SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número105Relatos de branquitude entre um grupo de homens brancos do Rio de JaneiroReflexos invertidos: As migrações clandestinas no filme de ficção e documentário índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.105 Coimbra dez. 2014

https://doi.org/10.4000/rccs.5800 

ARTIGO

Cidadania e empoderamento local em contextos de consolidação da paz

Citizenship and Local Empowerment in Peacebuilding Scenarios

Citoyenneté et empowerment local en contextes de consolidation de la paix

 

Marisa Borges* e Roberta Holanda Maschietto**

*Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal E-mail: marisaborges@ces.uc.pt

**Faculty of Social and International Studies, University of Bradford. Bradford, West Yorkshire, BD7 1DP, Reino Unido E-mail: R.HolandaMaschietto@Bradford.ac.uk

 

RESUMO

O artigo discute de forma crítica a ênfase dada ao ‘local’ nas agendas de construção da paz e desenvolvimento. Neste sentido, analisa, primeiramente, a incorporação dos termos empoderamento (empowerment) e apropriação local (ownership) na agenda internacional e a sua conceção eminentemente apolítica e técnica. Paralelamente, nota a paradoxal ausência do tratamento do conceito de cidadania no espectro destas agendas, em especial no âmbito da (re)construção de Estados (statebuilding). Considerando as críticas relativas ao primeiro tema e a ausência de debate em relação ao segundo, o artigo propõe a repolitização dos conceitos de empoderamento e cidadania e a sua utilização analítica conjunta, a fim de resgatar a importante dimensão das dinâmicas de poder existentes não apenas entre os níveis interno e externo, discussão presente na maioria das análises sobre intervenção, mas também a nível interno, uma vez que aqui reside a base de sustentabilidade da paz a longo prazo.

Palavras-chave: cidadania, construção da paz, empoderamento, poder

 

ABSTRACT

This article critically discusses the ‘local turn’ in peacebuilding and development agendas. It begins by analyzing the inclusion of the concepts of local empowerment and ownership in the international agenda, identifying their highly apolitical and technical conceptualization. Secondly, taking into account the state-building premises underlying these reforms, it stresses the paradoxical absence of any concept of citizenship within these agendas. Taking a critical stand on these issues, the article proposes a re-politicization of the concepts of empowerment and citizenship and their combined use in analysis, in order to restore the important dimension of power dynamics which exist not only within the local/international divide – a frequently discussed topic – but also internally within states emerging from war, given that this forms the basis for sustainable long-term peace.

Keywords: citizenship, empowerment, peacebuilding, power

 

RÉSUMÉ

L’article aborde de façon critique l’emphase donnée au ‘local’ dans les agendas de construction de la paix et du développement. Dans ce sens, il analyse en premier lieu l’incorporation des termes empowerment et appropriation locale (ownership) dans l’agenda international et leur conception éminemment apolitique et technique. Parallèlement, il souligne l’absence paradoxale du traitement de concept de citoyenneté dans le spectre de ces agendas, en particulier dans le cadre de la (re)construction d’États (statebuilding). En tenant compte des critiques ayant trait au premier thème et de l’absence de débat en ce qui concerne le second, l’article propose la repolitilisation des concepts d’empowerment et de citoyenneté et leur utilisation analytique conjointement, afin de rétablir la dimension importante des dynamiques de pouvoir qui existent, non seulement entre les niveaux internes et externes, discussion qui est présente dans la plupart des analyses portant sur l’intervention, mais aussi au niveau interne, puisque c’est là que réside la base de la durabilité de la paix à long terme.

Mots-clés: citoyenneté, construction de la paix, empowerment, pouvoir

 

Introdução

Nos últimos vinte anos, as agendas internacionais da paz e do desenvolvimento em contextos de pós-guerra têm progressivamente incorporado a preocupação com a inclusão dos agentes locais na definição e implementação das políticas que irão conformar as bases do novo Estado. Esta ênfase no local (local turn) (Mac Ginty e Richmond, 2013) pode ser percebida de duas formas: de um lado, observa-se a mudança no discurso e em algumas práticas das agências intervenientes, utilizados como mecanismos de legitimação destas intervenções. De outro lado, observa-se a crítica a estas práticas por parte de quem as exerce e de académicos, particularmente no que toca à sua verticalidade.

O presente artigo discute esta mudança, analisando criticamente o discurso que a sustenta e suas contradições. Assim, analisa, primeiramente, a mudança terminológica no discurso internacional, enfatizando dois conceitos – apropriação local (ownership) e empoderamento(empowerment). Em seguida, discute a ausência da cidadania nestes discursos, face ao seu papel na (re)construção do Estado. Neste sentido, o artigo propõe o resgate da cidadania como elemento fundamentalmente ligado ao empoderamento e necessário para a sustentabilidade dos processos de consolidação da paz (peacebuilding) a longo prazo.

O argumento apresentado é que a ênfase local do discurso oficial tem sido limitada pela forma como os conceitos são definidos, enfatizando o processo participativo e a criação de ‘espaços convidados’, previamente definidos pelos atores intervenientes e com efeito reduzido no desenvolvimento da cidadania. Apesar disto, esta mudança discursiva também oferece uma oportunidade para repensar estes espaços, tendo como ponto de partida os próprios conceitos de apropriaçãoe empoderamento local. Ao repensar estes conceitos, e ao incluir a preocupação com questões de poder (inclusivamente no âmbito interno) na sua discussão, permite uma expansão do entendimento dos espaços participativos, de forma a incluir também ‘espaços reivindicados’. Esta perspetiva expandida, ao incluir questões de poder, oferece um cenário mais realista sobre a geometria do conflito e da paz, ampliando assim a compreensão acerca dos espaços de intervenção e suas possibilidades de sucesso, bem como retomando a centralidade da cidadania nestes cenários.

 

1. O ‘local’ na agenda da consolidação da paz

Desde meados da década de 1990, a preocupação com a legitimidade das intervenções internacionais – seja no âmbito de desenvolvimento, seja no âmbito das intervenções de paz – foi-se relacionando progressivamente com a dimensão da aceitação e inclusão do nível ‘local’ na decisão e implementação de políticas (Ramsbotham et al., 2011; Donais, 2012; Richmond, 2012). Termos como apropriação, empoderamento e participação entraram nos discursos de decisores políticos e académicos, consolidando uma nova forma de olhar para o local na agenda da construção da paz (Mac Ginty e Richmond, 2013). Vários fatores contribuíram para esta alteração. No âmbito da definição de políticas da agenda de desenvolvimento, o reconhecimento do fracasso dos impositivos planos de ajustamento estrutural, desenhados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), em vários países em desenvolvimento na década de 1980, e dos seus efeitos sociais negativos, foi um dos elementos que chamou a atenção para a revisão destes mecanismos (Friedmann, 1992; Rowlands, 1997). Ao mesmo tempo, a experiência com práticas e metodologias participativas, influenciada por agendas mais radicais e inspiradas por movimentos sociais e populares (como o movimento feminista, a educação popular na América Latina) também influenciaram esta revisão e a progressiva incorporação de abordagens ‘de baixo para cima’ (bottom-up) nas práticas de desenvolvimento (Chambers, 1983; Friedmann, 1992; Cornwall e Brock, 2005; FRIDE, 2006; Pieterse, 2010).

