano da região. Pelo contrário, uma visão superficial nos permitia observar um punhado de cidades que, em nenhum caso, podiam comparar-se com os tradicionais centros do país. Não estaria mal se disséssemos que o “desenvolvimentismo”, esse pensamento econômico irradiado pela Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), deu um pouco de ar puro aos periféricos distritos do Sul argentino. A tentativa de desmontar o modelo agroexportador e de erigir em seu lugar uma maquinaria industrial diversificada deu impulso à busca de fontes energéticas acordes com esta nova meta. Uma economia que até então havia olhado “para fora” mostrou um progressivo interesse por criar “polos de crescimento”, que propagariam sua influência ao conjunto nacional. Esta nova sintonia ideológica, que valorizava o papel planificador do Estado, teve Neuquén como um cenário privilegiado.Por essa razão, divisamos a partir dos anos sessenta um trânsito para uma modalidade de crescimento baseada nos benefícios derivados da exploração de recursos energéticos (hidroeletricidade, petróleo e gás). Ao mesmo tempo, e de algum modo como consequência desta orientação, expandiu-se uma ampla gama de atividades localizadas na capital provincial, entre as quais se destacavam a construção e a prestação de serviços, sobretudo aqueles que giravam na órbita do Estado, como por exemplo saúde, educação e administração pública em geral.

 

População

As transformações econômicas que acabamos de resenhar tiveram um impacto profundo na dinâmica demográfica da cidade. Para explicar isso, basta observar o impressionante crescimento da população de Neuquén, cujo número praticamente foi multiplicado por doze entre 1960 e 1991: seus 15 mil habitantes se transformaram em cerca de 170 mil. Dois fenômenos ajudam a entender um crescimento desta envergadura. Por um lado, devemos mencionar um incremento vegetativo que, devido a uma elevada natalidade e uma mortalidade em descenso, se manteve entre os mais altos da Argentina (Taranda et al., 2009). Por outro lado, o crescimento migratório levou a cidade de Neuquén a posicionar-se como uma das áreas receptoras de maior progresso durante a segunda metade do século xx.

 

Mercado de trabalho

O crescimento do Estado provincial, assim como o desenvolvimento do comércio, da indústria e das finanças, fez dos assalariados a categoria ocupacional mais repetida durante a década de 1980: três quartas partes da população economicamente ativa podiam inserir-se nela (Toutoundjian e Holubica, 1990: 59). A população não assalariada completava o panorama ocupacional de Neuquén. Como em muitos mercados laborais do país, esta última categoria incluía majoritariamente trabalhadores por conta própria, trabalhadores familiares sem remuneração e patrões de empresas de reduzidas dimensões (um ou dois trabalhadores). Cabe destacar que estas figuras encobriam boa parte dos assalariados empregados no mundo da construção.

Após este breve exercício de contextualização, temos condições de formular alguns interrogantes que orientarão nossas reflexões: como estas mudanças impactaram sobre as distintas dimensões e indicadores a partir dos quais se expressa a segregação residencial socioeconômica? A “ilha de bem-estar”, tal como se apresentava Neuquén nos discursos oficiais (Favaro e Arias Bucciarelli, 2001: 61), albergava em seu interior bolsões de pobreza? Essa população de escassa renda se encontrava segregada dentro da área urbana? Compartilhavam espaços na cidade aqueles que se situavam nos extremos da classificação socioeconômica?

 

Resultados

A seguir apresentamos os principais resultados que surgiram da medição dos indicadores de segregação espacial na cidade de Neuquén. Por uma questão de ordem, organizaremos a exposição a partir de cada uma das dimensões que detalhamos na segunda parte do trabalho. Como já advertimos, todas as medições foram realizadas tendo como referência os raios censuais e, para facilitar a leitura dos resultados, acompanhadas por uma enumeração dos principais defeitos e virtudes que apresentam os indicadores selecionados.

