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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.109 Coimbra maio 2016
https://doi.org/10.4000/rccs.6311
ARTIGO
Spotify e os piratas: Em busca de uma “jukebox celestial” para a diversidade cultural
Spotify and the Pirates: In Search of a “Celestial Jukebox” for Cultural Diversity
Spotify et les pirates: À la recherche d’un “jukebox céleste” pour la diversité culturelle
Miguel Afonso Caetano
Escola de Sociologia e Políticas Públicas, ISCTE Instituto Universitário de Lisboa Avenida das Forças Armadas, 1649 026 Lisboa, Portugal miguel.a.caetano@gmail.com
RESUMO
Apontados frequentemente como a solução definitiva para o problema mundial da “pirataria online”, os serviços de streaming têm vindo a substituir as redes e os sites de partilha de ficheiros nas preferências dos utilizadores relativamente ao acesso online a música. Um exemplo de crescente popularidade é o serviço da empresa sueca Spotify. Embora a Spotify cite vários estudos demonstrando um alegado impacto positivo do seu serviço na redução da “pirataria online”, este artigo visa demonstrar que só muito dificilmente as plataformas comerciais de streaming apoiadas pela indústria de produção de obras culturais poderão ser capazes de proporcionar uma oferta centrada na e democratização do acesso à cultura. Para tal, irá proceder se a uma análise comparativa entre o serviço da Spotify e uma comunidade privada de partilha de ficheiros baseada numa experiência pessoal de utilização de ambos os serviços a partir de um país periférico da União Europeia como Portugal.
Palavras-chave: direitos de autor, pirataria digital, sociologia da música, Spotify, streaming de áudio
ABSTRACT
Often seen as the ultimate solution for the global problem of “online piracy”, streaming services have been replacing file sharing networks and sites as the preferred means of accessing online music. One example of their increasing popularity is the service provided by the Swedish company Spotify. Even though Spotify quotes several studies showing the alleged positive impact of its service in terms of reducing “online music piracy”, this paper aims to highlight the main obstacles facing an offer based on the democratization of access to culture presented by commercial streaming services supported by the culture industries. It draws on a comparative analysis of Spotify and a private file sharing community (a private BitTorrent tracker), based on the experience of using both services by an individual living in a peripheral country in the European Union like in Portugal.
Keywords: audio streaming, author rights, digital piracy, sociology of music, Spotify
RESUMÉ
Souvent mentionné comme la solution définitive au problème du “piratage online”, les services de streaming tendent peu à peu à remplacer les réseaux et les sites de partage de fichiers dans la préférence des utilisateurs en matière d’accès online à la musique. Un exemple de croissante popularité en est le service de l’entreprise suédoise Spotify. Bien que Spotify cite diverses études démontrant un soi disant impact positif de son service sur la réduction du “piratage online”, cet article a pour but de démontrer que ce n’est que très difficilement que les plateformes commerciales de streaming, soutenues par l’industrie de production d’œuvres culturelles, seront à même de produire une offre centrée sur la démocratisation de l’accès à la culture. Pour ce faire, nous procèderons à une analyse comparative entre le service de Spotify et une communauté privée de partage de fichiers reposant sur une expérience personnelle d’utilisation des deux services à partir d’un pays périphérique de l’Union Européenne comme le Portugal.
Mots-clés: droits d’auteur, piratage numérique, sociologie de la musique, Spotify, streaming audio
Introdução: A Internet enquanto sistema de superdistribuição de cópias
Com o aumento da relevância económica da informação e do conhecimento nas principais economias mundiais ao longo das últimas três décadas, tem se assistido à multiplicação de tentativas de transformação dos bens informacionais em meras mercadorias apropriáveis por privados, através da expansão temporal e sectorial das leis de propriedade intelectual e do controlo tecnológico do acesso a eles. Tal processo tem levado autores como James Boyle a referir se à existência de um “segundo movimento de emparcelamento”. Na sequência do primeiro movimento de vedação das terras comuns (“baldios”) iniciado na Inglaterra do século xvi que privou a maioria da população de uma parte substancial dos seus meios de subsistência, até então obtidos diretamente a partir do cultivo em campos abertos, este segundo emparcelamento visaria hoje em dia os “comuns intangíveis da mente” (Boyle, 2003).
Na medida em que as redes de partilha de ficheiros (peer to peer – P2P)1 via Internet introduziram pela primeira vez na história da humanidade a possibilidade de cada utilizador copiar em simultâneo informação de milhões de outros utilizadores sem ser necessário saber quem eles são ou onde se encontram, a sua irrupção no final do século passado foi numa fase inicial encarada como o grão de areia na engrenagem deste processo de apropriação privada da informação.
Mais de década e meia passada, as estatísticas recolhidas pelas empresas de monitorização de tráfego da Internet apontam para uma progressiva diminuição da popularidade do P2P face a outros tipos de protocolo de rede – HTTP – e aplicações de Internet – entretenimento em tempo real (Cisco, 2015; Sandvine, 2014). Embora esta tendência seja maioritariamente um resultado direto da difusão da banda larga móvel – permitindo assim que o utilizador aceda ao conteúdo pretendido a partir de um smartphone ou tablet, na rua, no metro, no autocarro ou no trabalho –, a recente adoção generalizada dos serviços de streaming como Netflix, Youtube ou Spotify um pouco por todo o mundo não pode ser adequadamente compreendida sem ter igualmente em consideração a ofensiva jurídica travada a nível global com recurso a leis e outras medidas regulamentares de proteção da propriedade intelectual contra quem partilha, programa software P2P e fornece acesso à Internet.