No âmbito da agenda de segurança, estes questionamentos surgiram um pouco mais tarde, seguindo em grande medida a tendência observada na esfera do desenvolvimento. De um lado, houve a reavaliação de inúmeras operações de paz e das respetivas limitações na promoção de uma situação de paz sustentável em países como a Somália, o Iraque e Angola (Krause e Jütersonke, 2006; Duffield, 2007; Donais, 2009; Francis, 2010). De outro lado, a emergente conexão entre as agendas de segurança e desenvolvimento, espelhadas nas políticas de consolidação da paz (Duffield, 2001), bem como o trabalho de vários atores com mecanismos de resolução de conflitos localmente mais integrados, resultaram na importação de conceitos do desenvolvimento para a agenda de paz e segurança, incluindo o conceito de apropriação local e empoderamento (Lederach, 1997; Francis, 2010; Ramsbotham et al., 2011; Richmond, 2011; Donais, 2012; Richmond, 2012).

Na prática, a inclusão destes conceitos e suas implicações para a definição de políticas constituiu uma resposta a vozes mais críticas e um esforço no sentido de dar sustentabilidade às reformas (Paris e Sisk, 2009; Mac Ginty, 2010). Com a prioridade dada à (re)construção de Estados, reforça-se uma visão do Estado como precondição necessária à materialização da paz liberal (Paris, 2004; Brahimi, 2007; Call e Cousens, 2008; Ghani e Lockhart, 2008; WB, 2011), assente numa perspetiva técnica sobre a soberania estatal, definida a partir do espaço internacional e concentrada essencialmente em aspetos performativos, que radicalizaram uma abstração dos contextos locais (Richmond, 2004; Chandler, 2005; Bickerton, 2007; Richmond, 2008).1

A priori, a inclusão do local trouxe um potencial significativo de revisão das dinâmicas de reconstrução do Estado. Porém, a forma como o discurso foi construído e o desfasamento entre discurso e prática reduziram significativamente este potencial, uma vez que os termos foram definidos e utilizados para manter a compatibilidade desta mudança com o não questionamento de questões fundamentais, consideradas causas do subdesenvolvimento e da eclosão e perpetuação de conflitos violentos.

Neste sentido, é interessante notar a própria escolha e utilização dos termos. Na agenda de consolidação da paz, o termo predominante é apropriação local que, de maneira geral, se entende como “o grau de controlo que atores nacionais possuem sobre processos políticos internos” (Donais, 2012: 1). No caso de contextos pós­guerra, indica o grau de envolvimento dos atores locais nos processos de redesenho e reconstrução das instituições (Donais, 2009; Narten, 2009). Nestes contextos a apropriação local significa que, não obstante a intervenção externa, o ‘dono’ do processo é/deve ser o ‘local’ ou ‘nacional’, para assegurar a sustentabilidade dos processos (Ban Ki-moon, 2009; Narten, 2009; UN-PSO, 2011). Isto tem duas implicações distintas. De um lado, garante a inclusão de uma parte da população local nos processos em questão, embora os parceiros locais sejam muitas vezes identificados pelos atores internacionais (Reich, 2006; Narten, 2009; Pouligny, 2009). Por outro lado, implica a responsabilização dos atores locais pelas reformas.

Alguns académicos têm criticado o discurso sobre apropriação local justamente por ser uma forma de eximir a responsabilidade internacional perante políticas que, contudo, são desenhadas externamente (Chandler, 2006). Aspeto que se reforça, aliás, com a compreensão de que os espaços de inclusão são de maneira geral predefinidos e concorrem com a consolidação de uma agenda eminentemente neoliberal, centrada na democracia, nos direitos humanos e no mercado (Chandler, 2006; Richmond, 2012). Ou seja, na prática, este discurso está longe de refletir o controlo local da agenda, aproximando-se, no máximo, de uma parceria entre os atores externos e os nacionais/locais (Pouligny, 2009; Francis, 2010; Donais, 2012; Richmond, 2012).

Além disso, a crítica perpassa a questão relativa a quem se inclui nesta parceria. Aqui a separação entre ‘local’ e ‘nacional’ é importante, pois o argumento ressalta o papel das elites nestes espaços participativos e não necessariamente dos ‘locais’, como grupos mais endógenos à margem do sistema, ou mesmo que resistem ao estilo de mudanças exigidos (Pouligny, 2009; Richmond, 2012).

Ao contrário, o conceito de empoderamento, mais em voga na agenda de desenvolvimento, é marcadamente voltado para o âmbito local. Devido às suas raízes mais radicais, inspiradas em movimentos populares de carácter contestatário (Cornwall e Brock, 2005; Batliwala, 2007; Luttrell et al., 2009), o termo empoderamento está geralmente associado ao nível mais comunitário e a grupos que estão à margem do poder (Kabeer, 2001; Eyben et al., 2008). Esta origem fez com que, nos anos 1960 e 1970, o conceito tivesse uma conotação muito mais radical, pois representava uma forma de contestação de determinadas estruturas de poder existentes (seja pela perspetiva patriarcal, de raça ou classe). Neste sentido, a incorporação do conceito na agenda oficial de desenvolvimento é vista como fruto desta pressão organizada dos movimentos sociais em relação às instituições internacionais (Friedmann, 1992; Cornwall e Brock, 2005). Ao mesmo tempo, e de forma paradoxal, a incorporação do empoderamento na agenda levou a que a sua aceção contestatária se tenha transformado num instrumento legitimador de políticas (Friedmann, 1992; Cornwall e Brock, 2005; Batliwala, 2007). Assim, e da forma como é interpretado hoje pelas grandes agências de desenvolvimento, o empoderamento está primordialmente associado à ‘construção de capacidades’ (capacity-building) e a processos participativos.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por exemplo, o empoderamento está “vagamente associado a participação: a possibilidade de que todas as pessoas, mesmo pobres e marginalizadas, sejam ouvidas e possam participar de forma significativa dos debates que afetam as suas vidas” (UNDP, 2010: 115). De forma mais geral, o PNUD entende o empoderamento como algo diretamente ligado à promoção da boa governação (democracia, direitos humanos, etc.) e nesse sentido, assim como o discurso sobre apropriação local, propaga um determinado modelo ligado à perspetiva ocidental de democracia liberal e não à contestação das estruturas de poder.