 

Dimensão de desigualdade

Os dois indicadores de segregação sob a dimensão de desigualdade que examinaremos neste trabalho são os Índices Globais de Segregação (IS) e de Dissimilitude (ID). Ambos partem de duas características semelhantes: utilizam como referência o conjunto da cidade e se interpretam como a proporção de um grupo determinado que deveria mudar-se para conseguir a desagregação total com respeito a outro (Duncan e Duncan, 1955). Um valor próximo a 100 nos indicaria que o grupo em questão não compartilha áreas residenciais com membros do outro grupo (realidade de segregação); enquanto um valor próximo a zero nos avisa que a proporção de ambos os grupos para cada uma das subdivisões estudadas é idêntica (realidade de integração). A diferença entre um e outro consiste em que, enquanto o IS mede a distribuição de um grupo em relação ao total da população, o ID mede a distribuição de dois grupos entre si.

A principal vantagem dos Índices de Segregação e Dissimilitude não é muito difícil de imaginar: sua leitura é simples e intuitiva. Além disso, o cálculo dos mesmos não precisa de grandes rudimentos, e sua implementação não requer técnicas de georreferenciamento. As desvantagens, por outro lado, resumem-se a duas. Em primeiro lugar, tal como argumentamos quando abordamos o problema da escala, os valores de ID e o IS serão menores quanto maior seja o tamanho das subunidades espaciais (Van Kempen, 2005). A segunda desvantagem consiste em que, ao serem indicadores de resumo, não dizem nada quanto ao facto de as áreas de concentração dos grupos se distribuírem de forma aleatória no espaço ou de se unirem umas às outras conformando contíguos homogêneos (Sabatini, Cáceres e Cerdá, 2001).

Para o caso da cidade de Neuquén, o IS mostra que os grupos de MNI baixo e MNI alto não se encontram homogeneamente distribuídos (Quadro 2). Em 1991, cerca de um terço dos chefes de família que apresentavam os piores indicadores educativos devia mudar seu lugar de residência para obter uma distribuição homogênea em toda a cidade. A segregação dos que mostravam um MNI alto era ainda mais forte. Um IS de 44 nos fala de uma escassa mescla habitacional entre a população de maior renda e o resto da sociedade de Neuquén (Quadro 2). Nos inícios da década de noventa, cerca de metade dos chefes de família de melhor condição socioeconômica devia transladar-se para conseguir uma distribuição uniforme no interior do espaço urbano. Poderíamos então resumi-lo da seguinte maneira: muito antes da aparição dos condomínios fechados e das urbanizações exclusivas, e rompendo com o que o senso comum parecia indicar-nos, os ricos se encontravam muito mais segregados no espaço urbano que os pobres.

 

 

Passemos agora ao segundo dos indicadores a partir do qual podemos aproximar­nos da desigualdade: o Índice de Dissimilitude. Os resultados que obtivemos neste ponto permitem inserir Neuquén na abundante literatura dedicada ao estudo da segregação residencial socioeconômica. Como em outros trabalhos, a medição do ID mostra a estreita correlação existente entre nível socioeconômico e ocupação do espaço, sugerindo uma alta correspondência entre a distribuição espacial dos grupos e as distâncias socioeconômicas existentes entre eles (Rodríguez, 2008: 18). Para demonstrar o primeiro, basta mencionar uma cifra: dois terços dos membros do grupo de MNI baixo deviam mudar seu lugar de residência para obter igual distribuição em relação ao grupo de MNI alto em todas as áreas da cidade. Porém, este dado nos diz pouco se não o observamos a partir de uma perspectiva mais ampla: no caso de utilizar os parâmetros fornecidos por Arriagada Luco (2010), autor especializado no estudo da diferenciação socioespacial em distintas urbes latino-americanas, estamos em condições de afirmar que os dois grupos mostravam entre si uma realidade de hipersegregação.