Este artigo, inserido num trabalho de pesquisa mais amplo,2 destina se a apresentar um estudo de caso do serviço de streaming da empresa sueca Spotify baseado na experiência de utilização do serviço pelo autor enquanto subscritor premium, residente num país periférico da União Europeia (Portugal), contrastando a com a de uma comunidade privada de partilha de ficheiros via BitTorrent especializada em música ao longo de quase oito anos. Em termos metodológicos, a análise empírica descritiva de ambos os serviços será complementada com uma abordagem próxima dos estudos críticos de tecnologia, centrada numa distinção rigorosa das práticas tecnológicas (streaming versus downloading) e protocolos de Internet (HTTP versus P2P) em questão, sem ignorar as implicações sociais e culturais inerentes a cada modelo de distribuição de dados.
Pretende se deste modo evidenciar de que forma serviços de streaming como o da companhia sueca contribuíram para as indústrias culturais readquirirem o controlo do acesso às obras protegidas por direitos de autor que tinham perdido com o surgimento e consequente popularização das primeiras redes de partilha de ficheiros. Indo mais longe, pretende-se igualmente demonstrar que a aplicação férrea dos direitos de propriedade intelectual na Internet representa uma desestabilização fundamental no equilíbrio entre os direitos dos utilizadores e os direitos dos criadores que vigorou até à massificação da Internet.
Onde o streaming acaba e o download começa
A 12 de fevereiro de 2013 o serviço de streaming de música da empresa sueca Spotify foi oficialmente lançado em Portugal. Na altura, a plataforma digital contava já com um catálogo global composto por mais de 20 milhões de músicas. Para aceder a tal manancial de faixas, o utilizador apenas necessita de instalar a aplicação oficial. Esta aplicação inclui versões compatíveis com uma panóplia de sistemas operativos e dispositivos.
O serviço da Spotify centra se num modelo de negócio característico de muitas start ups da Internet que é frequentemente designado de freemium (contração de free – ‘grátis’ – com premium – símbolo de exclusividade e valor acrescentado): uma versão gratuita, financiada por anunciantes mediante a integração de publicidade3 entre as faixas, mas que ainda assim permite ouvir um número ilimitado de canções, e ainda duas versões pagas, as quais em troca do pagamento de uma mensalidade, oferecem o acesso ilimitado e ininterrupto sem publicidade, concedendo inclusive a possibilidade de audição através de um dispositivo móvel. Para tal, e não obstante a possibilidade de guardar localmente algumas músicas para posterior audição offline, supõe se que o utilizador disponha de uma ligação permanente à Internet de modo a poder escutar, via streaming, os sons transmitidos à distância pelos servidores da Spotify.
Aquela em que as maiores editores discográficas do mundo depositam as esperanças de ser a solução definitiva para o problema mundial da “pirataria online” na aceção corrente do termo – a cópia de conteúdos multimédia sem a autorização dos detentores de direitos de autor – faz assim uso de uma tecnologia de distribuição de dados que é convencionalmente colocada numa posição diametralmente oposta ao do download enquanto cópia permanente do ficheiro em que a música ou o vídeo se encontram comprimidos.
Essa dissimilitude é, porém, mais aparente do que real, podendo aqui encontrar se a raiz de algumas das polémicas mais graves em torno da discussão pública sobre os direitos de autor na era da Internet. Quando um utilizador efetua um download, ele está essencialmente a guardar o ficheiro respetivo que transfere de um servidor ou computador remoto no seu disco rígido para posterior reprodução. Deste modo, já não precisa de estar ligado à Internet para ouvir a música ou o filme em questão.
Para além disso, em termos estritamente técnicos o streaming deve ser entendido como um download temporário de um ficheiro, na medida em que o ficheiro completo não se destina a ser guardado no disco rígido do computador. O que efetivamente ocorre é que o ficheiro vai sendo transferido em pequenas secções à velocidade de tempo real, sendo em seguida removido. Para tal, o streaming faz uso de uma técnica designada buffering, através da qual os dados são guardados durante um curto período de tempo na memória RAM do computador. Deste modo, esses dados passam a estar disponíveis imediatamente antes de serem acedidos. Antes do início da massificação das ligações de Internet de banda larga, em meados do início do século xxi em países como Portugal, o utilizador tinha que esperar que uma determinada parte do ficheiro fosse descarregada (20%, por exemplo) antes de começar a ouvir a música ou a ver o vídeo pretendido via streaming. À medida que o conteúdo ia sendo reproduzido, o computador continuava a descarregar a parte restante e a colocá la no buffer. Atualmente, com a abrangência de um número cada vez maior de zonas do país por ligações de banda larga como ADSL e cabo coaxial, na prática esse compasso de espera foi significativamente reduzido, sendo a reprodução iniciada quase automaticamente.
Do ponto de vista meramente prático, a distinção entre streaming e download parece residir, assim, cada vez mais num dilema quase ontológico no que concerne ao momento ou situação em que o streaming se converte num download efetivo e este no primeiro, à medida que os contornos entre ambos se vão esfumando graças ao próprio avanço da tecnologia.
Na verdade, esta diferenciação entre streaming e downloading não se restringe à era da digitalização das Tecnologias de Informação e Comunicação, remetendo antes para um contexto mais vasto da história dos média, pelo menos desde a segunda metade do século xx. No seu cerne está a oposição entre o carácter transitório e efémero dos sinais de difusão ou emissão de áudio e vídeo por tecnologias como a rádio e a televisão e o carácter perene ou arquivístico de outro leque de suportes analógicos. Por permitirem não só o registo permanente de emissões de rádio e televisão mas também a cópia de discos de vinil pelos utilizadores de uma forma económica, privada e relativamente expedita, os gravadores de audiocassetes e videocassetes foram inicialmente alvo da perseguição tanto de empresas de radiodifusão como de companhias discográficas (Cummings, 2013 e Kernfeld, 2011) e produtoras de cinema (Decherney, 2012; Hilderbrand, 2009; Johns, 2009; McDonald, 2007 e Wasser, 2001).