O mesmo se aplica no caso do BM que, no Empowerment and Poverty Reduction Sourcebook, publicado em 2002, define empoderamento como “a expansão dos recursos e capacidades das pessoas pobres para participar em, negociar com, influenciar e garantir a prestação de contas das instituições que afetam as suas vidas” (Narayan, 2002: xviii). Desta forma, a promoção do empoderamento como capacitação está fundamentalmente ligada a uma série de reformas institucionais vistas como necessárias para a redução da pobreza e que se baseiam na visão dicotómica Estado-sociedade, onde o primeiro deve abrir mais espaços representativos e, assim, melhorar a prestação de contas, transparência e o Estado de direito. Esta mudança inclui ainda a criação de espaço para o setor privado.

Apesar da existência de outras definições de empoderamento, incluindo algumas mais radicais, ligadas a determinadas ONG (ver, por exemplo, Scrutton e Luttrell, 2007), torna-se evidente no discurso dominante uma visão muito mais restrita em relação ao poder que se quer promover. De facto, ao enfatizar a ideia de poder como ‘capacidade’, duas coisas acontecem de forma automática. Primeiro, fica estabelecida a ideia de que existe ‘ausência de capacidade’ (ou capacidades melhores que outras) e, por isso, alguém (muito provavelmente o agente externo) terá que incutir/ transferir para o outro tais capacidades. Segundo, o discurso esquiva-se da problemática mais tradicional no seio do debate sobre poder – as questões de conflito e dominação – que estão na base das relações sociais, especialmente em contextos de guerra e imediato de pós-guerra.

Assim, parte da crítica sobre os discursos de apropriação local e empoderamento fundamentam-se precisamente na utilização destes termos como instrumentos de legitimação de políticas e mecanismos de disfarce das relações de poder que continuam permeando a relação entre os agentes internacionais e os nacionais/locais. Este argumento parece fazer ainda mais sentido quando observamos a ausência marcada de um conceito fundamental neste debate – o conceito de cidadania.

 

2. Cidadania e construção do Estado

Esta proeminência dada ao local através da promoção do empoderamento e de apropriação localnas reformas desenhadas internacionalmente visa afetar a relação Estado-sociedade e, fundamentalmente, a forma como os atores internacionais (não) podem/devem interferir nesta mesma relação, para que exista uma legitimidade local capaz de garantir a sustentabilidade das reformas promovidas (Ban Ki-moon, 2009; OECD, 2010; UNDP, 2012). A afirmação destes conceitos como matriz referencial na agenda internacional de (re)construção de Estados e da relação Estado-sociedade necessária parece, assim, substituir o conceito de cidadania, o significante, num quadro político liberal, das relações entre Estado-sociedade e fonte de legitimidade dos atores e projetos de governação (Migdal, 2004; Borges, 2014). De facto, a utilização destes conceitos parece silenciar a discussão em torno da condição de cidadania quando o objeto – o Estado – e a referência normativa das ações internacionais – a paz assente na democracia liberal e economia de mercado – parecem reforçar a sua pertinência.

A abordagem liberal e a sua proposta de paz democrática partem de uma relação constitutiva de identificação/reconhecimento entre Estado e sociedade, forjada pela demarcação simultaneamente territorial e social segundo a qual o Estado é reconhecido como agente de governação e os indivíduos são reconhecidos como sujeitos de direitos e parte da comunidade política representada pelo Estado (Migdal, 2001). Estado e cidadania aparecem, assim, como conceitos indissociáveis num quadro liberal e é esta indissociabilidade, mediada pelo regime de democracia representativa, que garante aos indivíduos um estatuto legal e político que, por sua vez, assegura o empoderamento individual e a concretização do autogoverno da comunidade política, expressos através dos direitos e da participação (Migdal, 2001; Chandler, 2012).

Não obstante as transformações que o conceito e a visão liberal de cidadania sofreram, a relação proposta entre cidadãos e o Estado democrático, fundamentada numa lógica contratual de direitos e deveres entre as partes, está na base do projeto de paz liberal que, desde o início da década de 1990, tem vindo a ser articulado em espaços de pós-guerra. As ações de consolidação da paz promoveram transições democráticas, esperando que a liberalização política criasse um contrato social capaz de reconciliar Estado e sociedade (Held, 1995; Paris, 2004; Pouligny, 2006). A cidadania implicava afirmar o poder dos indivíduos pelos direitos e limitar a ação dos Estados, considerados responsáveis pelos conflitos violentos. A agenda internacional de (re)construção de Estadosconservou este enunciado político, mas, na resposta que articulou, radicalizou uma abstração dos contextos locais já apontada aos esforços de democratização.

Ainda que a ênfase colocada no local tenha procurado inverter esta abstração trazendo a relação Estado-sociedade para o centro da discussão, este processo não se traduziu na recuperação da lógica contratual e não centrou o debate no conceito de cidadania (Eyben e Ladbury, 2006). Pelo contrário, as estratégias internacionais de promoção da apropriação local e empoderamento procuraram afetar a relação Estado­sociedade sem discutir o conceito de cidadania (Borges, 2014). Porém, estes conceitos e sua articulação têm implicações importantes para a condição da cidadania no pós-guerra. Ou seja, importa mapear esta ausência e compreender como os conceitos articulados em alternativa afetam o conceito e propõem um entendimento específico de cidadania.

De facto, apropriação local e empoderamento partilham uma agenda de capacitação dos sujeitos que, embora procure concretizar a ênfase local nas práticas de (re)construção de Estados, reforça a posição dos atores internacionais na legitimação do Estado e a dependência das dinâmicas políticas locais em relação às ações internacionais (Hughes e Pupavac, 2005; Hameiri, 2009; Chandler, 2010). Esta agenda de capacitação materializa-se, essencialmente, em espaços de participação criados com o apoio dos atores internacionais, onde os sujeitos e atores locais são convidados a participar (Cornwall, 2002). A apropriação local e o empoderamento ficam, assim, ligados a uma agenda internacional e dependentes de ações adicionais que garantam a capacitação e socialização dos sujeitos nos espaços e regras (Hughes e Pupavac, 2005; Pouligny, 2005; Chesterman, 2007; Pouligny, 2009). Nestes espaços, a aceitação das reformas gera empoderamento individual: ou seja, a participação que decorre nestes espaços é condicionada e instrumental.

Assim, se as ações de (re)construção de Estados reverteram a relação constitutiva de identificação/reconhecimento entre Estado e cidadãos, a ênfase no local, com empoderamento e apropriação induzidos e direcionados, aprofundou esta tendência, afirmando a internacionalização de processos de legitimação do Estado onde a cidadania surge fragilizada como conceito político central e dependente de uma capacitação prévia (Richmond e Franks, 2009; Chandler, 2010). Mais importante, a relação Estado-sociedade apresenta-se como uma adaptação necessária que decorre do entendimento do Estado como precondição ao projeto de paz liberal (Mac Ginty, 2010; Borges, 2014).