 

Dimensão de concentração

O terceiro dos indicadores que utilizaremos para observar a segregação residencial na cidade de Neuquén é o Índice Delta (DEL). Trata-se de uma medida que considera as densidades relativasde um determinado grupo em cada uma das unidades espaciais selecionadas, relacionando tais magnitudes com a densidade média de dita subpopulação no conjunto urbano (Martori i Cañas e Hoberg, 2004). A principal vantagem do DEL é que inclui uma dimensão territorial que não estava presente nos indicadores que trabalhamos acima. No entanto, como toda a medida de resumo, por meio dela apenas podemos saber se alguma subpopulação mostra uma realidade de concentração, não sendo possível identificar em que unidades espaciais se dá este processo e, menos ainda, conhecer se tais unidades espaciais se encontram agrupadas em algum setor da cidade. Em outras palavras, e fazendo uso dos sugestivos esquemas de Sabatini, Cáceres e Cerda (2001), a obtenção do DEL não nos permite saber se estamos na presença de uma “segregação micro” – por exemplo um enclave – ou de uma “segregação macro” – uma área extensa que contém um grupo com semelhantes condições socioeconômicas. Por essa razão, não é recomendável delimitar o estudo da segregação residencial à implementação de apenas este indicador de concentração.

O cálculo do DEL coloca-nos face a uma realidade de forte concentração de “pobres” e “ricos” no tecido urbano de Neuquén. Para apoiar este ponto, só é preciso dizer que o indicador de ambas as subpopulações (MNI baixo e MNI alto) superava a barreira de 60. Estes algarismos poderiam ser lidos da seguinte maneira: seis em cada dez integrantes dos grupos em questão deviam mudar de residência para se conseguir uma densidade uniforme em toda a cidade. Cifras elevadas como as obtidas nos advertem que tanto os chefes de família que não tiveram acesso ao nível secundário de educação como os que ostentavam uma passagem completa pelo sistema universitário tinham uma maior presença relativa em determinadas vizinhanças, onde a sua densidade era verdadeiramente alta. Vistos sob uma perspectiva nacional, estes níveis de concentração encontram-se acima do exibido por cidades intermédias de maior porte, como é o caso da Província de Santa Fé no começo do século xxi (Gómez, 2011), ou urbes da envergadura de Buenos Aires (Marcos e Mera, 2011). Este simples exercício comparativo fornece-nos uma evidência adicional sobre uma hipótese que sugerimos em outros trabalhos (Perren, 2011a e 2011b): as aglomerações de tamanho intermédio, muitas vezes mostradas como espaços de relativa igualdade, não estavam isentas das fraturas sociais que caracterizavam as metrópoles da região.

Para remediar algumas das deficiências que apresentava o DEL, é necessário recorrer a outro indicador de concentração: o Quociente de Localização (LQ). Em termos gerais, poderíamos afirmar que esta medida nos alerta sobre quão elevada é a proporção de um determinado grupo em uma determinada área da cidade relativamente à proporção que o mesmo grupo assume em toda a cidade. Um LQ menor que a unidade nos mostra uma situação na qual a proporção de um determinado grupo na unidade espacial é inferior à proporção do grupo na cidade (realidade de sub-representação relativa); enquanto um que se encontre acima daquela cifra mostra o contrário: a proporção do dito grupo na unidade espacial é maior que a proporção do grupo na cidade (realidade de sobrerrepresentação relativa) (Arbaci, 2008). Do que acabamos de expressar infere-se a principal vantagem do LQ em relação ao DEL: ao permitir ordenar todas as áreas em função da proporção de membros do grupo que nelas habitam, o primeiro possibilita distinguir agrupamentos espaciais; algo que, como vimos anteriormente, era impossível realizar utilizando o segundo. Na linha das vantagens também devemos destacar um segundo aspecto: o LQ não é sensível às diferenças de população e permite a comparação da distribuição no espaço de grupos muito díspares em termos demográficos.

Dito isto, não podemos deixar de fazer uma pergunta: quais eram as áreas de maior concentração relativa de chefes de família que se situavam nas extremidades da classificação (MNI Alto e Baixo)? Ou, em outras palavras, onde se localizavam os grupos socioeconômicos que mostravam entre si uma escassa mescla habitacional?