Tal como a rádio na era analógica da radiodifusão, os serviços de streaming da era digital em rede oferecem ao utilizador recetor a possibilidade de acesso a um fluxo (stream em inglês) contínuo de música e vídeo em tempo real, apenas superficialmente insuscetível de ser captado (guardado para um dispositivo de armazenamento de dados como o disco rígido externo de um computador, tablet, smartphone ou leitor portátil de música) para posterior reprodução. A possibilidade de controlo permanente tanto do catálogo disponível para transmissão como da experiência de receção consiste assim na receita de sucesso do modelo de negócio de serviços de streaming como o da Spotify no caso da música, ou o Youtube da Google e a plataforma de Video on Demand (VoD) da Netflix, no que diz respeito ao vídeo. Um dos principais pressupostos deste modelo de negócios consiste precisamente na incapacidade de o recetor captar a transmissão para a ouvir ou visualizar onde quer que deseja mesmo sem acesso à Internet, após a remoção da sua conta no serviço ou da suspensão da subscrição, no caso de a plataforma em questão requerer o pagamento de uma mensalidade.
Se, todavia, toda a tecnologia digital funciona mediante a cópia e manipulação de ficheiros digitais e se, como Kevin Kelly refere, a Internet se assemelha a uma máquina de copiar incessantemente informação sob a forma de zeros e uns (Kelly, 2008), compreende se por que razão se torna bastante mais difícil aos detentores de direitos exercer o direito exclusivo à cópia num ambiente de comunicação em rede. Se tanto o streaming como o download pressupõem a realização de cópias, na prática será sempre impossível controlar todas ou pelo menos a maior parte das cópias de ficheiros efetuadas por utilizadores privados sem comprometer direitos e liberdades individuais.4 Neste sentido, a Internet introduz uma diferença qualitativa no que toca à distinção tradicional entre suportes de receção e suportes de gravação: a mesma tecnologia – o computador pessoal, tablet ou smartphone – desempenha a função de receção e gravação.
Será por isso apenas necessário pesquisar alguns minutos em qualquer motor de busca para o utilizador encontrar dezenas de aplicações ou extensões de navegadores da web especialmente concebidas para transformar o streaming de cada um dos serviços mencionados num download permanente. No caso da música, tal tarefa torna se ainda mais fácil com o recurso a um simples software de gravação e edição de áudio como o Audacity. Embora seja difícil averiguar o real grau de utilização destas ferramentas por parte dos utilizadores, tanto o vasto número de alternativas disponíveis como o seu destaque em resultados de pesquisa aproximados levam a considerar seriamente a hipótese de que uma percentagem não despiciente de utilizadores recorre a elas para efetuar aquilo que os produtores de conteúdos tentavam precisamente impedir através da adoção da tecnologia de streaming: a realização de um número ilimitado de cópias sem qualquer perda significativa de qualidade sonora e visual a partir do ficheiro transmitido, cópias essas que podem ser transferidas para um número ilimitado de dispositivos durante o processo.
Streaming: Um “modelo limitado em termos económicos”
Não estranha assim que alguns analistas estabeleçam um paralelismo histórico, chegando mesmo à conclusão que, longe de ser a próxima grande tendência do consumo de música, o streaming não passa da rádio do século xxi (Tschmuck, 2013). Ou seja, em vez de assinalar a passagem de uma economia centrada no mero acesso em lugar da posse (ownership) dos conteúdos (Rifkin, 2000a e 2000b), na perspetiva do utilizador o streaming parece assim servir um propósito diferente dos downloads ou mesmo dos suportes físicos tradicionais (CD e discos em vinil). Nesse sentido, todos os dados disponíveis publicamente sobre os hábitos de utilização de plataformas de streaming indiciam que se trata de um “modelo limitado em termos económicos” na medida em que, dado o fraco valor adicional oferecido por estes serviços, os utilizadores tendem a encontrar poucas razões para pagar pelo acesso à música via streaming (Aigrain, 2012: 63).
Com efeito, apesar do crescimento do número de utilizadores ativos, a percentagem daqueles que estão dispostos a pagar continua a ser reduzida. Esta opinião é veiculada por Tschmuck com base numa leitura aturada de uma série de estudos publicados desde 2010 até outubro de 2013 sobre os hábitos de consumo de música dos utilizadores. Embora faça questão de salientar o carácter diverso e contraditório dos resultados em causa, este professor da Universidade de Música e Estudos Performativos de Viena retira as seguintes conclusões:
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A grande maioria (mais de 80%) dos utilizadores de música – mesmo os pertencentes a gerações mais novas – preferem a posse de música (ou seja, CD e downloads pagos) ao acesso (streaming).
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O nível de notoriedade dos sites de streaming de vídeos musicais como o YouTube é significativamente superior ao dos serviços de streaming de áudio como o Spotify. O nível de notoriedade dos serviços de streaming entre os mais jovens é superior ao do de faixas etárias mais velhas.
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A percentagem de utilizadores ativos de serviços de streaming é ainda reduzida. Varia entre 48% na Suécia a 12% na Alemanha e uns meros 4% no Japão.
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A predisposição para pagar por subscrições de música é fraca – 22 a 31%. Uma vasta maioria de utilizadores e não utilizadores interessados preferem a versão freemium financiada por publicidade aos modelos premium.
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O número de subscritores de serviços de streaming de música é reduzido. De acordo com o estudo BITKOM, uns meros 1,6% de utilizadores de Internet na Alemanha pagam por serviços de streaming.
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Os serviços de streaming de música são usados maioritariamente para descobrir música nova (Tschmuck, 2013).
