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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.109 Coimbra maio 2016
RECENSÕES
Zembylas, Tasos (org.) (2014), Artistic Practices. Social Interactions and Cultural Dynamics
Paula Guerra
Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal pguerra@letras.up.pt
Zembylas, Tasos (org.) (2014), Artistic Practices. Social Interactions and Cultural Dynamics. New York: Routledge, 206 pp.
Apesar da familiaridade de muitos com o que se designa por práticas sociais, Tasos Zembylas defende que deve compreender-se o primeiro plano das práticas de maneira bem diferente da forma convencional. De salientar, também, a chamada de atenção do autor sobre a dualidade inerente ao conceito/noção de prática artística – refletida no título da obra e em alguns capítulos desta antologia –, dado este termo possuir um significado específico nas artes (sendo por isso “nativo”): a prática como a forma como o artista compromete o seu próprio trabalho em prol do processo criativo. Na verdade, esta dualidade, manifesta em vários dos contributos que integram este trabalho antológico, legitimará o entendimento de que esta obra é de interesse para os sociólogos das artes e da cultura e para os que apreciem e se interessem pela noção de prática, sejam eles provenientes da sociologia ou de outras áreas.
Este livro organiza-se em torno da revivificação e reatualização analítica e conceptual do conceito de prática aplicado ao campo artístico. Concretamente, aborda as práticas artísticas e a sua importância na estruturação das artes contemporâneas. Esta abordagem funda-se na perspetiva de que a criação artística é, mais ou menos, um processo aberto (e) incorporado numa esfera social e cultural. Isto implicará que o processo artístico pressupõe um conhecimento vasto, sobretudo dos seus produtores, criadores e mediadores. Deste modo, assume-se que a investigação sociológica do processo de criação artística começará por questionar qual o modo melhor para se penetrar neste processo. A nossa compreensão sobre a prática artística determina se a vemos primeiramente como um produto ou se a entendemos como uma prática, como um termo que refere a uma ordem de atividades conectadas que também possuem uma dimensão ontológica. Neste segundo caso, o objeto de investigação não pode ser exclusivamente discursivo. A lógica da prática não é uma lógica formal; o conhecimento prático deve ser entendido como a capacidade de agir de acordo com uma visão situacional, em vez de um reconhecimento no sentido mais estrito da palavra. A prática ou o conhecimento fundamentado na prática é formado com base na socialização e na experiência, isto é, através da formação, imitação e dos próprios processos de aprendizagem. Este é o alcance deste livro.
Tasos Zembylas, mentor e organizador da obra, defende que uma investigação teórica sobre o conhecer artístico implica conceber os processos de criação como objetos complexos, que resultam de uma sinergia de várias formas e elementos de conhecimento – teórico, experiencial, sensorial, etc. Na criação artística, as regras, as convenções e os valores estéticos, as emoções e as motivações – todos componentes indissociáveis do trabalho total final – são integrados. Zembylas nota ainda que existe um certo “esquecimento das práticas” por parte da filosofia e da teoria social. Por um lado, quer no campo das artes, quer no campo das ciências, trabalha-se significativamente ao nível teórico e experimental, apresentando-se resultados sem referência ao processo criativo subjacente aos trabalhos realizados naqueles âmbitos – talvez devido ao facto de estas práticas serem autoevidentes para os autores ou devido à preocupação destes em focarem-se mais nos conteúdos e não no modus operandi inerente aos seus feitos/realizações. Por outro lado, parece haver uma desvalorização do corpo enquanto portador, ele próprio, de agency. Na verdade, a tradição racionalista (de inspiração cartesiana) constrói a racionalidade como uma faculdade intelectual/cognitiva, meramente formal, removida da vida quotidiana. Mas independentemente destes dualismos filosófico-teóricos (como, por exemplo, a fenomenologia versus pragmatismo), crê Zembylas que é possível enfatizar a primazia da prática e o papel central do corpo como um “veículo inteligível”.
A escolha do tema deste livro – as práticas artísticas – decorre, segundo Zembylas, de várias razões. A primeira razão prende-se, precisamente, com o facto de a sociologia das artes ter vindo a evidenciar as estruturas institucionais e as relações de poder que determinam a visibilidade no mundo das artes e, consequente, os processos de construção da reputação artística. Uma segunda razão assenta na premissa de que o conceito de prática será, teoricamente, bastante promissor no que respeita à superação dos dualismos já referenciados e discutidos – ou seja, a superação da oposição indivíduo/sociedade, tornando possível a análise de atividades e discursos sobre os níveis micro e macro, simultaneamente. A terceira razão reside na defesa de que um olhar mais atento sobre as práticas artísticas poderá contribuir para se apreender a dimensão prática da estética, uma vez que esta tem sido, por um lado, no seio da filosofia, perspetivada por vários pressupostos, e, por outro lado, equacionada pela sociologia tendo por base uma perspetiva extrínseca (assumindo-se que representa um discurso hegemónico no qual se estabelece padrões específicos de avaliação), relegando a existência de uma relação intrínseca da mesma com o processo de criação artística.