A resposta a estes interrogantes poderia resumir-se da seguinte maneira: a distribuição no espaço de ambos os grupos apresentava uma combinação entre elementos antigos e outros que resultavam, no começo dos anos noventa, inovadores. Na Figura 2 podemos ver que as áreas de maior concentração relativa de chefes de família com MNI baixo se localizavam em espaços que se encontravam relegados desde meados do século xx (Perren, 2007). Neste caso, devemos mencionar assentamentos semirrurais desenvolvidos nas imediações do cinturão de chácaras que rodeia a cidade (no Sudoeste, o bairro “Valentina”) e bairros populares de antiga data (“Progreso”, no Oeste). O grupo de menor passagem pelo sistema de ensino também se encontrava sobrerrepresentado naquelas áreas que se juntaram à maré urbanizadora nos anos setenta e oitenta. Na maioria dos casos tratava-se de assentamentos que se desenvolveram em terras fiscais e que, ainda em 1991, careciam dos serviços públicos mais básicos (os bairros “Malvinas” e “Ceferino” no Oeste e “Don Bosco II e III” no Sul). Por último, e aí reside uma das principais novidades em relação ao passado, o estrato de menor nível socioeconômico começava a ser forte em complexos habitacionais construídos pelo Estado provincial no Oeste da cidade. Esta política, que aprofundou a segregação dos setores mais vulneráveis da sociedade, deu origem a bairros no Noroeste de Neuquén, entre os quais se destacou, devido ao seu tamanho, “San Lorenzo”.

 

 

Observamos um mix similar entre elementos antigos e novos em um grupo conformado pelos chefes de família de MNI alto (Figura 3). Sua presença relativa era verdadeiramente forte no que, em outro trabalho, denominamos “centro estendido”; quer dizer, aquele espaço conformado pelo traçado original e diferentes bairros residenciais que, em virtude do crescente preço da propriedade imobiliária na área comercial e administrativa, foram construídos em um raio compreendido entre quinze a trinta quadras do centro geográfico da cidade (“Villa Farrell” no Leste, “Cumelén” no Oeste, “Santa Genoveva” e “Provincias Unidas” no Nordeste e “Alta Barda”, “COPOL”, “Salud Pública” e “14 de octubre” no Norte). Este padrão de assentamento centralizado, que invertia a lógica sugerida por Burgess para o caso das metrópoles norte-americanas, começou a ser acompanhado de um elemento que ganharia peso conforme nos aproximamos do presente: a periferização dos padrões habitacionais dos membros mais abastados da sociedade. Isto é especialmente evidente no caso das áreas conhecidas como “Jardines del Rey” (no Sul), “Rincón Club de Campo” (no Norte), “Consorcio San Martín” e “Barreneche” (ambos no Oeste). Também com uma localização periférica, ainda que com características muito diferentes dos anteriores, devemos mencionar os complexos habitacionais construídos para dar solução ao déficit habitacional que enfrentavam os trabalhadores da educação na capital de Neuquén (“MUDON” e “MUTEN” no Noroeste). Em resumo, os padrões de assentamento do grupo que ocupava a cúspide da classificação assemelhava-se a um “continente” localizado no centro e a um punhado de “ilhas” que começavam a surgir na periferia (Figura 3).

 

 

Dimensão de exposição

A exposição, como adiantamos na segunda seção, constitui uma dimensão que reflete o grau de contato potencial ou a possibilidade de interação entre os membros de diferentes grupos sociais. Para dar conta deste tipo de situação resulta adequado adicionar o Índice de Isolamento (IA) à nossa caixa de ferramentas. Nas palavras de Gómez, este indicador mede a probabilidade de que um “indivíduo compartilhe a mesma unidade com um indivíduo de um grupo diferente” (2011: 67). Ao contrário do ID ou do IS, os possíveis valores do IA oscilam entre 0 e 1. O valor máximo nos indica que uma determinada subpopulação está isolada nas unidades espaciais onde reside; enquanto uma pontuação baixa nos indica exatamente o inverso: essa subpopulação deveria ter maiores possibilidades de interagir com outros grupos sociais.