Tal como no caso da partilha de ficheiros, o grande receio tanto de artistas como de executivos da indústria é o da canibalização das vendas tanto de CD como de downloads a partir de serviços autorizados. Este receio é razoável, se tivermos em conta os dados do relatório The Streaming Effect: Assessing The Impact of Streaming Music Behaviour, da autoria de Mark Mulligan e Alun Simpson da consultora britânica MIDiA. Com base num questionário realizado em junho de 2014 a três mil inquiridos residentes no Reino Unido, EUA e Brasil, os analistas alertam para o facto de que 45% das pessoas que adquirem downloads ouvem também música via streaming (Mulligan e Simpson, 2014). Outro dado alarmante é o facto de apenas 15% dos inquiridos que ouvem música via streaming terem assinado um serviço pago para beneficiar do período experimental gratuito. Tendo em conta estes dados, não será por isso de admirar que 23% dos inquiridos que compravam mais de um álbum por mês terem entretanto deixado de o fazer, de acordo com as suas respostas.
O pessimismo que a leitura destes dados pode fazer transparecer contrasta no entanto com o otimismo cauteloso da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Segundo esta organização que representa os interesses das maiores companhias discográficas do mundo, as receitas globais geradas pelos serviços de streaming por subscrição e acesso financiado por publicidade subiram 39% em 2014 face ao ano anterior, tendo se situado nos 1,6 mil milhões de dólares (IFPI, 2015). Já quanto à evolução do número de subscritores de serviços de música, a subida tem se registado a um ritmo ainda mais rápido: de apenas 8 milhões em 2010 para 13 milhões em 2011, 20 milhões em 2012, 28 milhões em 2013 e 41 milhões em 2014.
Spotify: O “cavalo de Tróia” da indústria discográfica para enfrentar a partilha não autorizada
Enquanto responsável por uma parte relativamente substancial desses utilizadores pagantes,5 a empresa sueca Spotify tem sido alvo de uma atenção especial pela indústria discográfica. Em 2008, em conjunto com a Merlin (associação representante das editoras independentes de discos), as quatro maiores companhias discográficas do mundo (Universal Music Group, EMI, Warner Music Group e Sony Music Entertainment) adquiriram em conjunto uma participação acionista de 18 por cento por um valor ligeiramente inferior a nove milhões de euros (Schwarz, 2013: 152). Tendo em conta que sete anos mais tarde, em abril de 2015, no âmbito de uma nova ronda de recolha de fundos que resultou na angariação de 350 milhões de dólares, a empresa seria avaliada em oito mil milhões de dólares6 (Tausche, 2015), pode concluir se que tal participação se tratou de uma contrapartida pela aquisição dos direitos de licenciamento do catálogo das quatro grandes majors.
O caminho percorrido até à celebração de acordos entre ambas as partes envolveu todavia complexas e demoradas negociações que decorreram desde a fundação da Spotify em abril de 2006 por dois empresários suecos, Daniel Ek e Martin Lorentzon até ao lançamento do serviço na Suécia bem como noutros países europeus em outubro de 2008. A hostilidade por parte dos executivos das companhias discográficas era tão grande que se recusavam mesmo a experimentar eles próprios o serviço, quanto mais a licenciar as músicas dos seus catálogos. A solução encontrada por Ek e Lorentzon para convencê los foi tanto engenhosa como eficaz, com a empresa a oferecer o acesso gratuito aos alunos dos liceus onde sabiam que os filhos desses executivos se encontravam a estudar. Isso fez com que estes se tivessem lentamente começado a aperceber que a Spotify “talvez pudesse competir com a pirataria e remunerar os detentores de direitos” (Wikström, 2013: 118 119).
Em maio de 2015, o seu serviço encontra se disponível em 58 países. No que diz respeito aos países de língua portuguesa, a plataforma pode ser acedida por utilizadores residentes em Portugal – como começámos por referir – e, mais recentemente – desde o final de maio de 2014 –, no Brasil (Grego, 2014). Se até ao momento não foi divulgado o número concreto de utilizadores do serviço nestes dois territórios, ainda assim a empresa já revelou alguns dados que indiciam um nível bastante significativo de adesão ao seu serviço tanto em Portugal como no Brasil (SAPO Tek, 2014 e Nunes, 2015).
Apesar de, tal como todos os restantes serviços de streaming de música (Deezer e Pandora, por exemplo), até agora a Spotify ainda não ter conseguido obter qualquer lucro, as receitas estão a crescer a um ritmo mais rápido que as perdas (Brustein, 2014). Daí que as companhias discográficas não tenham grande razão para queixas. Compreende se porquê: em média 70% das receitas geradas pela empresa por via da publicidade e das subscrições são distribuídas aos detentores de direitos sob a forma de royalties de direitos de autor,7 ficando a Spotify com os restantes 30%. Esses 70% são geralmente pagos diretamente às companhias discográficas e editoras de música8 que retiram uma comissão e só depois distribuem o restante aos artistas e empresários, dependendo dos contratos individuais estabelecidos.
Juntamente com a participação acionista das majors na empresa, este sistema de distribuição das receitas tem suscitado fortes críticas por parte de músicos mais famosos. Um dos casos que mais repercussão gerou na comunicação social foi o de Thom Yorke, vocalista da banda britânica Radiohead. Em julho de 2013 o músico retirou o seu álbum a solo The Eraser bem como o de Atoms for Peace, o seu projeto com Nigel Godrich (produtor dos Radiohead), da plataforma da Spotify em protesto pelos fracos montantes em royalties recebidos pelos artistas – sobretudo os mais jovens – em comparação com as receitas obtidas com as vendas de CD e downloads digitais (Arthur, 2013).
