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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.114 Coimbra dez. 2017
DOSSIER
Introdução
Boaventura de Sousa Santos*, Bruno Sena Martins**
* Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal bsantos@ces.uc.pt
** Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal bsenamartins@ces.uc.pt
O dossier “Alice: aprendizagens globais”, que aqui apresentamos, inscreve-se no trabalho produzido no âmbito do programa de pesquisa “Epistemologias do Sul”. As epistemologias do Sul são um conjunto de procedimentos que procuram reconhecer e validar os saberes nascidos da luta, saberes produzidos pelos grupos sociais como forma de resistência contra as injustiças sistemáticas e opressões causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado (Santos, 2014).
A consolidação das “Epistemologias do Sul” enquanto programa de investigação beneficiou de forma decisiva dos projetos de pesquisa, das práticas sociais, das linguagens e das metodologias que ganharam espaço de emergência e articulação no âmbito do projeto “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo”,1 coordenado por Boaventura de Sousa Santos, decorrido entre 2011 e 2016. Nesse sentido, o dossier aqui apresentado é, também ele, largamente tributário das atividades e sinergias desenvolvidas no âmbito do projeto “Alice”.
A revisitação das iniciativas reunidas e instigadas pelo projeto “Alice” desenha, estamos convencidos, um retrato que é simultaneamente marcado pela monumentalidade e pela des-monumentalização. A monumentalidade, assinalando magnitude, refere-se aonúmero e àescala intercontinental das pesquisas, iniciativas e produções que foram levadas a cabo no decurso do projeto. A des-monumentalização, sublinhando uma fuga à solenidade, diz respeito ao modo como o projeto “Alice” procurou desmonumentalizar a ciência aproximando-a de outras linguagens, saberes e experiências cujos termos de inteligibilidade (e de possibilidade de tradução intercultural) escapam às lógicas hegemónicas vigentes no espaço académico. A sintética descrição e enunciação das atividades promovidas pelo projeto “Alice” permite ilustrar de que modo este dossier espelha, ainda que parcialmente, aquela que foi a diversidade de experiências e saberes que ali se foram articulando com as epistemologias do Sul.
O projeto “Alice” promoveu e financiou diretamente quinze projetos de investigação, realizados no Brasil, Índia, Portugal, Espanha, Itália, França, Reino Unido, África do Sul, Equador, Bolívia e Moçambique. Contou ainda com o contributo de 21 investigadores/as e de 109 investigadores/as associados/as, com trabalho realizado um pouco por todo o mundo. O projeto esteve envolvido na organização de 22 oficinas das Universidades Populares dos Movimentos Sociais, nove realizadas no Brasil, e as restantes treze realizadas na Argentina (duas), Moçambique (duas), Bolívia, Cabo Verde, Equador, Índia, Portugal, Espanha, Tunísia e Zimbabué. Foram produzidas e disponibilizadas online 11 Conversas do Mundo, 100 testemunhos de Ideias para a Europa, 32 Entrevistas Alice, 67 palestras públicas e 35 respostas a questões através do “Pergunte a Boaventura”. A estas atividades somam-se, naturalmente, as publicações em vários países de artigos, capítulos e livros em que os/as investigadores/as associados/as foram convidados a estabelecer diálogos com as epistemologias de Sul para audiências de diferentes línguas e países.
Os pressupostos que afirmam a relevância e urgência das epistemologias do Sul são explanados no capítulo introdutório “Más allá de la imaginación política y de la teoría crítica eurocêntricas”, de Boaventura de Sousa Santos. Este texto denuncia a exaustão política e epistemológica do pensamento eurocêntrico que dominou o mundo nos últimos séculos, contrapondo-a à criatividade exaltante que reside na inesgotável diversidade da experiência do mundo. A apreensão desta diversidade, e logo da persuasão de que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão europeia deste, forja-se largamente pelos procedimentos das epistemologias do Sul: a “sociologia das emergências”, a “sociologia das ausências”, a “ecologia dos saberes” e a “tradução intercultural”.
Os artigos selecionados para este dossier exprimem as possibilidades de superação das “linhas abissais da modernidade” (Santos, 2007) em diversos temas quehámuito dialogam com as epistemologias do Sul, em particular os eixos consagrados no âmbito do projeto “Alice”, a saber: democratizar a democracia; constitucionalismo transformador, interculturalidade e a reforma do Estado; outras economias; e direitos humanos e outras gramáticas de dignidade humana.
O artigo “On the Coloniality of Human Rights”, de Nelson MaldonadoTorres, problematiza a universalidade dos direitos humanos, mostrando como a sua descolonização remete para as fronteiras entre o divino e o humano que foram sendo reelaboradas na “cadeia dos saberes”.
O artigo “The Recolonization of the Indian Mind”, de Peter Ronald deSouza, analisa os legados coloniais na Índia contemporânea, em particular o modo como as relações neocoloniais poderão estar a produzir formas de dominação que mantêm a pluralidade intelectual indiana refém do encontro com o mundo europeu.
No artigo “Deve a economia feminista ser pós-colonial? Colonialidade económica, género e epistemologias do Sul”, à luz das epistemologias do Sul, Luciane Lucas dos Santos propõe leituras que mobilizam as teorias pós-coloniais da economia para uma sensibilidade crítica atenta, seja ao contributo das economias feministas, seja às dinâmicas intersecionais degénero, raça/etnia e classe.
O texto de Cristiano Gianolla, “Democratisation beyond the Crisis of Liberalism, Bringing Civil Society within the State”, analisa a crise da democracia liberal através de uma perspetiva fomentadora de intensificação democrática, informada por um diálogo entre as epistemologias do Sul e o legado de M. K. Gandhi, mormente no que diz respeito à aprendizagem intercultural e à valorização de comunidades locais eticamente constituídas.
O capítulo de Maurício Hiroaki Hashizume, “Desobediências político-epistêmicas de movimentos indígenas no Brasil e na Bolívia como aprendizagens contra-hegemônicas”, analisa como os movimentos indígenas na América Latina, particularmente no Brasil e na Bolívia, têm enfrentado a hegemonia capitalista e colonialista, em particular os mecanismos de produção das linhas abissais de uma subalternidade racializada.
O dossier conta ainda com dois textos na secção Espaço Virtual de autoria de Raquel Lima e de Renan Inquérito. Os dois textos são, na verdade, palavras vivas, carregadas da oralidade que lhes deu vida, e que embora representantes de géneros específicos – slam poetry (Raquel Lima) e rap (Renan Inquérito) – constituem, em boa verdade, poesias com as marcas de distintas musicalidades performativas. Nasceram ambos como resumos criativos de duas aulas magistrais de Boaventura de Sousa Santos e, a seu modo, substanciam um encontro entre a linguagem académica e estéticas singularmente afeitas a articulações inventivas de ritmos e saberes insurgentes.
Com a sua diversidade temática e geográfica, o presente dossier procura substanciar e ilustrar os movimentos próprios de um alargamento de sentido feito de reconhecimentos, traduções, e ecologias que aproximam o labor académico de um renovado pensamento alternativo das alternativas.
Referencias
Santos, Boaventura de Sousa (2007), “Beyond Abyssal Thinking: From Global Lines to Ecologies of Knowledges”, Review, XXX(1), 45-89.
Santos, Boaventura de Sousa (2014), Epistemologies of the South: Justice against Epistemicide. Boulder: Paradigm Publishers.
Notas
1 O projeto “Alice” foi financiado pelo European Research Council, através de fundos do Sétimo Programa-Quadro de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico da União Europeia (FP/2007-2013) / ERC Grant Agreement n.º 269807 (www.alice.ces.uc.pt).