Esta suspensão da dimensão política do conceito, naturalizada na (re)construção de Estados, tem, no entanto, importantes implicações na condição de cidadania, principalmente na responsabilidade democrática (accountability) que o conceito implica (Chandler, 2010; 2012). Primeiro, e dada a internacionalização dos processos de legitimação do Estado, a responsabilidade democrática é direcionada para os atores internacionais. Segundo, e apesar do seu papel nos processos de governação, esta preponderância não parte da representação da comunidade política local, eliminando a responsabilidade democrática da relação entre os atores internacionais e as comunidades locais. Juntas, estas questões demonstram a redução significativa da capacidade por parte dos sujeitos e do espaço político disponível para materializar o princípio democrático de autogoverno.

Para Richmond e Franks (2009) a reversão do contrato social significa que a paz liberal perdeu a sua matriz contratual e, consequentemente, a sua ligação ao conceito de cidadania. Chandler afirma mesmo o abandono da relação Estado-sociedade, em detrimento dos imperativos de governação estabelecidos internacionalmente; é a expressão de um novo paradigma de intervenção internacional – a governação pós­liberal (Chandler, 2010). Esta relação, não sendo negada é, no entanto, suspensa e torna-se evidente uma visão de cidadania consequencial, onde a dimensão política depende de uma capacitação e socialização guiada pelos atores internacionais e de um contexto político específico. É neste contexto que o resgate da dimensão política, como autogoverno e soberania popular, se torna pertinente.

Porém, é necessário clarificar duas questões. Primeiro, há que considerar a relevância do conceito. Neste sentido, é importante relembrar que a condição de cidadania expressa a dialética de inclusão/exclusão, cuja configuração específica resulta das relações de poder, e tem pautado a história e evolução do conceito, sendo simultaneamente um instrumento discursivo legitimador na luta por direitos e transformação do conteúdo e práticas. A sua dimensão política, como expressão de autogoverno e soberania popular num quadro democrático, é também considerada um elemento fundamental e está presente em diversas abordagens (ver, por exemplo, Mouffe, 1993; Habermas, 1995; Beiner, 2003; ou Benhabib, 2007). Resgatar a dimensão política do conceito é ainda fundamental para a responsabilização dos agentes de governação nos espaços de consolidação da paz e para o questionamento sobre a própria definição do que é, ou deve ser, o local e a possibilidade de agência política dos sujeitos a partir de práticas internacionais.

Segundo, há que pensar sobre o modo como esse resgate pode acontecer. O debate em torno do ‘local’ tem evidenciado dinâmicas de poder e espaços políticos não considerados anteriormente e que são um ponto de partida para questionar a condição de cidadania. Richmond apelida estes espaços de pós-liberais, onde diferentes agências políticas se estão a afirmar como resistência às imposições da paz liberal (Richmond, 2009; 2011). Esta afirmação é, porém, feita em oposição à presença internacional, visibilizando apenas parte das dinâmicas políticas locais. Nas vozes críticas a este tipo de análise (ver Paris, 2009; Chandler, 2011; Hameiri, 2011; Paffenholz, 2011; Sending, 2011) ecoa o argumento de que esta oposição traz um contributo limitado à compreensão das dinâmicas de poder locais e reproduz uma imagem dos sujeitos locais como atores à margem das políticas promovidas pelos atores internacionais.

A oposição entre atores locais e internacionais é importante para compreender as assimetrias de poder em espaços pós-guerra. No entanto, não considera a forma como as ações internacionais interagem, afetam e reconfiguram as relações de poder que marcaram o período conflitual e que marcam também a construção da paz. Ou seja, apesar da sua contribuição ao assinalar as questões de poder, ela limita-se à oposição entre internacional e local. Por outro lado, não poderá ser o regresso à matriz liberal a resgatar esta dimensão política do conceito, como algumas reflexões parecem sugerir. Neste sentido, a nossa proposta reside no resgate das dinâmicas internas de poder como elemento adicional de análise, a fim de recuperar a dimensão política da cidadania e do empoderamento.

 

3. Poder, cidadania e paz

Um dos aspetos pouco explorados na agenda da reconstrução da paz e nas perspetivas dominantes de empoderamento e apropriação local, mas fundamental no âmbito da (re)construção do Estado, são as questões de poder no âmbito interno, e a forma como estas interagem com a intervenção dos atores internacionais. A relegação desta questão reflete, de um lado, a insistência numa perspetiva sobre a consolidação da paz direcionada para a resolução de problemas (problema-solving) que privilegia uma abordagem técnica dos conceitos acima discutidos (Bellamy, 2004) e onde outros debates existentes em relação a estes conceitos são ignorados. De outro lado, reflete um certo otimismo em relação ao potencial emancipador das forças locais no processo de consolidação da paz (Sending, 2011).

No primeiro caso, cabe destacar a existência de sérias críticas ao conceito de empoderamento e cidadania. A conceção liberal de cidadania, por exemplo, tem sido questionada por perspetivas que denunciam a sua captura por uma agenda neoliberal e por abordagens que, partindo do conceito de diferença e de um entendimento diverso sobre os espaços políticos em que a cidadania ocorre e se reconfigura, têm questionado as exclusões que este modelo impõe.2 Para estas abordagens, a perspetiva liberal, e a ideia de contrato social que lhe subjaz, escuda-se num estatuto universal que mascara relações de poder e condiciona o conteúdo de cidadania e o exercício efetivo das práticas e dos direitos associados.

A lógica contratual, por sua vez, também tem sido questionada. A ideia do enquadramento governativo em que o Estado é o ator de governação reconhecido e com o qual os cidadãos interagem democraticamente tem sido criticada pelo seu nível de abstração e consequente incapacidade de avistar outros elementos que afetam a interação entre cidadão e Estado. Esta crítica ganha especial relevância nos espaços em situação de pós-guerra, onde o processo de internacionalização do Estado e as relações de poder colocam em evidência a diversidade de atores que interagem no processo de governação. Pluralidade que, por outro lado, adensa os limites da responsabilidade democrática já evidenciados pela internacionalização do Estado e expõe, de forma evidente, os limites de um entendimento liberal para resgatar a sua dimensão política (Borges, 2014). Esta incapacidade de considerar a complexidade dos processos de governação significa, consequentemente, que uma perspetiva liberal sobre o conceito não permite discutir as relações de poder que (re)definem o conteúdo e as práticas associadas à cidadania.

Além disso, os limites da cidadania liberal promovida em contextos de pós-guerra foram devidamente evidenciados nos esforços de democratização que marcaram a primeira fase das ações de consolidação da paz. Estes foram reduzidos ao que Pouligny identificou como “gramática democrática”, i.e., a um conjunto de procedimentos formais (Pouligny, 2006: 239-240), o que resultou numa condição de cidadania procedimental que privilegiava os direitos à representatividade e participação, ainda que circunscritos à questão das eleições, articulando apenas de forma parcial a problemática dos direitos socioeconómicos e culturais e reduzindo assim o seu potencial inclusivo. Ou seja, a lógica evolutiva e cumulativa associada à história do conceito na matriz liberal não se traduziu na refundação de um contrato social capaz de promover uma articulação não violenta e democrática dos conflitos.