Em resposta, em dezembro desse mesmo ano a empresa lançou o site Spotify for Artists,9 onde alega ter pago mais de 2 mil milhões de dólares (1,6 mil milhões de euros) em royalties desde 2008 até hoje (Spotify, 2013).10 Desse montante, 500 milhões de dólares (393 milhões de euros) teriam sido entregues somente durante o ano de 2013. De acordo com os seus dados, em média cada reprodução via streaming de uma faixa representa um pagamento entre os 0,006 USD (0,0053€) e os 0,0084 USD (0,0074€) para os detentores de direitos.
Nesse mesmo site, os responsáveis pela empresa admitem inequivocamente pela primeira vez que “a Spotify foi concebida de raiz para combater a pirataria”, no intuito de oferecer “um serviço melhor que a pirataria” e de modo a “convencer as pessoas a deixar de recorrer à partilha ilegal de ficheiros e voltar a consumir música de uma forma legal.”
Não deixa, no entanto, de ser curioso o facto de as próprias origens da empresa se confundirem com as fronteiras daquilo que convencionalmente é designado de “pirataria”, ou seja, o download não autorizado de obras protegidas por direitos de autor. Isto porque a base de dados da versão beta do serviço da Spotify começou por ser preenchida com os próprios ficheiros de música obtidos de forma não autorizada da Internet por Ek e os seus amigos (Greeley, 2011). Em suma, para além da mera coincidência de partilhar a mesma nacionalidade geográfica que o The Pirate Bay – o maior site da rede P2P BitTorrent do mundo –, a Spotify começou por ser ela própria um arquivo ilegal de música não licenciada (Schwarz, 2013: 149).
Igualmente assinalável é o facto de até muito recentemente a empresa ter feito uso da tecnologia de rede P2P para aliviar as suas despesas com largura de banda e servidores. Durante boa parte do tempo de existência do seu serviço, a Spotify recorreu a uma rede P2P privada para o fornecimento das músicas solicitadas pelos utilizadores pela primeira vez em alternativa aos seus próprios servidores. Esta rede chegou até a ser responsável por quase 80% de todas as músicas acedidas pelos utilizadores através da Internet (Ernesto, 2011; Kreitz e Niemelä, 2010). Deste modo, os utilizadores acabaram eles próprios por assumir o principal papel de distribuidores dos conteúdos licenciados pela Spotify – na sua maior parte, sem sequer se aperceberem disso. As despesas com largura de banda e de espaço de armazenamento de dados eram assim partilhadas com os utilizadores. Para além do aspeto económico, a tecnologia P2P permitiu que a transmissão das músicas fosse feita de forma a que as faixas começassem quase imediatamente, sem qualquer período assinalável de latência. Na verdade, só em abril de 2014 é que a empresa deu início à desativação da sua rede P2P para passar a recorrer exclusivamente a servidores centrais (Ernesto, 2014).
Para além do recurso à tecnologia P2P no sentido de facilitar a reprodução das músicas, o próprio passado da Spotify encontra se bastante associado à partilha de ficheiros. Pouco antes de fundarem a empresa de streaming de música, Daniel Ek e Ludvig Strigeus (futuro Chief Software Architect da Spotify), desenvolveram o uTorrent, uma das aplicações mais populares do protocolo de P2P BitTorrent (Allen Robertson, 2013; Schwarz, 2013: 151).
Limites da esfera do mercado na diversidade e democratização cultural: Um relato pessoal
Em termos sucintos, a proposta comercial da Spotify consiste em oferecer toda a música que consigamos ouvir a custo zero (ou quase zero). Pretende se assim, através de uma alternativa sancionada pela indústria discográfica, fazer diminuir a partilha não autorizada sem fins comerciais de obras protegidas por direitos de autor. Nesse sentido, torna se forçoso estabelecer uma comparação com a experiência de utilização proporcionada pelos sites e redes onde ocorre o tipo de práticas que se pretende combater.
Enquanto responsável pelo Remixtures.com, um blogue pessoal atualizado várias vezes ao dia sobre música digital, partilha de ficheiros, novos modelos de negócio e direitos de autor que funcionou entre outubro de 2006 e dezembro de 2009, tive a oportunidade de noticiar não só o anúncio do serviço mas também o lançamento da primeira versão beta da Spotify (Caetano, 2008a e 2008b). Se bem que um pouco cético de um serviço “apadrinhado” pelas companhias discográficas, confesso que fiquei encantado com a possibilidade de aceder a “toda a música do mundo” mediante uma “nuvem” (cloud em inglês) de servidores informáticos espalhados pelo mundo. Mais ainda devido à incorporação de diversas funcionalidades destinadas à descoberta de música nova. Enquanto membro do What.cd – um dos maiores sites privados de BitTorrent11 do mundo especializados em música – desde a sua fundação em outubro de 2007, considerava que nenhum serviço de música autorizado seria alguma vez capaz de disponibilizar um repositório online tão completo, variado e rico como o dessa comunidade de partilha de música, sem fins comerciais e totalmente dependente de doações e voluntariado.
Para se ter uma ideia, em abril de 2015 o What.cd contava com 150 675 utilizadores registados e 2 202 390 ficheiros torrent relativos a 908 963 lançamentos musicais de 753 479 artistas. O desfasamento entre o número de ficheiros registados e o número de lançamentos deve se ao facto de o site incluir o maior número de formatos áudio possíveis do mesmo disco, com especial destaque para FLAC, um formato áudio comprimido semelhante ao MP3 mas que, ao contrário deste, oferece o máximo de fidelidade sonora sem qualquer perda de qualidade. Se estimarmos em dez o número médio de faixas por lançamento – tendo em conta que a média tende a ser 12 no caso de álbuns mas também já contando com EP e singles –, o total de músicas disponíveis para download a partir do What.cd deverá rondar os 8,5 milhões.