A obra organiza-se em duas partes. A primeira, de cariz mais teórico, estrutura-se em quatro capítulos, a saber: “The Concept of Practice and the Sociology of the Arts”, do próprio Zembylas; “Art Bundles”, de Theodore Schatzki; “Practices of Contemporary Art”, de Nathalie Heinich; e, finalmente, “Artistic Practices as Gendered Practices”, de Marie Buscatto. O primeiro contributo explora o significado de prática para vários autores (desde Aristóteles), propondo Zembylas uma estrutura conceptual para a análise da criação artística como um processo complexo, apresentando uma abordagem complementar às teorias existentes que potencie novos temas para a sociologia das artes. Schatzki apresenta uma abordagem prático-teorética da arte. No terceiro capítulo, Heinich aplica o conceito de paradigma ao mundo das artes, identificando três formas coexistentes de conceptualização e de prática (praxis) das artes visuais: a arte clássica (figurativa e narrativa), a arte moderna (que transgride os padrões de figuração tradicional) e a arte contemporânea (que desafia a própria noção de arte). No último capítulo, recapitulam-se as investigações recentes sobre as relações de género nas artes.
A segunda parte da obra é composta por sete capítulos de natureza mais analítica e aplicados a diferentes subcampos artísticos particulares: arte contemporânea, cinema, street art, literatura, arte pública, dança e música. Assim, no primeiro capítulo desta componente (quinto da obra), Chris Mathieu e Iben Sandal Stjerne analisam a aquisição, o refinamento e abandono das práticas ao longo das carreiras na produção de um filme; tendo por referência vários estudos empíricos, procuram demonstrar como as constantes negociações sobre o significado construído em torno das boas e más práticas modificam as atuais, adiantando que estas mudanças das práticas se relacionam, em alguns casos, com as mudanças do próprio ambiente/contexto, ao passo que, em outros, dependem de processos internos e resultados decorrentes de determinados caminhos e trajetórias. No capítulo seguinte, Silvana K. Figueroa-Dreher, a propósito da improvisação no jazz, intenta demonstrar o modo como o material musical, a atitude dos músicos e a interação entre eles desempenham um papel fundamental na elucidação/compreensão das práticas de improvisação. No capítulo seguinte, Chiara Basseti interpreta o corpo, com a sua experiência e o seu conhecimento incorporado, como uma dimensão fundamental em todas as práticas humanas; tendo por referência a natureza corpórea da performance da dança.
Continuando a percorrer a segunda parte desta antologia, Zembylas centra-se no processo de escrita literária, explorando, primeiramente, o nexus entre a sociologia das artes e a abordagem do conhecimento tácito e discutindo a sua aplicação na investigação empírica sobre o processo artístico criativo; num segundo momento, procura lançar pistas sobre: a criação e integração de ideias criativas, a relevância da experiência, a forma como os escritores enfrentam desafios específicos decorrentes da exposição e da fragilidade dos processos criativos e da influência dos seus pares. No capítulo seguinte, Laurent Thévenot discute as diferentes formas de compromisso em projetos de arte participativa. A partir de um projeto específico, “Um jardim partilhado em Paris”, o autor explora vários aspetos relacionados com aqueles compromissos, a emergência do comunitarismo e formas de justificação de bens comuns. O contributo de Sophia Krzys Acord centra-se na exploração dos processos de preparação e montagem de exposições (curadoria) no sentido de revelar a mediação como resultado de interações que decorrem não só entre os diferentes atores sociais, mas também entre obras de arte, outros objetos e o espaço. Por fim, Graciela Trajtenberg, traz para a discussão a análise de práticas artísticas desenvolvidas à margem do mundo da arte, tomando como exemplo o graffiti, onde as margens respeitam às restrições legais ou à formação artística informal deste domínio específico da prática.
Tal como refere Zembylas (2014: 4), esta antologia inclui várias discussões e análises de práticas artísticas, constituindo-se num esforço coordenado para explorar a complexidade e indeterminação dos processos criativos artísticos. Considera-se que a temática desta obra – o estudo das práticas artísticas – é muito conveniente, tendo em conta o crescente interesse nas mesmas, visível em vários campos da sociologia, dos média e da sociedade em geral. Por isso mesmo, nos parece extremamente importante e oportuna a sua publicação, constituindo um contributo muito útil para o alumiamento de trabalhos sociológicos que incidem sobre as práticas artísticas e as práticas sociais em geral, como não acontecia desde os trabalhos de Pierre Bourdieu.