A principal vantagem do IA é que funciona como um complemento ideal de indicadores relacionados com a concentração. Se estes últimos, como dissemos anteriormente, mostravam realidades de sub- ou super-representação de um determinado grupo, o IA permite vincular essa questão com o total dos habitantes de uma determinada unidade espacial. Entretanto, não podemos deixar de notar que este indicador assume como certa uma série de pressupostos que nem sempre ocorrem na realidade histórica. Entre eles, podemos mencionar três em particular: a) as pessoas interagem apenas com quem mora na sua própria área de residência; b) cada pessoa tem probabilidade igual de estabelecer contato com qualquer outra da mesma área; e c) as possibilidades de interação têm como único determinante a distribuição residencial da população (Marcos e Mera, 2009: 6). Precisamente por tratar-se de um simples exercício estatístico, de um mero jogo de probabilidades, os resultados que obtenhamos nesta dimensão não apenas devem ser complementados com outros indicadores de segregação, senão que também é imprescindível analisá­los à luz de outro tipo de evidência, seja quantitativa ou qualitativa.

A aplicação do IA ao caso de Neuquén nos mostra uma realidade muito rica em nuances. Se bem que os grupos de MNI baixo e alto exibiam uma forte concentração em determinadas áreas da cidade, o nível de isolamento de ambas subpopulações não era exatamente o mesmo. Não estaria mal se disséssemos que os que apresentavam um pior desempenho educativo estavam muito mais isolados do que aqueles que podiam demonstrar uma passagem completa pela universidade. Para apoiar esta afirmação, é suficiente destacar que os primeiros praticamente triplicaram o IA dos segundos: os integrantes do grupo de MNI baixo atingiram nesta dimensão valores próximos a 0,3; enquanto os chefes de família com MNI alto apenas obtiveram uma pontuação de 0,1. Estas diferenças nos indicam que a proporção de “pobres” nas “áreas pobres” era muito mais elevada do que a proporção de “ricos” nas “áreas ricas”, o que nos mostraria uma realidade de segregação que afetava principalmente quem se encontrava na base da estrutura sócio-ocupacional.

Uma pesquisa, realizada pelo município de Neuquén em meados da década de 1980, pode nos dar algumas pistas sobre o grau de isolamento da subpopulação que reunia piores condições socioeconômicas. O objeto deste estudo foi, não por acaso, o “Sector 5” do bairro “Progreso”, no coração do agrupamento de áreas “pobres”. Graças a um duro trabalho de campo, os técnicos da Prefeitura de Neuquén puderam determinar que este assentamento, que tinha mais de mil habitantes, só contava com quarenta estudantes do ensino secundário e um estudante universitário.3 Esse escasso nível de instrução refletia-se em uma estrutura ocupacional onde sobressaíam os trabalhadores manuais e, em especial, aqueles que estavam empregados no mundo da construção. As condições habitacionais de vizinhanças assentadas em terras fiscais não eram melhores que as ocupacionais. O “Sector 5”, como toda a “nova periferia” nascida nas margens da cidade, constituía um verdadeiro deserto em matéria de serviços públicos. A conclusão a que chegaram após realizar este diagnóstico não podia ser mais clara, e descreve com perfeição como a segregação das áreas “pobres” incrementava o nível de polarização da cidade:

A falta de comunicação direta com os setores de assentamento, a carência de serviços de infraestrutura, a precariedade da maioria das casas e a falta de ordenamento, acarreta sérios transtornos de convivência no meio e como conseqüência um isolamento social, cultural e econômico dos centros urbanos desenvolvidos.4

Esta realidade de isolamento e de forte homogeneidade social, descrita pelas próprias autoridades, pode ser posta à prova realizando um estudo dos matrimônios. Embora se trate de uma via indireta, que não abrange o conjunto da população, uma exploração da nupcialidade pode dar-nos alguns indícios sobre o impacto da segregação residencial nas relações sociais e, como argumentam alguns autores, na subjetividade dos habitantes (Machado Barbosa, 2001). Em outro trabalho, analisamos as pautas matrimoniais daqueles que haviam chegado do outro lado da Cordilheira dos Andes e do interior rural de Neuquén. Ou seja, dos grupos da população que, na década de oitenta, apresentavam um comportamento residencial pouco centralizado e uma forte presença nos escalões inferiores da estrutura ocupacional. Alguns resultados que obtivemos naquela investigação nos mostraram a forte correlação que existia entre condição social, lugar de residência e seleção matrimonial: oito em cada dez migrantes de ambas as origens contraíram matrimônio com uma pessoa que morava nas mesmas coordenadas espaciais (Perren, 2011c). Esta homogamia residencial, sobreposta com uma homogamia social, avisou-nos sobre um aspecto inevitável: as margens da cidade foram o cenário de uma fluida comunicação entre os que ocupavam a base da estrutura ocupacional.