Se à primeira vista esse número pode parecer muito aquém dos alegados 20 milhões de músicas passíveis de serem encontradas no serviço da Spotify, numa pesquisa mais aprofundada rapidamente chegamos à conclusão de que no caso dos artistas mais populares – e cujo valor de licenciamento do seu catálogo solicitado pela respetiva companhia discográfica atinge montantes mais elevados –, a oferta disponível frequentemente se reduz a versões dos seus temas mais famosos por outros artistas mais ou menos desconhecidos. É assim possível encontrar 600 versões de “Skyfall” de Adele, mas não a versão original da própria cantora britânica (Nakashima, 2013). O mesmo se diga aliás a respeito de bandas de rock clássico dos anos 60 e 70 como The Beatles ou AC/DC, cujos detentores de direitos ainda não permitiram a disponibilização da sua música na plataforma da empresa sueca. Mesmo quando a música original do artista se encontra acessível, torna se complicado encontrá la por entre centenas de outras versões. Um dos exemplos mais recentes é o de “Suit & Tie” de Justin Timberlake, que já foi alvo de mais de 180 canções (ibidem). Em contrapartida, no What.cd não só a probabilidade de situações semelhantes ocorrerem é muito mais reduzida (todo o trabalho é feito de forma voluntária, sem fins comerciais mas também sem autorização dos detentores de direitos) como também o próprio interface do site impede que os efeitos de uma eventual profusão de versões adaptadas de outros artistas se façam sentir, uma vez que cada artista e cada lançamento têm uma página própria.
Foi deste modo que, ao aderir ao serviço premium da Spotify12 poucas horas após o lançamento da empresa em Portugal, cedo me deparei com uma profusão de conteúdos que pouco ou nada tinham a ver com o que procurava, bem como com outras deficiências a nível da curadoria e edição de conteúdos. Com efeito, embora a Spotify inclua várias funcionalidades que permitem a descoberta de música nova (estações de rádio baseadas num estilo de música ou artista, inúmeras playlists temáticas permanentemente atualizadas pelos utilizadores, canais de marca mantidos por publicações e críticos especializados, etc.), estas funcionalidades parecem destinar se mais ao consumidor casual de música do que especificamente ao fã mais ávido e intensivo. Um exemplo que torna mais claro essas diferenças é a forma de apresentação dos resultados de lançamentos relativos a artistas nas suas respetivas páginas. Embora nos dois casos a ordem seja cronológica (começando pelo mais recente ao mais antigo), na Spotify não existe qualquer tipo de organização adicional, o que significa que no caso de artistas mais populares teremos que percorrer por entre uma série de antologias dos maiores êxitos até chegarmos a lançamentos originais. O mesmo já não sucede no caso do What.cd, onde em cada página de artista existe uma hierarquia lógica na apresentação dos resultados:
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Álbuns;
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Bandas sonoras;
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EP;
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Antologias;
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Compilações de temas vários;
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DJ Mixes;
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Singles
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Álbuns de concertos ao vivo;
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Remixes;
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Bootlegs;13
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Mixtapes;
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Versões demo;
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Guest Appearances;14
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Produções.
Ainda no que diz respeito à descoberta de música nova, trackers privados de BitTorrent como o What.cd têm ao longo do tempo integrado uma série de funcionalidades de recomendação como a possibilidade de criação de “colagens” relativas às listas de melhores discos, de acordo com publicações especializadas como Pitchfork e Tiny Mix Tapes e de listas pessoais baseadas na opinião dos membros, tops de lançamentos mais populares do mês ou do ano, ferramentas de recomendação algorítmica com base nos hábitos de download dos utilizadores que anteriormente descarregaram o mesmo disco e listas de todos os lançamentos num determinado estilo musical de acordo com as etiquetas (tags) incluídas pela comunidade para melhor descrever um disco.
Sendo o serviço da Spotify um serviço de streaming dependente do estabelecimento de acordos de licenciamento com os detentores de direitos relativos a cada território nacional, tal como no caso do YouTube da Google, da iTunes Store da Apple ou da loja Kindle da Amazon, existem determinados conteúdos que não se encontram disponíveis para os utilizadores de um determinado país. Embora já tivesse uma vaga noção da existência dessas restrições geográficas no serviço da Spotify, só em julho de 2013 é que me deparei com tal situação. No âmbito de uma viagem a Toronto tive a oportunidade de conhecer a obra da cantora local de música country e folk Jennifer Castle durante a primeira parte do concerto da banda nova iorquina Woods. Regressado a Portugal, pesquisei o seu nome na aplicação da Spotify mas não consegui encontrar nada. Foi só quando introduzi os termos ‘“Jennifer Castle” + “Spotify”’ na caixa de pesquisa do motor de busca Google que encontrei uma página Web do site da empresa sueca referente ao álbum “Castlemusic” de 2011 da cantora, contendo links para a reprodução das faixas a partir da aplicação da Spotify. Contudo, ao clicar num desses links deparei com uma mensagem informando me que o conteúdo pretendido não estava disponível em Portugal. Não sendo totalmente de descurar a possibilidade de tal decisão ter eventualmente partido quer da própria artista quer da própria companhia discográfica (Flemish Eye), é impossível não deixar de especular a respeito da relação entre a participação acionista das quatro maiores companhias discográficas do mundo e a forma como os artistas independentes são tratados pela Spotify tendo por base este episódio. Aqui, tal como em inúmeros outros casos de lançamentos independentes, a alternativa gratuita mas não autorizada demonstrou mais uma vez a melhor (porque única) opção à escolha.
