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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.106 Coimbra maio 2015
RECENSÕES
Capela, José (org.) (2014), Delfim José de Oliveira. Diário de viagem da colónia militar de Lisboa a Tete, 1859-1860*
José Teixeira
Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Av. Forças Armadas, Ed. ISCTE-IUL – 1649-026 Lisboa, Portugal jpimteix@gmail.com
Delfim José de Oliveira. Diário de viagem da colónia militar de Lisboa a Tete, 1859-1860
José Capela. Capela, José (org.) (2014), Delfim José de Oliveira. Diário de viagem da colónia militar de Lisboa a Tete, 1859-1860. Porto: Húmus, 125 pp.
Este é o último trabalho publicado em vida por José Capela, recentemente falecido, historiador que dedicou a sua investigação às relações entre a sociedade portuguesa e as sociedades do actual Moçambique, em particular no século xix, e cuja profunda imbrincação foi desvendando através da sua abordagem pioneira ao longo de quatro décadas de publicações.
Este Delfim José de Oliveira. Diário da viagem da colónia militar de Lisboa a Tete, 1859-1860 (Húmus, 2014), uma narrativa cuja publicação Capela prefaciou, anotou e organizou, sendo mais uma das suas múltiplas achegas para um maior conhecimento da sociedade zambeziana, é também sintomático do eixo de abordagem do seu organizador, através do qual o autor sempre se recusou a ser apenas um historiador de sínteses, valorizando a disponibilização de materiais historiográficos em primeira mão, como este, de molde a ilustrar as perspectivas assumidas e, também, potenciar as reflexões alheias.
Neste caso trata-se do diário de uma expedição em 1859, destinada à constituição de uma “colónia militar” perto de Tete, elaborado pelo militar Delfim de Oliveira (1821-1899), seu comandante e então já veterano em terras de Moçambique, para as quais havia sido já destacado em missões desde 1842 até 1854, tendo sido governador militar de Tete, e assim conhecedor da região específica do projecto em causa. E talvez por isso conhecedor a priori das enormes dificuldades, senão mesmo impossibilidade, de tais propósitos, como o demonstra o seu desiludido início, tentando eximir-se ao comando de que fora incumbido, por dele antever “pouca ou nenhuma glória”.
Trata-se de um relato valorizado pelas capacidades de observação, e apetência intelectual, do seu autor. Algo que bem mais tarde lhe implicou publicações, já após a sua reforma, como uma memória descritiva da sua experiência moçambicana (A Província de Moçambique e o Bonga, 1879), e uma memória de erudição local, típica de época (Notícias de Penella: apontamentos históricos e archeologicos, 1884). Apontamento a realçar, pois denotando uma vontade reflexiva que já o acompanhava ao longo da expedição de 1859-1860, e que em muito enriquece o conteúdo desta descrição.
Esta expedição demonstra a existência nessa época do projecto do governo liberal português de dinamizar o inexistente sistema colonial através dessa tipologia organizacional, as “colónias militares”, constituída pela colocação de uma companhia militar, no caso a “Companhia de Caçadores de Moçambique”. Mas à qual se associavam, para o efeito, um núcleo de degredados, prisioneiros e soldadesca punida, nisso também se integrando, ainda que em número desequilibrado, um universo feminino, constituído por cônjuges dos enviados e ainda condenadas, no óbvio intuito de fomentar um povoamento “branco”.
Este era o meio, segundo Capela, para obstar à desarticulação da actividade económica portuguesa no território, sucedida com a radical redução do tráfico transatlântico de escravos acontecida na época, fundamentalmente por pressão britânica. E assim intentando suprir a efectiva inexistência de uma presença portuguesa na região, em tudo o que ultrapassasse a persistência de alguma nomenclatura oriunda do regime dos “Prazos da Zambézia”, explicitamente desligada em termos políticos, culturais e económicos da putativa metrópole.
As “colónias militares”, projectadas sob Sá da Bandeira, haviam sido encetadas em Moçambique em 1852 no arquipélago de Bazaruto, e logo depois em 1855 na baía de Pemba, incluindo concursos públicos em Portugal apelando a colonos, nisso tendo repercussão maior, um verdadeiro sucesso popular, às possibilidades de transporte e de apoio à sua instalação existentes. Mas o facto é que essas tentativas falharam quase de imediato, explicitando a falta de preparação dos projectos, assentes em desinformação sobre as reais condições, sanitárias e de possibilidades de actividade económica por parte dos colonos deslocados.
Já a descrição desta terceira expedição, longa e infrutífera, possibilita uma visão ímpar da real dissolução da putativa administração portuguesa de então, restrita à Ilha de Moçambique e a desagregados núcleos comerciais históricos, e prisioneira das práticas de corrupção e inércia dos seus responsáveis, na sua maioria verdadeiramente desligados de qualquer ideal de “interesse nacional”. Algo que não se deduz do relato de Delfim de Oliveira, pois é o próprio que o explicita, ainda que com a contenção própria ao dignitário militar. Como o explicita a sua sobriedade na nota referindo os longos meses que as centenas de participantes aguardaram na empobrecida capital, a Ilha de Moçambique, pela chegada da mulher do governador de Tete, a qual a expedição deveria escoltar até ao seu destino. Breve referência que denota as dificuldades de promover, no terreno, os projectos delineados em Portugal. E o sublinham as suas referências, desgostosas, à continuidade da articulação entre as frágeis administrações portuguesas e os eixos de tráfico de escravos ainda resistentes.
Vantagem maior deste “Diário de viagem” é a descrição, com alguma minúcia, das realidades locais. Disso exemplo são as páginas que narram a longa ascensão do Zambeze, entre Quelimane e Tete: mapeando as localidades existentes, as instituições político-económicas, o tipo de interacções possíveis, a geoestratégia proposta – questão na qual se sobrepõe o comandante/governador –, a ecologia encontrada. É um manancial de informações para os historiadores e afins, mas também um documento precioso para qualquer interessado na história do país, em particular a da bacia zambeziana.
Finalmente, já no almejado destino, há o desenlace, como uma difícil expedição, agregando tantas esperanças e corroendo tantos meios, económicos e humanos, que se tornou impossível não só por dificuldades incontornáveis e desadequação de saberes, mas pelos entendimentos diversos dos parcos membros da administração local ali sediados. Sublinhando assim a irrealidade de tantos projectos “africanos” do esforço colonial português, pois desajustados das perspectivas e interesses dos seus enviados para os locais.
NOTAS
* Por opção do autor o presente texto não observa as regras do Acordo Ortográfico de 1990.