Críticas semelhantes surgem no âmbito do empoderamento. A ênfase na ideia de empoderamento como um processo participativo focado na promoção de capacidades é percebida por muitos autores como reducionista e problemática. Primeiro porque, ao enfatizar o processo, desvia-se a atenção dos resultados, ou simplesmente presume-se que mudando os processos (tornando-os mais ‘democráticos’), os resultados irão automaticamente mudar para melhor (Cleaver, 2001). Esta visão, assente no pressuposto do ator racional, não encontra sustentação na prática, e pode ser mesmo questionada na sua base teórica (Giddens, 1979; Friedmann, 1992; Cooke, 2001; Mohan, 2001). Segundo, porque a ênfase na participação prima pela neutralidade técnica do processo e desconsidera o poder que o antecede, ou seja, quem define qual o processo que vai ser participativo e qual a agenda a ser discutida.

Tais críticas chamam a atenção para as dinâmicas de poder que vão além deste como expressão das capacidades dos agentes (‘poder para’) e retomam a dimensão mais clássica do poder como dominação (‘poder sobre’), ou consideram mesmo a perspetiva mais difusa de poder (power everywhere). Exemplos da ênfase sobre poder como dominação incluem as críticas focadas no grau de influência dos atores internacionais sobre os locais e o seu controlo da agenda (ver Chandler, 2006; Duffield, 2007). Exemplos que marcam a visão de poder difuso incluem os debates sobre a resistência local e o hibridismo (Mac Ginty, 2011; Richmond, 2011). Neste caso, as forças locais são muitas vezes percebidas como emancipatórias e expressão de endogenia.

Ainda que consideremos ambas as perspetivas relevantes, por mostrarem questões de poder para além da sua conotação reduzida enquanto ‘capacidades’, entendemos que estas abordagens ainda não problematizam de forma suficiente a dimensão interna, a complexidade do local, o que por sua vez é fundamental para a melhor compreensão do empoderamento e da cidadania. Por um lado, consideramos que as expressões do ‘local’ não representam necessariamente uma forma de resistência à paz liberal. Pelo contrário, há várias formas de alinhamento entre agentes locais e externos para além das relações imediatas dos agentes oficiais com as elites locais, inclusive por meio de ONG e do setor privado. Por outro lado, a geometria de poder local, especialmente em contextos onde a tradição é importante, é extremamente complexa, heterogénea e não necessariamente emancipatória.3 Neste sentido, a tentativa de ‘impor’ o princípio de igualdade muitas vezes entra em choque com estruturas sociais onde, por exemplo, a mulher tem um papel subordinado ao homem, ou onde determinados tipos de hierarquias estão na base do funcionamento da sociedade, ou seja, determinados grupos se encontram em situação de subordinação, se não mesmo de opressão. E é precisamente levando em consideração tais aspetos que se torna necessário repensar a compreensão dos conceitos de empoderamento e cidadania.

No âmbito do empoderamento, o resgate de sua aceção radical por si só abre margem para a expansão da compreensão das dinâmicas de poder. Nesta perspetiva, predominante antes da década de 1990, o conceito está ligado ao processo de consciencialização do ser humano e o reconhecimento da sua situação de opressão (Freire, 1996). Este despertar perpassa a revisão das relações de poder entre os seres humanos, indo muito além da ótica de poder como capacidades, mas incluindo o reconhecimento de estruturas de poder como opressão e ecoando, portanto, os debates da teoria crítica e sua ênfase na emancipação (ver também Booth, 1991; Bauman, 2000; Wyn Jones, 2005). A visão radical do empoderamento junta, assim, o potencial da agência dos indivíduos à dimensão estrutural que cerceia as suas ações, estabelecendo uma relação de influência mútua (Giddens, 1979).

Apesar de expandir o entendimento de poder para além de ‘capacidades’, tal aceção também apresenta limitações, uma vez que deixa em aberto a discussão sobre o seu aspeto teleológico – haverá um ‘fim’ do empoderamento? – bem como a dúvida quanto à possibilidade de um empoderamento pleno e simultâneo de todos os sujeitos. Contudo, ao trazer à tona problemas estruturais, amplia os níveis de análise e permite discutir a dimensão dialética do próprio conceito de poder. Assim, mais do que pensar no empoderamento enquanto expansão de capacidades, principalmente em cenários de pós-guerra imediato, há que se considerar quais as dinâmicas de poder locais que facilitam/obstruem o empoderamento de determinados grupos em relação a outros e de que forma esta compreensão de poder e empoderamento se traduz na (re)definição da condição de cidadania. Neste sentido, o empoderamento pode ser entendido como um fenómeno dinâmico, um processo constante, mas não um processo restrito a procedimentos estanques, e sim um processo dialético em que o poder é constantemente revisto e questionado, particularmente quando os níveis de assimetria são mais significativos.

É importante notar que ao relacionar as questões de poder, e especificamente o conceito de empoderamento, com a (re)definição do conceito de cidadania, este artigo partilha com as perspetivas mais críticas a necessidade de resgatar o conceito de uma matriz utilitária. Deste modo, entende a cidadania como uma condição que assenta numa dialética de inclusão/exclusão materializada em diferentes níveis, mas contestada a partir das margens excluídas, estável mas sujeita a mudança de acordo com a configuração das relações de poder existentes e que a ênfase no empoderamento mostra (Purvis e Hunt, 1999). Esta visão reconhece o empoderamento dos sujeitos – a afirmação da sua agência política – como elemento de mudança e transformação dos elementos que, por sua vez, definem a condição de cidadania – sujeito, espaço, expressões e práticas de cidadania.

Assim, o empoderamento dos sujeitos não pode apenas ser compreendido como resultado da sua inclusão na condição vigente de cidadania. Pelo contrário, a afirmação política dos sujeitos desafia e/ou transforma os limites de inclusão/exclusão e, neste sentido, o empoderamento é indispensável para um entendimento de cidadania em que a dimensão política é resgatada. Ou seja, o empoderamento dos sujeitos não ocorre apenas através dos direitos associados à cidadania e à capacidade dos indivíduos de exercer e usufruir desses direitos: o empoderamento resulta de práticas que procuram (re)definir e (re)articular a condição de cidadania.

É nesta matriz que ganha centralidade a afirmação de novos espaços de participação, onde os sujeitos podem afirmar a sua agência política. Cornwall (2002) afirma que a abertura de espaços de participação outrora fechados resulta de um esforço simultâneo de posicionamento dos sujeitos nos novos espaços e de reposicionamento em espaços já estabelecidos. Este reposicionamento implica, precisamente, o reconhecimento de uma “configuração complexa de atores e espaços políticos dentro e para lá da dimensão do Estado-nação” (Cornwall, 2002: 1). A autora distingue os espaços de participação por convite (invited spaces), dinamizados essencialmente por atores externos com recursos e com uma matriz de participação definida, dos espaços de participação reivindicados (popular spaces), que resultam essencialmente de uma mobilização dos sujeitos (Cornwall, 2002). Transpondo esta divisão para o cenário de reconstrução da paz, observa-se que as ações internacionais se concentram na criação de espaços por convite, com um tipo de participação predefinida e que expressa uma agenda de empoderamento como capacitação. Este enfoque não exprime a natureza dinâmica da participação e do empoderamento, pelo que o potencial político transformador não é contemplado.