Mas o que de facto me levou a desistir de subscrever o serviço pago da Spotify foi o facto de – não obstante ter sido “concebido de raiz para combater a pirataria” – este ser igualmente vulnerável ao fenómeno da já tradicional possibilidade de remoção súbita de conteúdos sem qualquer aviso antecipado, o que no caso da loja Kindle da Amazon, chegou a assumir contornos simultaneamente soturnos e caricatos com a remoção das cópias de edições eletrónicas de 1984 e O Triunfo dos Porcos de George Orwell (Allen Robertson, 2013: 170 174; Striphas, 2011: xvii). Para além da qualidade superior dos ficheiros áudio,15 uma das razões que me levara a subscrever a versão mais cara do serviço premium da Spotify – no valor de 6,99€ por mês – tinha sido a possibilidade de descarregar para posterior reprodução offline até um máximo de 3333 músicas para um computador pessoal, tablet ou smartphone (independentemente do sistema operativo) a partir de qualquer lugar onde me encontrasse, bastando apenas para tal dispor de uma ligação sem fios à Internet via wi fi. No seu site, a Spotify faz questão de informar que a única condição necessária para continuar a poder reproduzir as músicas em questão é que o dispositivo renove a concessão da licença por mais 30 dias através dos servidores da Spotify. Para tal, a empresa recorre a uma tecnologia de DRM que encripta os ficheiros.16.
A situação em concreto que me afetou veio no entanto a demonstrar que os termos do contrato com que a empresa me solicitou que concordasse nem sempre eram compatíveis com a informação destinada ao consumidor. Foi deste modo que me apercebi, a 13 de setembro de 2013, que três álbuns17 que tinha previamente descarregado para o meu smartphone tinham não só subitamente desaparecido do cartão microSD do dispositivo como também já não era possível encontrá los na base de dados da Spotify a partir da sua aplicação. Na prática, se não tivesse descarregado esses álbuns para o meu computador pessoal a partir do What.cd teria perdido permanentemente o acesso a eles.
O facto de não ter recebido qualquer notificação antes ou depois do sucedido por parte da Spotify mostra até que ponto o serviço funciona como um “jardim murado” regido por regras de gestão de “condomínio” pouco transparentes e claras. Perante esta situação decidi então cancelar a minha subscrição na Spotify a 24 de outubro de 2013, pouco mais de oito meses após o início da minha experiência de utilização. A partir desse momento tornou se para mim particularmente evidente como a transição dos hábitos de consumo de conteúdos culturais para plataformas de streaming poderia significar a reconquista do controlo perdido pelas maiores companhias discográficas, produtoras de filmes e editoras de livros do mundo para os utilizadores durante o período de maior popularidade das redes de partilha de ficheiros.
Pese embora os vários estudos empíricos citados pela Spotify para demonstrar um alegado impacto positivo que o seu serviço tem exercido na redução da “pirataria online” (Spotify, 2013; Ernesto, 2013), tentei com a exposição apresentada em cima evidenciar que só muito dificilmente os serviços comerciais de streaming apoiados pela indústria de produção de obras culturais poderão ser capazes de proporcionar uma oferta centrada na diversidade cultural e na democratização do acesso à cultura e ao conhecimento.
Chegados a este ponto, forçoso é notar uma contradição entre a liberdade efetiva de circulação de dados permitida pela Internet e, em particular, pela tecnologia de partilha de ficheiros, e os limites impostos pela lei. Com efeito, no que diz respeito à proteção das obras literárias ou artísticas, tanto o direito de autor (droit d’auteur na tradição jurídica europeia) como o copyright (na tradição anglo saxónica) concedem aos detentores de direitos um conjunto de direitos exclusivos relativos à exploração das suas obras.18 A existência destes direitos implica que a partilha de ficheiros entre pessoas seja considerada uma infração ao direito de autor sempre que não exista uma autorização prévia junto de cada detentor individual de direitos.
Originalmente, o direito de autor tinha como objetivo conciliar dois interesses aparentemente incompatíveis entre si: incentivar a criação de novas obras por parte de autores e criadores e, simultaneamente, fomentar a disseminação da cultura, da inovação e do progresso social. Se no discurso das associações industriais representantes dos detentores de direitos parece reinar a tese de que a partilha de ficheiros está a aniquilar a indústria da música, do cinema e do livro, os dados empíricos disponíveis até agora apontam para um cenário mais complexo e matizado em que este tipo de práticas mediadas tecnologicamente contém em si tanto um potencial de destruição como de (re)construção de novos modelos de negócio.
Ainda assim, estes dados indiciam que a consecução desse duplo objetivo original do direito de autor sem restringir desnecessariamente o direito à cópia sempre que não estejam em causa fins comerciais é perfeitamente possível. Em suma, à primeira vista a partilha de ficheiros nem eliminou os incentivos dos artistas a criarem nem reduziu as opções de escolha dos consumidores.
Apesar de bem enraizada nos meios culturais e políticos, a perspetiva meramente economicista da contabilização dos eventuais prejuízos provocados pela partilha de ficheiros tem o grande inconveniente de se limitar a conceder importância à facilidade adicional proporcionada pela Internet na cópia de obras culturais face a tecnologias analógicas anteriores. Visto deste prisma, a partilha consiste apenas numa falha do mercado e não numa dimensão fundamental da cultura que de facto é (Aigrain, 2011).