 

Reflexões finais

Após este passeio por uma parte da história urbana da cidade de Neuquén, é necessário afirmar que as cidades intermédias não estiveram isentas das fraturas socioespaciais que caracterizaram as urbes de maior dimensão, tal como certa literatura parecia esforçar-se por demonstrar (Llop Torné, 1999: 44). E esta afirmação não só é válida para o período que se inaugura na década de 1990, quando se exacerbaram os problemas de emprego e a retirada do Estado complicou enormemente o acesso à habitação, senão que também é aplicável para o período prévio. Tal como demonstramos em outros trabalhos e reafirmamos no presente estudo, a chamada “ilha do bem-estar” apresentava, para cada uma das dimensões analisadas, níveis de segregação residencial que se encontravam à altura de cidades intermédias de maior tamanho e inclusive comparáveis aos que exibia na área metropolitana de Buenos Aires (Perren, 2011b).

Agora, dito isso, algumas perguntas são inevitáveis: que implicações este fenômeno teve em uma cidade com as características de Neuquén? Que mecanismos sociais foram resultado das evidentes desigualdades espaciais da cidade?

Poderíamos começar dizendo que a segregação, além de expressar no espaço distintos tipos de desigualdades, constitui-se no cimento sobre o qual tais diferenças se assentam, reproduzem e agravam. Com isto, queremos dizer que a estrutura espacial da cidade não reflete apenas as assimetrias próprias da sociedade, como também “retroalimenta uma estrutura social complexa na qual coexistem e se combinam processos de diferenciação, desigualdade e exclusão” (Saraví, 2008: 97). Esta hipótese, que coloca a segregação no lugar de causa e não como uma mera consequência, foi defendida por dois enfoques teóricos que, ainda que diferentes, têm mais de um ponto de contato. O primeiro deles procurou desentranhar o que alguns autores denominaram “efeito de bairro”. Defendendo a premissa de que “a vizinhança importa”, como alguma vez assinalou Ruben Katzman (1999), os autores que pertencem a esta tradição se esforçaram em demonstrar como o “isolamento dos pobres” não fez mais do que recortar o horizonte daqueles que sobrevivem nestes espaços relegados, levando a maioria dos que ali residem a imaginar a pobreza como única possibilidade. A segunda perspectiva partia de um pressuposto bastante mais simples: as comunidades com poucas oportunidades são aquelas que apresentam inocultáveis déficits em setores necessários para que seus habitantes possam desenvolver todas as suas capacidades. Essa desigual “geografia das oportunidades” envolve, entre outros elementos, a escassez de estabelecimentos educativos, a falta de postos de trabalho, a baixa taxa de geração de emprego e uma insuficiente capacidade para originar recursos fiscais. Além das suas óbvias diferenças, ambas as visões propõem “pensar o micro como efeito de condicionantes macros” que operam no plano espacial (Otero e Pellegrino, 2004: 50).

Alguns resultados que obtivemos para o caso de Neuquén pareciam apontar nesta direção (Perren, 2013). Depois de reconstruir, por meio de fontes nominais, o comportamento ocupacional de uma centena de famílias, advertimos sobre a existência de trajetórias diferenciais vinculadas precisamente ao lugar de residência. Algumas cifras podem fornecer-nos pistas a este respeito: cerca de um terço das famílias que moraram nos espaços ocupacionalmente heterogêneos, localizados principalmente na área central da cidade, exibiram alguma forma de mobilidade ascendente; enquanto só um quinto das que residiram apenas em espaços pouco estratificados, todos de localização periférica, poderiam localizar-se nas mesmas coordenadas. Encontramos diferenças do mesmo teor se paramos para olhar aqueles que não mostraram trajetórias ocupacionais variáveis. Neste sentido, é suficiente dizer que as famílias “periféricas” apresentaram uma estabilidade superior em 22% àquelas que residiram nos espaços mais consolidados da cidade (ibidem). Estes dados nos indicam que as trajetórias das pessoas que desenvolveram sua sociabilidade na nova periferia, justamente no momento em que esta estava se construindo, apresentavam uma segurança e uma cobertura que não eram tão visíveis naqueles espaços que continham universos de relações menos densos. Porém, esta trama de relações, que podia servir de garantia ante o desemprego, funcionava como uma “cápsula ocupacional”, dificultando o acesso a empregos que se encontrassem fora de um mundo de relações que tinha a proximidade espacial como principal condicionante.