O enfoque nas dinâmicas de poder permite, no entanto, compreender esta questão do empoderamento e o seu eventual impacto na condição de cidadania para além dos espaços de participação criados pelos atores internacionais. Neste sentido, devemos enfatizar dois aspetos, mencionados por Cornwall (2002): primeiro, as fronteiras entre os diferentes espaços não são estanques e podem alterar-se; e segundo, a manutenção do status quo ou o seu questionamento podem ocorrer nos dois espaços, dependendo das dinâmicas de poder estabelecidas.

Ou seja, apesar de os atores internacionais criarem espaços de participação em que existe um guião de participação e um entendimento de empoderamento como capacitação, e por isso afastado das dinâmicas de poder, estes espaços podem resultar em dinâmicas de contestação e reivindicação não antecipadas, sendo, desta forma, uma afirmação importante. Por outro lado, é fundamental considerarmos os espaços populares de participação, criados através de reivindicação, como espaços políticos centrais, mas não como necessariamente desafiadores ou transformadores das fronteiras de inclusão/exclusão associadas à condição de cidadania. Os dois espaços poderão ser marcados por dissidência, resistência, colaboração ou compromisso. O que importa primeiramente captar é a existência destas possibilidades em oposição a uma ideia fechada (articulação técnica e procedimental com objetivos e contornos predefinidos) sobre empoderamento e o seu impacto na condição de cidadania.

 

Conclusões

A reflexão apresentada aponta para o potencial analítico da junção dos conceitos de cidadania e empoderamento na análise da construção da paz. Primeiramente, ao trazer a cidadania para o debate, voltamos a atenção para os espaços locais onde a governação, enquanto projeto e processo, se materializa. Este enfoque tem duas implicações: primeiro, afirma a necessidade de resgatar o conceito de uma narrativa não política que está latente nos discursos de muitos atores internacionais, e segundo, abre caminho para a definição de uma perspetiva analítica capaz de interagir com as dinâmicas locais de poder e a relação dialética entre inclusão/exclusão inerente ao conceito. Estas duas questões são fundamentais para uma reflexão que problematize a relação da cidadania (práticas atuais e futuras) com a consolidação da paz, particularmente no que se refere à sua problemática de inclusão/exclusão e à forma como estas questões impactam possíveis construções de paz.

Segundo, ao reconsiderarmos a conceção de empoderamento, resgatamos as questões do poder, reconhecendo o papel das diferenças e assimetrias existentes no nível local, e indo portanto, além do poder como ‘capacidade’ e da dicotomia entre local-internacional. Neste sentido, e apesar de reconhecer que o poder é em grande medida disperso (power everywhere), reforçamos a ideia de que assimetrias existem e são importantes porque influenciam comportamentos e moldam espaços de representação. Aliás, é precisamente aqui que reside a utilidade do empoderamento enquanto conceito na compreensão das dinâmicas da cidadania. Neste sentido, o exercício da cidadania (seja em espaços convidados ou reivindicados) torna-se um mecanismo com base endógena de contestação de poder – e não um mecanismo dirigido externamente e pautado pela construção de capacidades. Isto não significa que esta dimensão endógena não possa ser influenciada de alguma forma – direta ou indiretamente – por atores externos, mas sim que ela cria uma margem para se pensar qualquer ação neste sentido como fruto de dinâmicas de poder entre os agentes a não como algo unidirecional e necessariamente pré­formatado. Ou seja, a relevância do empoderamento para a cidadania perpassa o reconhecimento das assimetrias de poder existentes. O ponto central é que estes espaços não refletem necessariamente controlo ou empoderamento, mas variam em potencial.

Por fim, a associação dos dois conceitos e dos debates e transformações que os têm marcado conferem à cidadania um potencial expandido, como instrumento reivindicatório e de exigência democrática, uma vez que o resgate da condição política que promove pode traduzir-se na reafirmação da responsabilidade democrática, o que, em contextos de pós-guerra, se revela como alternativa para a realização de contestações que antes se davam por meio das armas e como afirmação perante diversos agentes de governação. A ‘virada local’ permite explorar estas questões e obriga-nos a repensar a construção da paz a partir destes espaços.

 

Referências

Ban Ki-moon (2009), Report of the Secretary-General on Peacebuilding in the Immediate aftermath of Conflict. New York: UN, A/63/881–S/2009/304.         [ Links ]

Batliwala, Srilatha (2007), “Taking the Power out of Empowerment - An Experiential account”, Development in practice, 17(4-5), 557-565.         [ Links ]

Bauman, Zygmunt (2000), Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press.         [ Links ]

Beiner, Ronald (2003), Liberalism, Nationalism, Citizenship. Essays on the Problem of Political Community. Vancouver: UBC Press.         [ Links ]

Bellamy, Alex (2004), “The Next Stage in Peace Operations Theory?”, International Peacekeeping, 11(1), 17-38.         [ Links ]

Benhabib, Seyla (2007), “Twilight of Sovereignty or the Emergence of Cosmopolitan Norms? Rethinking Citizenship in Volatile Times”, Citizenship Studies, 11(1), 19-36.         [ Links ]

Bickerton, Christopher (2007), “State-Building: Exporting State-Failure”, in Christopher Bickerton; Philip Cunliffe; Alexander Gourevitch (orgs.), Politics without Sovereignty: a critique of Contemporary International Relations. London: University College London Press, 93-111.         [ Links ]

Booth, Ken (1991), “Security and Emancipation”, Review of International Studies, 17(4), 313-326.         [ Links ]

Borges, Marisa (2014), “Citizenship and Post-armed Conflict Statebuilding: Re­engaging with Power and Politics in Spaces of Intervention. The Illustrative Case of Guatemala”. Tese de Doutoramento em Relações Internacionais, Política Internacional e Resolução de Conflitos, Universidade de Coimbra, Portugal.         [ Links ]

Brahimi, Lakhadar (2007), “State Building in Crisis and Post-Conflict Countries”, no 7th Global Forum on Reinventing Government, Building Trust in Government. Viena, Áustria, 26-29 junho.         [ Links ]

Call, Charles T.; Cousens, Elizabeth M. (2008), “Ending Wars and Building Peace: International Responses to War-Torn Societies”, International Studies Perspectives, 9(1), 1-21.         [ Links ]

Chambers, Robert (1983), Rural Development. Putting the Last First. London: Pearson.         [ Links ]

Chandler, David (2005), “Introduction: Peace without Politics”, International Peacekeeping, 12(3), 307-321.         [ Links ]

Chandler, David (2006), Empire in Denial. The Politics of State-building. London: Pluto Press.         [ Links ]

Chandler, David (2010), International Statebuilding: The Rise of Post-Liberal Governance. Abingdon: Routledge.         [ Links ]

Chandler, David (2011), “The Uncritical Critique of ‘Liberal Peace’”, Review of International Studies, 36, 37-155.         [ Links ]

Chandler, David (2012), “The Limits of Post-Territorial Political Community”, in Eva Erman; Ludvig Beckman (orgs.), Territories of Citizenship. New York: Palgrave Macmillan, 100-122.         [ Links ]

Chesterman, Simon (2007), “Ownership in Theory and in Practice: Transfer of Authority in UN Statebuilding Operations”, Journal of Intervention and Statebuilding, 1(1), 3-26.