Conclusão
Com este texto tentei demonstrar que, apesar das propostas aliciantes de empresas como a Spotify, o sucesso dos seus serviços de streaming depende de um compromisso com o utilizador que em troca de maior conveniência lhe retira liberdade. Deste modo, o streaming pode ser entendido no âmbito de uma estratégia puramente comercial levada a cabo pelas companhias discográficas – bem como pelas produtoras de cinema – no intuito de reconquistar o controlo que tinham perdido para os utilizadores em resultado da ascensão do Napster, assim como de outras redes e sites de partilha de ficheiros. Ao prometerem o acesso ubíquo a um vasto catálogo de músicas e vídeos à escolha, os serviços de streaming podem assim ser considerados como um “Cavalo de Tróia” para a Propriedade Intelectual na era da Internet. Graças ao streaming, a contradição entre o efetivo livre fluxo de informação que a Internet permite e os limites artificiais estabelecidos pelo Direito é contornada mediante a reimposição de um controlo tecnológico que o recurso a tecnologias de DRM permite.
Serviços comerciais como o da Spotify apresentam se deste modo como uma implementação quase perfeita do sistema descrito em 1994 pelo jurista Paul Goldstein sob a designação de “jukebox celestial”. No seu livro Copyright’s Highway, Goldstein previa para um futuro próximo o aparecimento de um sistema destinado a “remunerar os detentores de direitos por cada vez que as suas obras fossem escolhidas.” Tal sistema cobraria:
aos subscritores por via eletrónica cada utilização das obras pré gravadas disponíveis – filmes, gravações sonoras, livros, revistas ou artigos de jornais (...) Com o crescimento da audiência e a diminuição dos custos de distribuição, o preço do acesso a essas obras deveria descer acentuadamente para um valor bastante inferior aos atualmente pagos, de modo que as pessoas não se dariam ao trabalho de fazer cópias das obras transmitidas por radiodifusão ou mesmo via Internet, sabendo de antemão que poderiam obter qualquer obra disponível na jukebox celestial sempre que quisessem. (Goldstein, 2003 (1994): 23)
Goldstein notava ainda acertadamente que “a capacidade da jukebox celestial de cobrar pelo acesso – e de vedar o acesso ao serviço caso o subscritor não pague as suas contas – deveria reduzir substancialmente o espetro de custos de transação” (ibidem: 207). Embora o autor chegasse mesmo a especular sobre a possibilidade de uma lei de direitos de autor extirpada de quaisquer isenções à responsabilidade jurídica (ou seja, o chamado uso justo ou fair use), tal visão de total mercantilização dos bens informacionais tal como implementada por serviços de streaming como o da Spotify deve fazer nos ponderar sobre as perdas reais em termos de bem estar social, diversidade cultural e acesso à cultura e ao conhecimento daí resultantes. Sobretudo, tendo em conta a abundância informacional proporcionada pela Internet e pelas tecnologias digitais em geral.
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Artigo recebido a 16.06.2015Aprovado para publicação a 15.12.2015
NOTAS
1 Com origem no campo da informática, o termo P2P refere se a um determinado tipo de arquitetura de redes de computadores que se distingue do modelo tradicional servidor/cliente ao permitir que cada computador ligado à rede envie e receba dados.
2 O presente texto baseia-se na introdução de uma tese de doutoramento em Ciências da Comunicação intitulada “Cultura P2P: Uma análise sociológica comparativa das redes e dos sites de partilha online de músicas, filmes e livros eletrónicos em Portugal e no Brasil”, com data de defesa prevista para o segundo semestre de 2016.
3 Perfazendo um total de cerca de três minutos de publicidade por cada hora de música reproduzida.
4 Apesar da introdução de Medidas de Proteção Tecnológica (Technological Protection Measures – TPMs) como tecnologias de Gestão Digital de Direitos (Digital Rights Management DRMs) – bem como a proibição da disponibilização de quaisquer aplicações ou métodos que permitam derrubálas em vários tratados internacionais de propriedade intelectual e legislações nacionais de direitos de autor a partir de meados dos anos 90, na prática nenhum mecanismo de proteção anticópia revelou até hoje ser inquebrável.
5 De acordo com os dados mais recentes disponibilizados pela Spotify, em junho de 2015 a empresa tinha 20 milhões de assinantes e mais de 75 milhões de utilizadores ativos (Spotify, 2015), esperando a empresa que este número ascenda aos 100 milhões no final de 2015 (Willens, 2015). Em maio de 2014, o número de assinantes era de 10 milhões para um total de mais de 40 milhões de utilizadores ativos (Katz, 2014). Em março de 2013, os subscritores ultrapassavam os seis milhões, sendo de 24 milhões o número de utilizadores ativos (Sloan, 2013).
6 Pouco menos de 6,4 mil milhões de euros.
7 De acordo com a popularidade da sua música no serviço.
8 Publishers, em inglês.
9 Disponível em http://www.spotifyartists.com.
10 Em junho de 2015, esse montante já tinha ascendido aos 3 mil milhões de dólares (pouco menos de 2,8 mil milhões de euros) (Spotify, 2015).
11 Acessível apenas por convite enviado por um membro.
12 Tal como é habitual na maioria dos outros serviços de streaming, a Spotify permite que o utilizador desfrute inicialmente de 30 dias de acesso grátis à modalidade premium.
13 Gravações não autorizadas.
14 Participações em lançamentos de outros artistas por convite.
15 320 Kbps e não 160 Kbps. Os ficheiros encontram-se disponíveis no formato de código-fonte aberto Ogg Vorbis em vez do tradicional MP3.
16 Ver no entanto Wang et al. (2013), onde é apresentada uma técnica chamada MovieStealer, que permite derrubar a proteção DRM de vários serviços streaming, entre os quais o da Spotify.
17 Dois deles da banda de música eletrónica Javelin (Brooklyn, Nova Iorque – EUA), No Mas (2010) e Canyon Candy (2011) e um do projeto de Hip Hop Madvillain, Madvillainy (2004).
18 Entre os quais: 1) direito a reproduzir ou copiar a obra num suporte material; 2) o direito a comunicar a obra ao público; 3) o direito a distribuir cópias públicas da obra.