No entanto, não podemos deixar de mencionar uma dimensão positiva da segregação residencial. A concentração espacial dos pobres foi de vital importância para seu “empoderamento” (Katzman, 2001): sobre a base da organização territorial, pôde reforçar-se a capacidade de ação de quem reside nos assentamentos periféricos. Claro que os efeitos positivos da segregação não podiam ser reduzidos a uma questão organizacional ou a mecanismos de pressão ante as autoridades. Vemos também, em certa medida atravessada por aquelas práticas, a emergência de novos contextos culturais. Compartilhar um mesmo quadrante da cidade, sobretudo espaços isolados, foi um insumo fundamental para a edificação de identidades que, nos dizeres de Castells (1999), giravam em torno da possibilidade do acesso a “consumos coletivos”. Em outras palavras, e abreviando ao extremo a proposta analítica do sociólogo catalão, as urbes contemporâneas se caracterizavam por uma forma de “luta de classes” que, embora tivesse sua origem na esfera da produção, operava sobre os efeitos mais visíveis do capitalismo: as condições materiais de existência daqueles que moravam nas margens da cidade.

A experiência de Neuquén, embora longe destes focos de interesse, pode ser que nos esclareça sobre este aspecto positivo da segregação residencial. Em um recente trabalho (Perren, 2011c), pudemos demonstrar como nos anos oitenta, justamente quando a cidade acelerava sua urbanização, emergiu um modelo distintivo de resolução de problemas. Este repertório de modalidades de intervenção nega qualquer imputação de uma suposta “cultura da pobreza” que a população que residia nos assentamentos trouxe consigo dos espaços “tradicionais” e que havia encontrado terreno fértil para seu desenvolvimento na ecologia da periferia, tal como imaginava Lewis (1964) para o caso mexicano. A evidência destacada parecia demonstrar-nos o contrário: as estratégias traçadas pelos habitantes dos assentamentos, longe de constituírem uma herança imemorial transmitida entre gerações, tiveram como origem as relações “cara a cara” nascidas de necessidades compartilhadas e reforçadas pela proximidade espacial.

Esse repertório tinha como primeiro elemento de relevância a criação de “redes de resolução de problemas”, fazendo uso da muito útil noção elaborada por Auyero. Estes vínculos familiares e de amizade, reforçados pela aproximação espacial, foram importantes para dar resposta a diferentes áreas sensíveis da vida cotidiana nas “vilas de emergência”, entre as quais podemos mencionar a provisão de água, a construção de moradias, o traçado de caminhos e o aterro das numerosas valetas que atravessavam a geografia do assentamento. A escassa presença oficial na periferia era suprida por laços de cooperação, cujo motor foi aquilo que Lefevbre (2012) definiu como “direito de viver a cidade”. Ou, emprestando as palavras de Manuel, um funcionário radicado no setor, o propósito dessas redes informais não era outro senão o “de deixar a vila mais visível”.5

Quando as necessidades do assentamento não podiam ser resolvidas em seu interior, o repertório dos ocupantes agregava um segundo recurso: iniciavam-se gestões burocráticas junto às autoridades competentes. No caso da regularização de alguns serviços ou da incorporação de novas prestações, as redes sociais conformadas nas “vilas de emergência” abandonavam a periferia e avançavam sobre a “cidade formal”. A segregação residencial se traduzia em uma invisibilidade, tanto para os setores sociais mais abastados como para o Estado, que só podia ser revertida a partir da organização: os laços informais, que haviam solucionado muitos dos problemas cotidianos da vila, ganhavam formalidade para fazer efetivas as demandas dos ocupantes do assentamento.

Finalmente, quando as redes de resolução de problemas e as gestões burocráticas junto às autoridades competentes resultavam insuficientes, os habitantes dos assentamentos utilizavam um terceiro recurso: as mobilizações. Se as instituições públicas não davam resposta, as ações coletivas adquiriam um caráter contencioso, empregando a inteligente categoria desenvolvida por Tarrow (1997). Isto não significava que a violência se convertesse no componente principal dos protestos. Tratava-se, em todo caso, da emergência dos interesses em um determinado momento necessariamente contraditórios. Foi o que precisamente sucedeu na ocasião dos aumentos no pagamento de distintos serviços públicos, registrados em 1988. A manifestação, organizada por distintas comissões da periferia, foi uma importante demonstração de força e convenceu as autoridades estaduais sobre a necessidade de amortecer o impacto dos aumentos de maneira paulatina. A rápida resposta de ambas as instâncias oficiais nos dá algumas pistas acerca de como as agências estatais administraram as tensões que a expansão da cidade trouxe consigo, abrindo canais de integração para aqueles que, até ao momento, não haviam sido mais que “párias urbanos” (Wacquant, 2007).

Esta natureza dual do fenômeno da segregação residencial socioeconômica nos coloca a necessidade de multiplicar os estudos comparativos entre diversas cidades, tanto em seus aspectos “objetivos” como na incidência que as desigualdades espaciais têm nos mecanismos microssociais. Somente desta forma poderemos escapar daqueles olhares que tentaram analisar a segregação fazendo uso de modelos supostamente universais, seja estudando a realidade latino-americana a partir da experiência norte-americana ou mesmo buscando nas cidades do Sul aqueles elementos que levariam a uma “normalidade urbana” no âmbito de uma globalização onipresente (Stren, 1994; Topalov, 2002; Thorns, 2002). Para que esta aposta dê seus primeiros frutos, é de fundamental importância resgatar as particularidades que a diferenciação socioespacial assumiu em diferentes cenários e fazê­las convergir em uma narrativa global. Ou seja, iniciar uma empresa que, sem perder sua coerência interna, consiga apreciar a especificidade da existência urbana, seguindo a sugestiva proposta de Lefevbre (2012). E neste esmerado trabalho de síntese deve dedicar-se um lugar às “outras cidades”, a essas experiências urbanas que, de acordo com Fortuna, incluem as “cidades do passado da nossa modernidade urbana, mas também as pequenas cidades e as localidades que constituem cada uma delas, e também cidades das outras latitudes que não as do universo euro-americano, sem excluir as cidades do futuro em que estamos destinados a viver” (2008: 27). Esperamos que nosso estudo sobre um espaço urbano situado no “Sul do Sul” haja contribuído, ainda que minimamente, para a construção de uma nova agenda urbana.

 

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Artigo recebido a 08.01.2014 Aprovado para publicação a 11.06.2014

 

NOTAS

* Este artigo foi elaborado no âmbito de um pós-doutoramento realizado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, financiado conjuntamente pelo Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) da Argentina e pelo Programa “Argentina towards Europe for Social Sciences” (ARTESS-Erasmus Mundus).

1 Nesta seção retomamos algumas ideias propostas em Perren (2011b).

2 A Encuesta Permanente de Hogares é um programa nacional de produção permanente de indicadores sociais cujo objetivo é conhecer as características socioeconômicas da população. É realizada de maneira conjunta pelo Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC) e as Direcciones Provinciales de Estadística (DPE). Encontra-se uma boa aproximação à história deste instrumento em Graña e Lavopa (2008).

3 Arquivo Histórico da Prefeitura de Neuquén (AHMN), Asesoría técnica de normalización de asentamientos ilegales, Secretaria de Obras Públicas, Municipalidad de Neuquén, 1983, p. 6.

4 AHMN, Asesoría técnica de normalización de asentamientos ilegales, Secretaria de Obras Públicas, Municipalidad de Neuquén, 1983, p. 9.

5 Revista de CALF (1983), “Villa El Progreso”, 65(5), 34.

 

ANEXO

 

 

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