Cleaver, Frances (2001), “Institutions, Agency and the Limitations of Participatory Approaches to Development”, in Bill Cooke; Uma Kothari (orgs.), Participation. The New Tyranny? London: Zed Books, 36-55.         [ Links ]

Cooke, Bill (2001), “The Social Psychological Limits of Participation?”, in Bill Cooke; Uma Kothari (orgs.), Participation. The New Tyranny? London: Zed Books, 102-121.         [ Links ]

Cornwall, Andrea (2002), “Making Spaces, Changing Places: Situating Participation in Development”, Institute of Development Studies Working Paper, 170. Brighton.         [ Links ]

Cornwall, Andrea; Brock, Karen (2005), “Beyond Buzzwords, ‘Poverty reduction’, ‘Participation’ and ‘Empowerment’ in Development Policy. Overarching Concerns”, Programme Paper, 10. United Nations Research Institute for Social Development.

Donais, Timothy (2009), “Empowerment or Imposition? Dilemmas of Local Ownership in Post-Conflict Peacebuilding Processes”, Peace & Change, 34(1), 3-26.         [ Links ]

Donais, Timothy (2012), Peacebuilding and Local Ownership. Post-Conflict Consensus-Building. Conflict, Development and Peacebuilding. London: Routledge.         [ Links ]

Duffield, Mark (2001), Global Governance and the New Wars. The Merging of Development and Security. London: Zed Books.         [ Links ]

Duffield, Mark (2007), Development, Security and Unending War. Governing the World of Peoples. Cambridge: Polity Press.         [ Links ]

Eyben, Rosalind; Kabeer, Naila; Cornwall, Andrea (2008), “Conceptualising Empowerment and the Implications for Pro Poor Growth”, DAC Poverty Network. Consultado a 18.05.2010, em http://www.ids.ac.uk/index.cfm?objectid=3971D3FA-E0D0-E6A1-174C0169D5AF39AE.         [ Links ]

Eyben, Rosalind; Ladbury, Sarah (2006), “Building Effective States: Taking a Citizen’s Perspective”. Brighton: Development Research Centre on Citizenship, Participation and Accountability.         [ Links ]

Francis, Diana (2010), From Pacification to Peacebuilding. A Call to Global Transformation. London: Pluto Press.         [ Links ]

Freire, Paulo (1996), Pedagogy of the Oppressed. London: Penguin Books.         [ Links ]

FRIDE (2006), “Empowerment. Development Backgrounder”. Consultado a 17.01.2013, em http://www.fride.org/publication/20/empowerment.

Friedmann, John (1992), Empowerment: The Politics of Alternative Development. Oxford: Blackwell.         [ Links ]

Fukuyama, Francis (2004), State-building. Governance and World Order in the Twenty-First Century. London: Profile Books.         [ Links ]

Ghani, Ashraf; Lockhart, Clare (2008), Fixing Failed States: A Framework for Rebuilding a Fractured World. Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Giddens, Anthony (1979), Central Problems in Social Theory. Action, Structure and Contradiction in Social Analysis. Basingstoke: Macmillan.         [ Links ]

Habermas, Jürgen (1995), “Citizenship and National Identity. Some Reflections on the Future of Europe”, in Ronald Beiner (org.), Theorizing Citizenship. Albany: State University of New York Press, 255-282.         [ Links ]

Hameiri, Shahar (2009), “State Building or Crisis Management? A Critical Analysis of the Social and Political Implications of the Regional Assistance Mission to Solomon Islands”, Third World Quarterly, 30(1), 35-52.         [ Links ]

Hameiri, Shahar (2011), “A Reality Check for the Critique of the Liberal Peace”, in Susanna Campbell; David Chandler; Meera Sarabatnam (orgs.), A Liberal Peace? The Problems and Practices of Peacebuilding. London: Zed Books, 191-208.         [ Links ]

Held, David (1995), Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance. Stanford: Stanford University Press.         [ Links ]

Hughes, Caroline; Pupavac, Vanessa (2005), “Framing Post-conflict Societies: International Pathologisation of Cambodia and the Post-Yugoslav States”, Third World Quarterly, 26(6), 873-889.         [ Links ]

Kabeer, Naila (2001), “Resources, Agency, Achievements: Reflections on the Measurement of Women’s Empowerment”, in SIDA (org.), Discussing Women’s Empowerment: Theory and Practice. Stockholm: SIDA, 17-57.         [ Links ]

Krause, Keith; Jütersonke, Oliver (2006), “Peace, Security and Development in Post-Conflict Environments”, Security Dialogue, 36(4), 447-462.         [ Links ]

Lederach, John Paul (1997), Building Peace. Sustainable Reconciliation in Divided Societies. Washington, DC: United States Institute of Peace Press.         [ Links ]

Luttrell, Cecilia; Quiroz, Sitna; Scrutton, Claire; Bird, Kate (2009), “Understanding and Operationalising Empowerment”, Working Paper 308, Overseas Development. Consultado a 17.01.2013, em http://www.odi.org/publications/4525-empowerment-understanding-operationalising-working-paper.

Mac Ginty, Roger (2010), “Gilding the Lily? International Support for Indigenous and Traditional Peacebuilding”, in Oliver P. Richmond (org.), Peacebuilding: Critical Developments and Perspectives. London: Palgrave, 307-326.         [ Links ]

Mac Ginty, Roger (2011), “Hybrid Peace: How Does Hybrid Peace Come About”, in S. Campbell; D. Chandler; M. Sarabatnam (orgs.), A Liberal Peace? The Problems and Practices of Peacebuilding. London: Zed Books, 763-783.         [ Links ]

Mac Ginty, Roger; Richmond, Oliver P. (2013), “The Local Turn in Peace Building: a Critical Agenda for Peace”, Third World Quarterly, 34(5), 763-783.         [ Links ]

Migdal, Joel S. (2001), State in Society: Studying How States and Societies Transform and Constitute One Another. Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

Migdal, Joel S. (2004), “Mental Maps and Virtual Checkpoints: Struggles to Construct and Maintain State and Social Boundaries”, in Joel S. Migdal (org.), Boundaries and Belonging: States and Societies in the Struggle to Shape Identities and Local Practices. Cambridge: Cambridge University Press, 3-26.         [ Links ]

Mohan, Giles (2001), “Beyond Participation: Strategies for Deeper Empowerment”, in Bill Cooke; Uma Kothari (orgs.), Participation. The New Tyranny? London: Zed Books, 153-167.         [ Links ]

Mouffe, Chantal (1993), The Return of the Political. London: Verso.         [ Links ]

Narayan, Deepa (org.) (2002), Empowerment and Poverty Reduction. A Sourcebook. Washington DC: The World Bank.         [ Links ]

Narten, Jens (2009), “Dilemmas of Promoting ‘Local Ownership’: The Case of Postwar Kosovo”, in Roland Paris; Timothy D.Sisk (orgs.), The Dilemmas of Statebuilding: Confronting the Contradictions of Post-War Peace Operations. Abingdon: Routledge, 252-283.         [ Links ]

OECD – The Organisation for Economic Co-operation and Development (2008), “Concepts and Dilemmas of State Building in Fragile Situations: from Fragility to Resilience”. OECD/DAC DISCUSSION PAPER.

OECD – The Organisation for Economic Co-operation and Development (2010), “Do No Harm: International Support for Statebuilding”. Paris: OECD.         [ Links ]

Paffenholz, Thania (2011), “Civil Society beyond the Liberal Peace and its Critique”, in Susanna Campbell; David Chandler; Meera Sarabatnam (orgs.), A Liberal Peace? The Problems and Practices of Peacebuilding. London: Zed Books, 138-157.         [ Links ]

Paris, Roland (2004), At War’s End: Building Peace after Civil Conflict. Cambridge Cambridge University Press.         [ Links ]

Paris, Roland (2009), “Does Liberal Peacebuilding Have a Future?”, in Edward Newman; Roland Paris; Oliver P. Richmond (orgs.), New Perspectives on Liberal Peacebuilding. Tokyo: United Nations University Press, 97-109.         [ Links ]

Paris, Roland; Sisk, Timothy D. (2009), “Introduction: Understanding the Contradictions of Post-war Statebuilding”, in Roland Paris; Timothy D. Sisk (orgs.), The Dilemmas of Statebuilding: Confronting the Contradictions of Post-War Peace Operations. Abingdon: Routledge, 1-20.         [ Links ]

Pieterse, Jan Nederveen (2010), Development Theory. London: Sage [2.ª ed.         [ Links ]].

Pouligny, Béatrice (2005), “Civil Society and Post-Conflict Peacebuilding: Ambiguities of International Programmes Aimed at Building ‘New’ Societies”, Security Dialogue, 36(4), 495-510.         [ Links ]

Pouligny, Béatrice (2006), Peace Operations Seen from Below: UN Missions and Local People. Bloomfield: Kumarian Press.         [ Links ]

Pouligny, Béatrice (2009), “Supporting Local Ownership in Humanitarian Action”. Global Public Policy Institute - Humanitarian Policy Paper Series. Berlin: AZ Druck und Datentechnik.         [ Links ]

Purvis, Trevor; Hunt, Alan (1999), “Identity versus Citizenship: Transformations in the Discourses and Practices of Citizenship”, Social & Legal Studies, 8(4), 457-482.         [ Links ]

Ramsbotham, Oliver; Woodhouse, Tom; Miall, Hugh (2011), Contemporary Conflict Resolution. Cambridge: Polity Press [3.ª ed.         [ Links ]].

Reich, Hannah (2006) “‘Local Ownership’ in Conflict Transformation Projects. Partnership, Participation or Patronage?”. Berlin: Bergof Research Center for Constructive Conflict Management Occasional Paper.         [ Links ]

Richmond, Oliver P. (2004), “The Globalization of Responses to Conflict and the Peacebuilding Consensus”, Cooperation and Conflict, 39(2), 129-150.         [ Links ]

Richmond, Oliver P. (2008), Peace in International Relations. London: Routledge.         [ Links ]

Richmond, Oliver P. (2009), “A Post-liberal Peace: Eirenism and the Everyday”, Review of International Studies, 35(3), 557-580.         [ Links ]

Richmond, Oliver P. (2011), A Post-Liberal Peace. London: Routledge.         [ Links ]

Richmond, Oliver P. (2012), “Beyond Local Ownership in the Architecture of International Peacebuilding”, Ethnopolitics, 11(4), 354-375.         [ Links ]

Richmond, Oliver P.; Franks, Jason (2009), Liberal Peace Transitions: Between Statebuilding and Peacebuilding. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd.         [ Links ]

Rowlands, Jo (1997), Questioning Empowerment. Working with Women in Honduras. Oxford: Oxfam.         [ Links ]

Scrutton, Claire; Luttrell, Cecilia (2007), “The Definition and Operationalisation of Empowerment in Different Development Agencies”. Consultado a 28.06.2010, em www.poverty-wellbeing.net.

Sending, Ole Jacob (2011), “The Effects of Peacebuilding: Sovereignty, Patronage and Power”, in Susanna Campbell; David Chandler; Meera Sarabatnam (orgs.), A Liberal Peace? The Problems and Practices of Peacebuilding. London: Zed Books, 55-68.         [ Links ]

UN-PSO – United Nations Peace Support Operations (2011), “From Rhetoric to Practice: Operationalizing National Ownership in Post-Conflict Peacebuilding”. Workshop Report. UN­-PSO, New York.

UNDP – United Nations Development Programme (2010), “Human Development Report 2010. The Real Wealth of Nations: Pathways to Human Development”. New York: UNDP.

UNDP – United Nations Development Programme (2012), Governance for Peace: Securing the Social Contract. New York: UNDP.         [ Links ]

WB – World Bank (2011), Conflict, Security and Development. Washington: World Bank.         [ Links ]

Wyn Jones, Richard (2005), “On Emancipation: Necessity, Capacity, and Concrete Utopias”, in Ken Booth (org.), Critical Security Studies and World Politics. Boulder: Lynne Rienner, 1-25.         [ Links ]

 

Artigo recebido a 02.07.2014 Aprovado para publicação a 25.09.2014

 

NOTAS

1De forma geral, a (re)construção de Estados refere-se à (re)construção das instituições governamentais a fim de resgatar a ‘estatalidade’ (stateness) dos Estados (Fukuyama, 2004). Especificamente, e no que diz respeito aos contextos de consolidação da paz, o conceito refere-se à recriação de instituições viáveis, capazes de garantir a segurança e as condições institucionais para uma paz sustentável e duradoura (Brahimi, 2007).

2 Por exemplo, as reflexões pós-nacionais, as análises feministas ou as propostas da democracia radical apresentam uma crítica ao modelo liberal de cidadania a partir da universalidade que propõe (na qual se fundamenta a igualdade que defende) e a relação com o espaço nacional do Estado-nação.

3Sem subestimar a complexidade do termo, no contexto deste artigo entende-se ‘tradição’ como o conjunto de práticas e costumes informais que existem em diversas sociedades e que muitas vezes se encontram em oposição aos pressupostos do Estado moderno, base das práticas de (re)construção de Estados.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons