Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.115 Coimbra maio 2018
https://doi.org/10.4000/rccs.7031
DOSSIER
“ Goa is a Paradise ”: florestas, colonialismo e modernidade na Índia Portuguesa (1851-1910)1
“Goa is a Paradise”: Forests, Colonialism and Modernity in Portuguese India (1851-1910)
“ Goa is a Paradise ”: forêts, colonialisme et modernité de l’Inde Portugaise (1851-1910)
José Miguel Moura Ferreira
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa Av. Prof. Aníbal Bettencourt, n.º 9, 1600-189 Lisboa, Portugal jose.mouraferreira1988@gmail.com
RESUMO
No início do século xx, Goa era colónia distante, economicamente frágil e cercada pelo vasto território do Raj britânico. Situada na periferia de um império que estava cada vez mais centrado nos seus domínios africanos, Goa tem consequentemente ocupado um lugar marginal nas análises historiográficas sobre o colonialismo português nos séculos xix e xx. Neste artigo, procura-se matizar essa imagem, através de uma análise dos debates sobre a modernização da colónia e dos seus múltiplos intervenientes. Tomando como objeto de estudo as políticas coloniais de administração florestal, pretende-se assim mostrar que Goa oferece um lugar privilegiado para pensar as dinâmicas coloniais do “longo século xix” e para questionar as interligações entre colonialismo, ciência, política e modernidade.
Palavras-chave: gestão de recursos florestais, Goa, história ambiental, história colonial, modernidade
ABSTRACT
In the early-20th century, Goa was a remote and economically fragile colony surrounded by the vast territory of the British Raj. Located on the periphery of an empire focused on its African colonies, Goa has therefore occupied a marginal place in the historiographical discussion of Portuguese colonialism in the 19th and 20th centuries. This article aims to question this image through an analysis of the debates over the modernization of the colony. By looking into the projects of forest administration and natural resource control put in place by the colonial authorities, the following pages argue that Goa is a privileged location to consider the colonial dynamics of the “long-19th century” and to rethink the links between colonialism, science, politics and modernity.
Keywords: colonial history, environmental history, forest resources management, Goa, modernity
RÉSUMÉ
Au début du xxe siècle, Goa était une colonie lointaine, économiquement fragile et cernée par le vaste territoire du Raj britannique. Située à la périphérie d’un empire de plus en plus centré sur ses domaines africains, Goa a donc occupé une place marginale dans les analyses historiographiques portant sur le colonialisme portugais aux xixe et xxe siècles. Dans cet article, nous cherchons à nuancer cette image par le biais d’une analyse des débats sur la modernisation de la colonie et de ses multiples intervenants. En prenant comme objet d’étude les politiques coloniales de l’administration forestière, nous tentons de démontrer que Goa offre un espace privilégié pour penser les dynamiques coloniales du “long xixe siècle” et soulever la question des inter-échanges entre colonialisme, science, politique et modernité.
Mots-clés : gestion des ressources forestières, Goa, histoire coloniale, histoire environnementale, modernité
“ Goa is a Paradise; what a pity you don’t care much for it ”. Era com esta frase, atribuída a um silvicultor britânico de visita à colónia portuguesa, que o médico goês Francisco António Wolfango da Silva (1864-1947) concluía a sua “Proposta sobre o nosso regímen florestal” (Silva, 1910). Neste texto, publicado em 1910 como parte dos seus Estudos económicos e sociais sobre a Índia Portuguesa , Wolfango da Silva traçava uma imagem crítica da administração colonial portuguesa, que permitira que as “ricas florestas” de Goa caíssem “n’uma anarchia completa”. A esta negligência, Wolfango da Silva contrapunha o exemplo da Índia Britânica, onde os esforços de gerações de silvicultores tinham criado “na grande península um viveiro de essências florestaes que o mundo inteiro não as tem maiores nem melhores” (Silva, 1910: 2). Sendo assim, no seu entender, a solução passava pela contratação de um silvicultor britânico, cuja experiência no território vizinho permitisse introduzir nas florestas de Goa um “regímen moderno e scientifico” ( ibidem : 3).
A proposta de Wolfango da Silva estava longe de ser inédita. Desde a década de 1850 que se multiplicavam os apelos à rentabilização e conservação das florestas de Goa, tanto nos relatórios dos administradores coloniais como nas páginas da imprensa local. Para os seus autores, as florestas representavam uma importante fonte de riqueza e a incúria com que eram administradas era apenas mais um sinal do atavismo da colónia, sobretudo quando comparada com a Índia Britânica. As propostas de contratação de um silvicultor britânico para administrar as florestas de Goa inserem-se assim num quadro mais vasto de discursos sobre o atraso da colónia, enunciados ao longo de todo o século xix por administradores coloniais, viajantes estrangeiros e pelas próprias elites goesas. Para a generalidade destes autores, a Índia Britânica surgia como ponto de referência e emulação, ocupando um lugar semelhante ao que a França ou o Reino Unido assumiam para os seus congéneres em Portugal. Cientes do crescente descompasso entre Goa e o Raj , intelectuais goeses como Wolfango da Silva viam no território vizinho uma fonte de inspiração, mas também de comparação crítica face às limitações da administração portuguesa.
Na primeira década do século xx, não parecia existir maior prova deste descompasso do que a capacidade britânica de moldar o território do subcontinente. Dos trabalhos de irrigação à rede de caminhos de ferro, a paisagem da Índia Britânica fora transformada, ao longo da segunda metade do século xix, pela ação de engenheiros e de cientistas. Tal como na Europa, onde, como sublinharam autores como David Blackbourn ou Chandra Mukerji, a transformação da paisagem foi um elemento central na construção dos Estados modernos, também na Índia colonial o domínio científico da natureza se tornou sinónimo de modernidade (Blackbourn, 2006; Mukerji, 2009). Mas este domínio não se cingia aos grandes projetos de obras públicas, como a linha férrea entre Bombaim (atual Mumbai) e Pune, através das escarpas do Bhor Ghat (Kerr, 1995). Pelo contrário, nos inícios do século xx, o exemplo paradigmático do controlo científico da natureza colonial era, provavelmente, o departamento florestal da Índia Britânica. Por volta de 1900, o Indian Forest Service administrava diretamente cerca de 8% do território do Raj , empregando mais de 10 mil funcionários e possuindo a sua própria instituição de ensino florestal, em Dehra Duhn, no sopé dos Himalaias (Barton, 2004; Rajan, 2006). Era então este modelo de “silvicultura imperial”, cedo transplantado para outros espaços coloniais, que inspirava as propostas de Wolfango da Silva.
Tomando como ponto de partida as propostas de contratação de um silvicultor britânico para as florestas de Goa e inspirando-se nas abordagens que têm enfatizado a importância crescente da ciência e da figura do “técnico” durante o “longo século xix” (Mitchell, 2002; Saraiva, 2007; Matos e Diogo, 2009), neste artigo investigam-se duas histórias inter-relacionadas. Em primeiro plano, a evolução das políticas de gestão dos recursos florestais da colónia, entre a década de 1850 e o início do século xx, e dos dilemas que as acompanharam. Em segundo plano, a interligação destas políticas com um contexto mais vasto de debates sobre a modernização da colónia e a sua relação com a Índia Britânica, que foram marcados pelo protagonismo reclamado pelas elites locais e que moldaram as formas de pensar o presente e o futuro de Goa ao longo deste período.
Contrariando a imagem enraizada de Goa como um espaço que permanecera à margem, literal e figurativamente, do modelo hegemónico do colonialismo moderno, vários estudos recentes argumentaram que nas décadas que mediaram entre o triunfo do constitucionalismo liberal, em 1834, e a proclamação da república, em 1910, se assistiu a diversas experiências de “modernidade” no campo político, literário e técnico-científico (Pinto, 2007; Machado, 2008; Lobo, 2013; Faria, 2014). Partilhando destas perspetivas, neste artigo argumenta-se que as florestas foram uma das arenas em que a condição de Goa enquanto colónia “moderna” e a sua relação com o território vizinho foram debatidas e negociadas.
Goa oitocentista: atavismo e modernidade
Num breve relatório sobre as colónias portuguesas na Índia, escrito em 1875 pelo juiz do Council of India , Thomas Erskine Perry (1806-1882), este oficial britânico, com décadas de experiência no subcontinente, caracterizava sucintamente a Índia Portuguesa como padecendo de um declínio multissecular, que a reduzira a um território insignificante, cujo único benefício para Portugal era a sua associação “à parte mais brilhante da sua história” (BL, IOR/C/138, fl. 63). No entanto, Erskine Perry não duvidava que, caso fosse possível adquirir estes territórios, os benefícios da administração britânica inaugurariam uma nova era de desenvolvimento. Esta imagem, presente na generalidade das descrições britânicas da Índia Portuguesa ao longo do século xix, assentava num conjunto de tópicos que realçavam a diferença entre os dois territórios. Como sublinhou Filipa Vicente, Goa surgia nestes relatos como um espelho invertido, cujo atavismo contrastava com o dinamismo do Raj britânico (Vicente, 2015: 29-32).
Esta imagem encontrava eco nos discursos portugueses sobre a Índia e, em particular, na produção intelectual das elites goesas. De facto, à semelhança do que aconteceu na metrópole, o tema da “decadência” de Portugal e do seu império foi revisitado, de forma quase obsessiva, por sucessivas gerações de intelectuais goeses ao longo de todo o século xix (Lobo, 2013: 6-7). Parte de uma crítica política e social à situação da colónia, este diagnóstico era também tributário, como sublinhou Rochelle Pinto, da peculiar condição “entre impérios” da Índia Portuguesa. Habitando um território periférico, e potencialmente descartável, num império cada vez mais centrado nas suas colónias africanas, as elites goesas assistiram de perto à profunda transformação do Raj na segunda metade do século xix. Consequentemente, esta proximidade exerceu uma poderosa influência sobre o seu pensamento e levou estas elites a recorrer frequentemente ao exemplo da Índia Britânica para enquadrar as suas críticas à administração colonial e para sustentar os seus próprios projetos políticos (Pinto, 2007: 48-55; Lobo, 2013: 151-157).
Ironicamente, contudo, estas críticas ao “atavismo” da Índia Portuguesa introduziam, em si mesmas, uma nota de “modernidade” nas dinâmicas políticas e intelectuais de Goa. Se, como sugeriu Talal Asad, a modernidade não deve ser encarada como uma realidade coerente, mas, sim, como um conjunto interligado de projetos orientados para a produção de um futuro almejado por alguns grupos (Asad, 2003: 12-16), a atuação das elites goesas ao longo do século xix foi profundamente moderna. Pelo menos desde meados do século anterior que estas elites vinham reclamando para si o papel de interlocutoras do poder colonial (Xavier, 2008: 381-440) e as oportunidades criadas pela consagração da ordem constitucional e pela sua capacidade de circular entre Goa, Portugal e o Raj permitiram-lhes intervir de forma cada vez mais ativa nos debates sobre o futuro da colónia. Como tal, as propostas de autores como Wolfango da Silva não podem ser desligadas de um quadro em que a autorrepresentação como protagonistas da modernização de Goa se tornou um elemento central da sua linguagem política. É, assim, neste contexto mais alargado que se pode enquadrar a publicação de manuais de técnicas agrícolas modernas pelos líderes das duas principais fações políticas da colónia, Bernardo Francisco da Costa (1821-1896) e José Inácio de Loiola (1834-1902), ou o papel da Escola Médico-Cirúrgica de Goa, de que Wolfango da Silva viria a ser diretor, na afirmação destas elites no seio da ordem colonial (Costa, 1872-1874; Loiola, 1896; Bastos, 2007).
Estas iniciativas coexistiam, por vezes em cooperação, por vezes em tensão, com os projetos da administração colonial. De facto, os anos que se seguiram ao triunfo liberal foram marcados por uma preocupação crescente com a modernização do território, tanto na metrópole como nas colónias, que se intensificou depois da Regeneração de 1851. Inaugurando um período de relativa paz e estabilidade, o regime regenerador apresentava-se também como um novo modo de fazer política, no qual a ciência e a tecnologia deviam ocupar um lugar central como garantes do progresso do país (Matos e Diogo, 2009: 351-352; Macedo, 2012). Para muitos dos seus arautos, como Fontes Pereira de Melo (1819-1887) ou João de Andrade Corvo (1824-1890), este programa político pressupunha um Estado capaz de intervir materialmente sobre o território, introduzindo os melhoramentos necessários. Neste sentido, e apesar da posição marginal de Goa no império português, a segunda metade do século xix foi marcada por um conjunto de projetos de investimento na rede viária da colónia, no desenvolvimento urbano e na modernização da agricultura. Este esforço, a que não terá sido alheio o peso crescente dos engenheiros na administração colonial, culminou na construção da linha férrea entre Goa e o Raj e no início das obras da futura cidade de Vasco da Gama (Faria, 2014; Pereira, 2015).
A maioria destes projetos ficou aquém das expectativas dos seus promotores. Porém, apesar das suas limitações e da sua inconsistência, a verdade é que estas experiências, e os debates que as acompanharam, tiveram um impacto considerável nos modos de pensar a colónia e o seu futuro. O seu peso crescente na política colonial é, em certo sentido, um sinal de que, como sugeriu Tiago Saraiva, as linguagens da modernidade e da ciência se estavam a tornar uma parte essencial da cultura política oitocentista (Saraiva, 2007: 264). Estas linguagens refletiam-se numa extensa produção de conhecimentos, de cariz mais ou menos científico, que assumiam uma importância cada vez maior na administração dos espaços coloniais, dos seus recursos e das suas populações. Neste quadro, e à semelhança do que vinha acontecendo na metrópole, as florestas de Goa tornaram-se num dos palcos de intervenção do estado colonial.
Políticas florestais na Índia Portuguesa
Apesar da ameaça crescente do desenvolvimento turístico e da indústria mineira, os dados mais recentes indicam que cerca de 30% da superfície do Estado de Goa é composta por florestas, total que inclui 500 km² de cobertura florestal muito densa nos contrafortes dos Gates Ocidentais.2 E, no entanto, até à segunda metade do século xviii, a paisagem de Goa era escassamente florestada. Constituído, até então, por três províncias – Ilhas, Salcete e Bardês (as “Velhas Conquistas”) –, o território da colónia era delineado pelos estuários dos rios Mandovi e Zuari, com os seus vales aluviais e campos de arroz. Porém, nas décadas finais do século xviii, este panorama foi alterado pela expansão do domínio colonial para as atuais talukas de Perném, Bicholim, Satari, Quepém, Canácona, Sanguém e Pondá, doravante apelidadas de “Novas Conquistas”. Estas províncias, que representam mais de da superfície total de Goa, possuem uma cobertura florestal assinalável, contendo vastas extensões de floresta húmida de folha caduca e algumas zonas de floresta tropical sempre verde (Alvares, 2002: 22-24). Seriam estes “bosques de optimas madeiras de construcção”, onde, nas palavras de um antigo administrador colonial, se encontravam “árvores de extraordinária grandeza” (Azevedo, 1842: 272), que despertariam o interesse das autoridades portuguesas.
As primeiras medidas para a administração destes recursos florestais foram adotadas logo na segunda metade do século xviii, tendo em vista a proteção de espécies arbóreas consideradas como essenciais para o abastecimento do arsenal, como a teca ( Tectona grandis L. f.) ou a puna ( Streculia foetida L.). Estas peças legislativas, inicialmente acompanhadas por um programa de plantação de árvores nas áreas das Velhas Conquistas (Rodrigues, 2006: 507-508), foram periodicamente repetidas e atualizadas ao longo dos anos seguintes. No entanto, a instabilidade política da primeira metade do século xix, tanto em Goa como em Portugal, acabou por limitar o alcance destas iniciativas. No início da década de 1840, a generalidade dos observadores tendia, então, a concordar com o governador Lopes de Lima (1840-1842) quando declarava não existir “legislação alguma regular, e permanente sobre os cortes de madeiras, e conservação das mattas, e florestas, mas apenas diversas disposições sem nexo” (AHU, SEMU, DGU, n.º 1896, 1L).
A importância de conferir ordem a “disposições sem nexo” era um leitmotiv comum entre os administradores coloniais do liberalismo. No caso das políticas florestais de Goa, a necessidade de legislar continuava a ser justificada pelo fornecimento de madeiras para a, cada vez mais diminuta, indústria de construção naval da colónia. Contudo, a partir da década de 1840, a regulação do acesso às florestas passou, gradualmente, a ser encarada como parte de um programa mais abrangente de desenvolvimento e fomento rural. Neste sentido, Lopes de Lima argumentava que a falta de uma política florestal coerente tivera como resultado a destruição de “excelentes florestas, encalvecendo-se aqueles outeiros, barreiras naturais das nossas terras, e mananciais de uma riqueza inexaurível” (BGEI, 1842, n.º 1: 5). Foi, assim, para evitar a “aniquilação” dessa riqueza que a administração colonial nomeou, por portaria de 1845, um administrador para as “matas nacionais” de Goa, que teria como principais funções a fiscalização, conservação e melhoramento dos recursos florestais da colónia (AHU, SEMU, DGU, n.º 1902, 1L).
No entanto, foi apenas em 1851 que as medidas avulsas que regiam as matas de Goa foram substituídas por um regulamento florestal. Este regulamento surgiu num contexto em que, como sublinhou Cristina Joanaz de Melo, o debate em torno do enquadramento jurídico da intervenção estatal nas florestas vinha ganhando fôlego entre as elites políticas nacionais (Melo, 2010: 81-84). Este debate culminara em 1849, com a apresentação na Câmara dos Deputados de um projeto de código florestal que abrangia os diferentes regimes de propriedade, pública e privada, contendo disposições relativas à metrópole e aos espaços ultramarinos. Embora este código nunca tenha chegado a ser votado, devido à interrupção das sessões parlamentares pelo golpe de estado da Regeneração, é provável que estes debates estivessem na mente do governador José Joaquim Januário Lapa (1851-1855) quando, poucos meses depois da sua chegada a Goa, fez aprovar provisoriamente um projeto de regulamento para a Administração das Matas de Goa.
Tendo como modelo a revisão de 1847 do regulamento da Administração Geral das Matas do Reino, este projeto repartia as florestas de Goa em quatro divisões, coincidentes com as divisões fiscais em que estavam organizadas as Novas Conquistas, e estabelecia uma estrutura burocrática composta por um administrador, um escrivão e quatro guardas ( Regulamento , 1851). À semelhança da sua congénere metropolitana, esta Administração tinha como incumbência fiscalizar as “Mattas do Estado”, categoria que incluía não só as áreas florestais em domínio público, mas ainda os areais do litoral e as “serras de mattos maninhos, ou incultos e baldios” ( ibidem : 3-4). No entanto, e ao contrário do que acontecia no reino, o regulamento deixava ainda em aberto a possibilidade de a Administração supervisionar as florestas pertencentes às comunidades agrícolas e aos particulares. Ao longo de todo o século xix, alguns administradores procuraram assim argumentar que estas florestas se encontravam no senhorio direto da Fazenda Pública, num regime semelhante à enfiteuse, argumento esse que seria fortemente contestado pelos grupos locais.
Ao apresentar este projeto de regulamento, o objetivo de Januário Lapa passava, nas suas palavras, por estabelecer um quadro legislativo “em harmonia com a legislação pátria e os Códigos Florestaes das Nações Civilizadas” (AHU, SEMU, CU, Consultas, caixa 10, doc. 443). Mas, para tal, tornava-se necessário responder a duas questões iniciais. Em primeiro lugar, determinar a extensão das florestas pertencentes ao Estado, demarcá-las e inventariar os recursos nelas existentes. Em segundo, controlar o acesso das populações locais a estas florestas, proibindo o corte de algumas espécies arbóreas e introduzindo um sistema de licenças para regular a prática da agricultura itinerante por queimada ( kumri ou cumerins ). Estas restrições, comuns a diferentes espaços coloniais, eram justificadas pelo recurso a um argumentário baseado na denúncia dos efeitos nocivos destas práticas, tema popularizado pelas obras de Alexander von Humboldt (1769-1859) e que já ocupara um papel central nos discursos de conservação florestal na Índia Britânica (Grove, 1995: 428-441; Rajan, 2006: 64-74). Como tal, o texto do regulamento de 1851 principiava com um aviso de que “o clima todos os dias se torna menos salubre pela ausência das florestas, que teem deixado extinguir” ( Regulamento , 1851: 1).
Com a aprovação do regulamento pelas autoridades de Lisboa, em 1856, Goa passava a ser a primeira colónia portuguesa com uma burocracia florestal moderna. Mesmo num contexto em que a criação de departamentos florestais se tornara uma prática comum a vários territórios coloniais, o regulamento das matas de Goa foi relativamente precoce, antecipando-se à reorganização dos serviços silvícolas das Índias Orientais Holandesas, na década de 1860, e à criação da Inspeción General de Montes, nas Filipinas, em 1863 (Potter, 2003). No entanto, apesar desta precocidade, a verdade é que Wolfango da Silva estava longe de ser o único a criticar o funcionamento da Administração das Matas. Pelo contrário, das páginas da imprensa local aos relatórios dos próprios administradores, o consenso parecia ser que muito estava ainda por fazer.
Florestas, ciências e colonialismo
Ao longo da segunda metade do século xix, as críticas à atuação da Administração das Matas centraram-se, principalmente, na sua incapacidade de responder às duas questões previamente enunciadas: demarcar os espaços florestais e regular a sua exploração. Para esta incapacidade contribuía, em primeiro lugar, o perfil dos administradores. De facto, o regulamento de 1851 preconizava que, embora este cargo pudesse ser temporariamente ocupado por oficiais do exército, seria desejável que os futuros administradores das matas tivessem “pelo menos, noções das Sciencias naturaes” e “conhecimentos especiaes de Agricultura florestal, e de Geologia” ( Regulamento , 1851: 8). Todavia, o estado incipiente do ensino agrícola e florestal em Portugal e as dificuldades em atrair técnicos para Goa levaram a que, até ao final da década de 1880, a Administração tenha permanecido, quase exclusivamente, nas mãos de militares.3
Neste contexto, o estudo científico das florestas de Goa só começou a ser efetuado na década de 1860, sob a supervisão de António Lopes Mendes (1835-1894). Formado como veterinário-lavrador no Instituto Agrícola de Lisboa, Lopes Mendes chegara à Índia em 1863 e, apesar de a sua formação não incluir estudos de silvicultura, foi encarregado nesse mesmo ano de participar numa comissão para investigar o estado das “matas nacionais” (Ferreira, 2016). Esta comissão, que incluía ainda o administrador das matas, o tenente-coronel João Luís de Oliveira, e um funcionário pertencente às elites goesas católicas, Filipe Nery Xavier, deveria então percorrer as regiões das Novas Conquistas e examinar as suas florestas. Interrompido pelo início das monções, este estudo só seria retomado no início da década seguinte, quando uma nova comissão, que contou uma vez mais com a presença de Lopes Mendes, apresentou um relatório detalhado sobre a matéria.
Publicado em 1871, e acompanhado por mapas topográficos e amostras de madeiras, o relatório desta comissão ilustrava, em grande medida, a visão do Estado colonial sobre os recursos florestais de Goa (BGEI, 1871, n.º 43-46). Os comissários começavam, assim, por apresentar um cálculo aproximado da superfície total das florestas pertencentes ao Estado, avaliada em 27 000 hectares, e por propor a sua divisão em três classes: as “matas reservadas”, destinadas a ser conservadas, “as matas de exploração”, que deviam suprir as necessidades das obras públicas do Estado e, por fim, as “matas gerais”, exploradas em função do mercado e da venda a particulares. Esta classificação seria, assim, a pedra de toque de uma reorganização administrativa, baseada na ideia de que os recursos florestais eram uma “importante fonte de receita pública”, que incluía a introdução de um sistema mais restritivo de licenças para cortes e cumerins , a aplicação de um regime científico de tratamento das florestas e o aumento do número de guardas. Para justificar estas medidas, o relatório recorria ao exemplo da Índia Britânica, cujo modelo de gestão florestal era frequentemente citado nas suas páginas (BGEI, 1871, n.º 45: 243-246).
O relatório da comissão de 1870-1871 seria um ponto de referência para todos os debates sobre a Administração das Matas de Goa ao longo do século xix. No entanto, o impacto direto das suas propostas parece ter sido diminuto. Por um lado, uma parte significativa das florestas ficou por demarcar, devido à ausência de um cadastro geral da colónia que permitisse definir com exatidão quais eram os terrenos pertencentes ao Estado. Por outro, os próprios comissários reconheciam não possuir o conhecimento necessário para efetuar um mapeamento detalhado da superfície florestal de Goa, semelhante aos que começavam a ser feitos em Portugal por silvicultores formados nas escolas alemãs e francesas (Pereda, 2017). Sendo assim, numa cronologia em que a silvicultura colonial se orientava, cada vez mais, para a intervenção direta no território (Rajan, 2006: 90-96), o quotidiano dos administradores das matas de Goa continuava a ser pautado por um controlo meramente burocrático do acesso às florestas. Até meados da década de 1880, a sua intervenção resumiu-se, então, a algumas tentativas esporádicas de plantação de tecas nas zonas que tinham sido demarcadas pela comissão de 1870-1871 (BGEI, 1881, n.º 87: 526).
Ao longo da segunda metade do século xix, este desencontro entre as aspirações de territorialização da gestão dos recursos florestais e as dificuldades de a implementar de forma efetiva marcou os discursos de sucessivos administradores, que apresentavam uma imagem crítica do estado das florestas de Goa e da falta de meios para as administrar. Nos seus relatórios, o tenente-coronel António Xavier da Silva Telles declarava, então, que a escassez de pessoal e de infraestruturas (como depósitos para as madeiras ou casas para guardas) impossibilitavam o estabelecimento de um regime científico de exploração, pelo que o abate de árvores continuava a ser efetuado através de um sistema de cortes irregulares, acabando muita madeira por permanecer no local onde fora cortada ou por se perder nos locais de armazenamento, “acometida de certa qualidade de caranguejos que a furam e danificam” (BGEI, 1879, n.º 37: 293-294).4
Estes discursos críticos, que serviam em parte como forma de reivindicar mais meios para a Administração das Matas e de sublinhar a importância das políticas florestais junto do governo colonial, para quem estas estavam longe de ser uma prioridade, intensificaram-se nas vésperas do século xx. Para tal contribuiu, desde logo, a abertura do caminho de ferro entre Mormugão e a Índia Britânica, em janeiro de 1888. No início da década de 1890, o fornecimento de combustível para a linha férrea passou, assim, a ser a principal fonte de rendimento da Administração (Queiroga, 1896: 7). Mas, o fator mais decisivo seria a mudança no perfil dos administradores. No final da década de 1880, na sequência da reorganização dos serviços agrícolas do ultramar, Goa passou a contar com a presença de um “agrónomo do Estado”, cargo que era frequentemente acumulado por estes técnicos com o de administrador das matas.
Nos últimos anos do século xix, os técnicos começavam, assim, a substituir os militares na gestão dos recursos florestais da colónia. Entre esta nova geração de administradores contava-se Luís de Mascarenhas Gaivão, formado pela École Nationale Forèstiere, em Nancy, que viria a ser o primeiro engenheiro-silvicultor a ocupar o cargo, entre 1892 e 1896 (AHU, SEMU, DGAPC, n.º 785). Porém, apesar deste interesse renovado pela gestão científica dos recursos florestais, a verdade é que a Administração das Matas continuava a deparar-se com vários problemas, derivados sobretudo da falta de meios financeiros e de pessoal qualificado. Este período seria, então, marcado por novas propostas de reforma das políticas florestais de Goa, crescentemente sustentadas pelo recurso a uma linguagem transnacional da ciência florestal. Esta tendência é ilustrada pelos relatórios escritos pelo agrónomo João Vasco de Carvalho, sucessor de Mascarenhas Gaivão.
Ocupando o cargo de administrador das matas entre 1897 e 1903, Vasco de Carvalho traçava um quadro crítico dos trabalhos realizados nas décadas anteriores. Os problemas começavam, desde logo, pela inexistência de dados credíveis sobre a superfície florestal da colónia. As únicas informações a este respeito provinham das estimativas da comissão de 1870-1871, que Vasco de Carvalho, baseando-se no parecer técnico do seu antecessor, considerava serem exageradas, devendo ser “reduzidas à terça parte” (Carvalho, 1898: 4). Declarando que “avaliações d’aquella ordem não se fazem por simples conjecturas ou meras suposições, mas unicamente medindo a superfície e cubando os massiços florestais”, o administrador afirmava que nas condições presentes só podia atestar “que o revestimento florestal de todo o território de Goa é considerável e o seu valor em dinheiro bastante elevado”. Alertava, no entanto, para os perigos desta falta de informações, uma vez que na sua ausência se multiplicavam os cortes ilegais, a realização de queimadas em zonas reservadas e as usurpações dos direitos do Estado.
Para este estado de coisas contribuía, ainda, o escasso número de guardas disponíveis para vigiar as matas nacionais. Embora esse número tivesse crescido ao longo das décadas anteriores, Vasco de Carvalho calculava que, mesmo tomando como base uma estimativa conservadora da superfície florestal da colónia, cada um dos 27 guardas existentes no ano de 1897 estava encarregado de zelar por uma área superior a 500 hectares “absolutamente desprovidos de caminhos” (Carvalho, 1898: 5). À falta de efetivos acrescia a ausência de conhecimentos técnicos e de equipamentos básicos. Nestas condições, o administrador afiançava que “nas mattas de Goa não se executam nem nunca executaram, creio eu, trabalhos de conservação e de melhoramento de espécie alguma” ( ibidem : 7). Perante este cenário, não hesitava então em declarar: “abrigo até a convicção, baseado no pouco que tenho visto e no muito que de boa fonte tenho ouvido dizer que, technicamente falando, nem mesmo mattas existem. O que existe, segundo presumo, não passa de brenhas , na verdadeira accepção da palavra” ( ibidem : 4).
Para João Vasco de Carvalho, como para a maioria dos silvicultores oitocentistas, uma floresta só poderia verdadeiramente ser classificada como tal quando possuísse uma superfície ordenada, cujos recursos pudessem ser geridos cientificamente. Face a este paradigma em que, como mostrou Ravi Rajan, a floresta passara cada vez mais a ser vista como uma “infraestrutura” do Estado (Rajan, 2006: 47), só algumas das matas de Goa é que poderiam, segundo o parecer de Vasco de Carvalho, “merecer esse nome técnico” (Carvalho, 1899: 3). Esta situação não era, todavia, irreversível. Para que estas florestas pudessem, por fim, conhecer um regime científico, Vasco de Carvalho propunha-se então introduzir mudanças no funcionamento da Administração. Estas incluíam a formação dos couteiros na realização de cortes de limpeza e desbaste, a aquisição de instrumentos essenciais, como fitas métricas e compassos florestais, e a introdução de um sistema de exploração florestal por talhadia ( ibidem : 8-19).
Estas iniciativas foram acompanhadas pela aprovação de um novo regulamento, em 1899, e por novos trabalhos de demarcação das “matas nacionais”, sob a égide da recém-criada Repartição de Agrimensura (BGEI, 1900, n.º 15: 195; BGEI, 1907, n.º 53: 646). No início do século xx, o domínio estatal sobre as florestas de Goa estava assim em processo de consolidação, simbolizada pela colocação de marcos de pedra em torno das matas, pelo levantamento de plantas perimetrais, pela abertura de aceiros e por um controlo mais apertado do acesso aos recursos florestais. No entanto, e apesar destes desenvolvimentos, no final da década de 1910 as florestas continuavam a ser um foco de ansiedade para as autoridades coloniais. Esta ansiedade, marcada pelo sentimento de desadequação face ao modelo da Índia Britânica, transparecia do relatório do administrador Carlos de Sousa e Brito que, em 1911, declarava que o estado de conservação das florestas estava longe de ser “lisonjeiro”, acrescentando que vastas extensões estavam ainda por demarcar e que as plantas levantadas só tinham “servido por enquanto para ornamentação das paredes da casa onde funciona a respectiva administração” (AHU, SEMU, DGU, n.º 288, 2G).
Na sombra do Raj
Enquadrados pelo contexto específico da Goa oitocentista, estes dilemas integravam, no entanto, uma larga genealogia de debates em torno da gestão dos recursos florestais que eram, pelo menos em parte, comuns a diferentes espaços coloniais e não coloniais (Rajan, 2006: 100-102). Mas, apesar do peso crescente desta linguagem científica transnacional, estes debates estavam longe de se cingir aos relatórios de agrónomos e silvicultores. Pelo contrário, um breve relance pelas páginas da imprensa goesa mostra que, ao longo de todo o século xix, as políticas florestais que se têm vindo até agora a analisar foram discutidas, escrutinadas e criticadas pelas elites políticas e intelectuais da colónia.
As opiniões destas elites estavam longe de ser unânimes. Na sequência do relatório da comissão de 1870-71, por exemplo, os principais periódicos da colónia, como O Ultramar e A Índia Portugueza , publicaram editoriais extremamente críticos do trabalho da comissão, mostrando-se céticos quanto à fiabilidade dos cálculos apresentados para a superfície florestal da colónia e recorrendo à máxima liberal de que “o Estado é o pior dos administradores” para criticar a monopolização estatal do acesso aos recursos florestais ( A Índia Portugueza , 1871a: 1). Esta opinião era, todavia, contrariada por outras vozes, que defendiam a necessidade de o Estado agir sobre as florestas para rentabilizar os seus recursos ( A Gazeta de Goa , 1871: 2). Num e noutro caso, porém, o que unia estas elites era a forma como reivindicavam um papel nestes debates. Neste sentido, em junho de 1871, O Ultramar apelava ao governo para que aguardasse antes de “proferir o seu juízo sobre o relatório que se está a publicar acerca das mattas, enquanto a imprensa do país não o discuta” ( O Ultramar , 1871: 3).
Assim, as propostas de Wolfango da Silva vinham na senda de uma longa história de intervenções das elites goesas na discussão sobre as políticas florestais da colónia, a qual, por sua vez, se inseria num quadro mais vasto de participação destas elites nos debates políticos da colónia. Mas, ao tomar como modelo a administração florestal do Raj , as suas propostas evidenciavam igualmente a “sombra” que a Índia Britânica projetava sobre as dinâmicas políticas e intelectuais de Goa. Como sublinhou Rochelle Pinto, esta influência refletia-se no modo como as elites goesas recorriam, de forma cada vez mais enfática, ao exemplo do território vizinho para enquadrar as suas críticas à administração portuguesa (Pinto, 2007: 52-54). Deste modo, a frase que inaugura este artigo, “ Goa is a Paradise; what a pity you don’t care much for it ”, podia ser lida, pelo menos em parte, como uma interpelação irónica dirigida às autoridades coloniais.
De resto, no que dizia respeito às políticas florestais, a “sombra” do Raj estava longe de ser limitada ao pequeno enclave de Goa. Como vimos anteriormente, nas décadas que se seguiram à promulgação do primeiro Indian Forest Act , em 1865, os serviços florestais transformaram-se num dos braços mais ativos da administração colonial britânica. Sob a égide de silvicultores germânicos, como Dietrich Brandis (1824-1907) e Wilhelm Schlich (1840-1925), o Indian Forestry Service (IFS) tornou-se numa referência internacional no que dizia respeito à gestão das florestas (Barton, 2004: 58-67). Citado por administradores coloniais e silvicultores, da Oceânia à América do Norte, não é assim de admirar que este modelo tenha exercido uma profunda influência sobre a Índia Portuguesa. Ainda que os administradores florestais do Raj não fossem imunes a alguns dos dilemas com que os seus congéneres em Goa se debatiam, desde os conflitos com outros setores do governo colonial às dificuldades em controlar o território e as suas populações, para a maioria dos observadores o IFS era um exemplo a invejar e copiar.
Nestas circunstâncias, Wolfango da Silva estava longe de ser o único a olhar para a Índia Britânica em busca de um modelo. Desde a promulgação do primeiro regulamento das matas, em 1851, que, como se viu, o exemplo britânico era citado pela administração colonial portuguesa para justificar os seus esforços de controlo dos recursos florestais de Goa. No entanto, a influência da Índia Britânica não era linear. Se algumas vozes, entre elas as dos membros da comissão de 1870-1871, afirmavam que a proximidade geográfica e ecológica entre os dois territórios justificava que se adotassem políticas semelhantes, outras sublinhavam, ao invés, a especificidade da organização política e social de Goa. Na década de 1870, era este o ponto de vista adotado pelos editores da Índia Portugueza, que advertiam: “se temos em merecida consideração a experiência e o tacto governativo dos nossos vizinhos, estamos mui longe de pensar que todos os seus regulamentos são aplicáveis para o nosso país” ( A Índia Portugueza , 1871b: 1).
No entanto, nas últimas décadas do século xix, as referências ao modelo britânico tornaram-se cada vez mais comuns, quer entre os administradores coloniais, quer entre as elites goesas, à medida que a dicotomia entre os dois territórios se acentuava (Lobo, 2013: 148-151; A Convicção , 1893: 1). Esta dicotomia foi corporizada, material e simbolicamente, pela inauguração da ligação ferroviária entre as duas colónias. Resultado do tratado luso-britânico de 1878, e vigorosamente contestado pelas elites locais que o encaravam como um símbolo do predomínio dos interesses britânicos sobre a colónia, o caminho de ferro de Mormugão tornou-se um dos alvos prediletos dos discursos críticos sobre o “atraso” da Goa finissecular. Todavia, a par desta importância simbólica, a linha férrea marcou também de forma indelével o modo como a paisagem era percecionada. Facilitando a comunicação entre Goa e a Índia Britânica, as viagens ferroviárias tornaram-se um dos temas recorrentes dos relatos escritos por funcionários em comissão na colónia portuguesa. Olhando pelas janelas da sua carruagem, viajantes como o capitão de fragata Hypacio de Brion, contrastavam assim as “matas selvagens e virgens” que marcavam a paisagem de Goa, com as florestas “clareadas e cuidadas” que se apresentavam depois da estação britânica de Castle Rock (Brion, 1906: i-20).
A consolidação destes discursos – em que as florestas surgiam como mais um exemplo do contraste entre a “modernidade” do Raj britânico e o “atavismo” da colónia portuguesa – marcou, então, o desenvolvimento das políticas florestais em Goa. Deste modo, durante a primeira metade do século xx, a ideia de que estas políticas só teriam sucesso se fossem coordenadas por um técnico britânico estava longe de ser exclusiva de Wolfango da Silva. Alguns anos antes da publicação dos seus Estudos , a Direção Geral do Ultramar decidiu, então, rejeitar as candidaturas de agrónomos para o cargo de administradores das matas, alegando que a experiência técnica que apenas a formação em silvicultura oferecia “teem particular importância por se tornar indispensável fazer entrar as mattas indianas num verdadeiro regímen florestal” (AHU, SEMU, DGU, n.º 322, 2G). Uma vez que, à exceção do curto mandato de Luís de Mascarenhas Gaivão, fora impossível encontrar um técnico português disponível para partir para Goa, o caminho a seguir passava pela contratação de um silvicultor estrangeiro, de preferência com experiência no território britânico, que teria assim “a vantagem de ter praticado em florestas situadas precisamente nas mesmas condições em que se encontram as nossas” (AHU, SEMU, DGU, n.º 289, 2G).
As diligências para este fim iniciaram-se no verão de 1905, tendo como protagonista o agrónomo Jaime Batalha Reis (1847-1934), cônsul português em Londres. No entanto, as negociações cedo se depararam com dificuldades devidas, ironicamente, à escassez de dados que permitissem aos eventuais candidatos “avaliar o trabalho a fazer”, que incluiria o inventário das espécies florestais existentes, o levantamento de plantas perimetrais das matas e a implementação de um regime científico para a sua exploração (AHU, SEMU, DGU, n.º 289, 2G). Assim, após meses de contactos junto do Foreign Office, Batalha Reis viu-se obrigado a informar a Direção Geral do Ultramar de que não existia, de momento, no IFS, qualquer silvicultor em condições de ser dispensado, sendo que, em qualquer caso, as remunerações de tal técnico estariam “em grande desproporção” com os meios financeiros ao dispor da administração colonial em Goa.
O fracasso destas negociações, a que se seguiu uma tentativa falhada de contratar um silvicultor holandês com experiência nos serviços florestais de Java, era, em certo sentido, simbólico dos sucessivos revezes que marcaram as tentativas de introduzir um regime científico para a administração das florestas de Goa. Mas, por outro lado, estas diligências são também um indício de que as práticas de administração colonial eram, cada vez mais, enquadradas pela circulação transimperial de modelos, ideias e práticas. Estas dinâmicas eram, de resto, exemplificadas pelo próprio IFS. Liderados, até ao início do século xx, por silvicultores de origem germânica, formados nas universidades e escolas florestais da Europa, os serviços florestais da Índia Britânica eram também um centro de produção de saber colonial à escala do globo, não só por via dos técnicos enviados para outras colónias, mas também pelo seu papel na difusão de uma cultura científica partilhada.
Neste âmbito, mais do que serem apenas uma nova prova da subalternidade de Goa (e do império português), as propostas de Wolfango da Silva podem igualmente ser lidas como um sinal da sua ambição de que a pequena e depauperada colónia portuguesa não ficasse à margem dos debates e dos circuitos da “modernidade”. Não por acaso, o médico goês escolheu principiar o seu texto com uma menção ao congresso agrícola e florestal realizado em Viena, por ocasião da Exposição Mundial de 1873, que mostrara como “a ruína das florestas é um mal geral, considerava-se mesmo um mal da civilização” (Silva, 1910: 1). No seu entender, então, se a gestão científica das florestas era um desafio que interpelava todas as “nações civilizadas”, a Índia Portuguesa, pela mão das suas elites, não podia permanecer alheia a um movimento internacional que prometia transformar “esta terra abençoada dando-lhe o devido valor no mundo…!” ( ibidem : 2-3).
Considerações finais
Entre a segunda metade do século xix e as primeiras décadas do século xx, as florestas tornaram-se num dos campos de intervenção dos Estados coloniais. Da África Oriental às Filipinas, a implantação de estruturas burocráticas de administração florestal transformou a relação das populações com as florestas, desagregou os espaços florestais do contexto rural em que se inseriam e modificou a paisagem e a ecologia de vastas regiões do globo (Peluso e Vandergeest, 2006). Marcado pela circulação de linguagens, modelos e práticas entre diferentes espaços, pela tensão entre o olhar homogeneizador da ciência florestal e os vários contextos locais e pela afirmação de uma elite técnico-científica de silvicultores coloniais, este processo de institucionalização das burocracias florestais, que teve na Índia Britânica o seu expoente máximo, oferece um lugar privilegiado de onde observar as relações entre ciência, colonialismo e modernidade.
Ao debruçar-se sobre os projetos de administração florestal que foram concebidos em Goa ao longo deste período, neste artigo procurou destacar-se a importância que as florestas tiveram no pensamento das autoridades coloniais portuguesas. Neste sentido, o primeiro objetivo na elaboração deste texto foi demonstrar que a Índia Portuguesa não permaneceu à margem das dinâmicas de intervenção do Estado colonial no território. Embora pautadas pela escassez de meios financeiros e técnicos, pelas dificuldades de controlar o terreno e por sucessivos revezes e queixas, as políticas florestais na Goa oitocentista foram, ainda assim, marcadas pela ambição de acompanhar de perto as iniciativas que estavam a ter lugar em Portugal e no Raj . Esta ambição era, de resto, parte de um projeto mais vasto de modernização da colónia, em que a exploração científica dos recursos naturais tinha um lugar de destaque. Assim, a análise das políticas florestais permite-nos aceder a um conjunto mais alargado de debates sobre a condição de Goa enquanto colónia moderna, que marcaram a história da colónia ao longo de todo o século xix.
Como se procurou mostrar nas páginas anteriores, estes debates foram dominados pela influência da Índia Britânica. Comum a quase todas as dimensões da vida da Goa colonial, esta influência foi particularmente decisiva no caso da administração florestal, devido ao protagonismo internacional do Indian Forestry Service. Deste modo, muitas das medidas legislativas, discursos científicos e estratégias de afirmação que caracterizaram as políticas florestais de Goa limitavam-se a refletir o que acontecia no território vizinho. Mas, apesar desta preponderância, a institucionalização da administração florestal na Índia Portuguesa foi também marcada por algumas particularidades. A mais evidente destas foi o papel que as elites políticas e intelectuais de Goa reivindicaram neste processo. Apresentando-se como promotores da modernização da colónia, figuras como Wolfango da Silva procuraram assim participar ativamente no debate em torno das políticas florestais. Algumas décadas mais tarde, esta participação levaria inclusivamente a que os serviços agrícolas e florestais fossem liderados por uma nova geração de técnicos goeses formados em Portugal, como o “descendente” Fernando César Corrêa Mendes ou o “natural” Aires de Miranda.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A Convicção (1893), n.º 330. Saligão.
A Gazeta de Goa (1871), n.º 330. Nova Goa.
A Índia Portugueza (1871a), n.º 459. Orlim.
A Índia Portugueza (1871b), n.º 550. Orlim.
Alvares, Claude (org.), Fish, Curry and Rice. A Sourcebook on Goa, its Ecology and Lifestyle . Mapusa: The Goa Foundation. [ Links ]
Asad, Talal (2003), Formations of the Secular. Christianity, Islam, Modernity . Stanford, CA: Stanford University Press. [ Links ]
Azevedo, Manoel Felicíssimo Louzada de Araújo de (1842), “Azia Portugueza. Segunda memoria descriptiva e estatística das possessões portuguezas na Azia, e seu estado actual”, Annaes Maritimos e Coloniaes , Segunda Série, 6.
Barton, Gregory (2004), Empire Forestry and the Origins of Environmentalism . Cambridge: Cambridge University Press. [ Links ]
Bastos, Cristiana (2007), “Medicina, império e processos locais em Goa, século xix”, Análise Social , 42(182), 99-122.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1842), n.º 1. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1871), n.º 43-46. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1874), n.º 58. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1879), n.º 37. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1881), n.º 87. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1885), n.º 147. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1900), n.º 15. Nova Goa.
BGEI – Boletim Geral do Estado da Índia (1907), n.º 53. Nova Goa.
Blackbourn, David (2006), The Conquest of Nature. Water, Landscape and the Making of Modern Germany . New York: W. W. Norton & Company. [ Links ]
Brion, Hypacio de (1906), Duas mil l éguas no Hindustão . Lisboa: A Editora. [ Links ]
Carvalho, João Vasco de (1898), Relatório sobre o serviço das mattas de Goa . Nova Goa: Imprensa Nacional. [ Links ]
Carvalho, João Vasco de (1899), Relatório sobre o serviço das mattas de Goa . Nova Goa: Imprensa Nacional. [ Links ]
Costa, Bernardo Francisco da (1872-1874), Manual prático do agricultor indiano . Lisboa: Tipografia de Castro e Irmão. [ Links ]
Faria, Alice Santiago (2014), Architecture coloniale portugaise à Goa. Le Département des Travaux Publics, 1840-1926 . Saarbrücken: Presses Académiques Francophones. [ Links ]
Ferreira, José (2016), “A Comissão das Matas do Estado da Índia (1863). Ciência, colonialismo e natureza nas Novas Conquistas, Goa”, Cultura, Espaço & Memória , 7, 113-130.
Forest Survey of India (2017), India State of Forest Report 2017 . Dehradun, India: Ministry of Environment, Forest and Climate Change. Consultado a 10.03.2018, em http://fsi.nic.in/details.php?pgID=sb_64.
Grove, Richard (1995), Green Imperialism. Colonial Expansion, Tropical Island Edens and the Origins of Environmentalism, 1600-1860 . Cambridge: Cambridge University Press. [ Links ]
Lobo, Sandra (2013), “O desassossego goês. Cultura e política em Goa do liberalismo ao acto colonial”. Tese de Doutoramento em História e Teoria das Ideias apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.
Loiola, José Inácio de (1896), Culturas indianas . Orlim: Tipografia da Índia Portuguesa. [ Links ]
Kerr, Ian J. (1995), Building the Railways of the Raj , 1850-1900 . Delhi: Oxford University Press. [ Links ]
Macedo, Marta (2012), Projectar e construir a nação. Engenheiros, ciência e território em Portugal no século xix . Lisboa: ICS – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Machado, Everton (2008), “Christianisme, castes et colonialisme dans le roman Les Brahmanes (1866) du goannais Francisco Luís Gomes (1829-1869)”. Tese de Doutoramento apresentada à Université Paris iv, Paris, França.
Matos, Ana Cardoso de; Diogo, Maria Paula (2009), “Le rôle des ingénieurs dans l’administration portugaise, 1852-1900”, Quaderns d’Història de l’Enginyeria , x, 351-365.
Melo, Cristina Joanaz de (2010), “Contra cheias e tempestades: consciência do território, debate parlamentar e políticas de águas e de florestas em Portugal 1852-1886”. Tese de Doutoramento apresentada ao European University Institute, Firenze, Itália.
Mitchell, Timothy (2002), Rule of Experts. Egypt, Techno-politics, Modernity . Berkeley, CA: University of California Press. [ Links ]
Mukerji, Chandra (2009), Impossible Engineering. Technology and Territoriality on the Canal du Midi . Princeton, NJ: Princeton University Press. [ Links ]
O Ultramar (1871), n.º 637. Margão.
Peluso, Nancy Lee; Vandergeest, Peter (2006), “Empires of Forestry: Professional Forestry and State Power in Southeast Asia. Part 1”, Environment and History , 12, 31-64.
Pereda, Ignacio Garcia (2017), “Creando el bosque matemático en la década de 1860. Barros Gomes en la Mata Nacional da Machada (Barreiro, Portugal)”, in Pedro Fidalgo (org.), Estudos da Paisagem , 2. Lisboa: IHC – Instituto de História Contemporânea, 217-240.
Pereira, Hugo Silveira (2015), “Fontismo na Índia Portuguesa: o caminho-de-ferro de Mormugão”, Revista Portuguesa de História , 46, 237-262.
Pinto, Rochelle (2007), Between Empires. Print and Politics in Goa . New Delhi: Oxford University Press. [ Links ]
Potter, Lesley (2003), “Forests versus Agriculture: Colonial Forest Services, Environmental Ideas and the Regulation of Land-use Change in Southeast Asia”, in Lye Tuck-Po; Wil de Jong; Abe Ken-ichi (orgs.), The Political Ecology of Tropical Forests in Southeast Asia: Historical Perspectives . Kyoto: Kyoto University Press, 29-71.
Queiroga, José da Luz Brito (1896), Relatório da administração geral das mattas do Estado da Índia . Nova Goa: Imprensa Nacional. [ Links ]
Rajan, Ravi (2006), Modernizing Nature. Forestry and Imperial Eco-development, 1800-1950 . Oxford: Oxford University Press. [ Links ]
Rodrigues, Eugénia (2006), “A agricultura: entre as comunidades de aldeia e os empreendimentos estatais”, in Maria de Jesus dos Mártires Lopes (coord.), O império oriental (1660-1820) , tomo i. Lisboa: Estampa, 449-510. Nova história da expansão portuguesa , vol. v, direção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques.
Regulamento para a administração geral das mattas do Estado da Índia (1851). Nova Goa: Imprensa Nacional.
Saraiva, Tiago (2007), “Inventing the Technological Nation: The Example of Portugal (1851-1898)”, History and Technology , 23(3), 263-273.
Silva, Francisco António Wolfango (1910), “Proposta sobre o nosso regímen florestal”, Estudos económicos e sociais sobre a Índia Portuguesa propostos à Junta Geral da Província . Nova Goa: Imprensa da Casa Luzo Francesa.
Vicente, Filipa (2015), Entre dois impérios. Viajantes britânicos em Goa (1800-1940) . Lisboa: Tinta-da-China. [ Links ]
Xavier, Ângela Barreto (2008), A invenção de Goa. Poder imperial e conversões culturais nos séculos xvi e xvii . Lisboa: ICS – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Fontes manuscritas AHU, SEMU, DGU – Arquivo Histórico Ultramarino, Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, Direção Geral do Ultramar, n.os 288, 289, 322, 1896, 1902. AHU, SEMU, DGAPC – Arquivo Histórico Ultramarino, Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, Direção Geral da Administração Política e Civil, n.º 785. AHU, SEMU, CU – Arquivo Histórico Ultramarino, Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, Conselho Ultramarino, Consultas, caixa 10. BL – British Library, IOR/C/138, f.63, Note on the Portuguese possessions in India, 1875.
Artigo recebido a 15.12.2017 Aprovado para publicação a 23.03.2018
NOTAS
1 Este artigo é parte de uma investigação financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do programa doutoral PIUDHist (SFRH/BD/52283/2013). Agradeço aos autores dos dois pareceres anónimos pelas críticas e sugestões que permitiram afinar os argumentos deste artigo.
2 India State of Forest Report 2017 (Forest Survey of India, 2017).
3 Tal como acontecia no serviço de obras públicas, a maioria destes oficiais eram lusodescendentes, formados no curso de engenharia da Academia Militar de Goa, posteriormente Escola Matemática e Militar (Faria, 2014). Até ao final da década de 1880, a única exceção a esta regra foi o curto mandato, entre 1874 e 1878, de Duarte Pacheco, agrónomo graduado pelo Instituto Agrícola (BGEI, 1874, n.º 58: 291). Para lá de ter sido o primeiro agrónomo a ocupar o cargo, Duarte Pacheco, filho de um antigo deputado pela Índia, foi também o primeiro a ser oriundo das elites “naturais” goesas.
4 Apesar das dificuldades, a Administração chegava regularmente ao final do ano com um saldo financeiro positivo, graças aos fornecimentos para estabelecimentos públicos, às apreensões de madeiras abatidas ilegalmente e à exploração de produtos florestais menores (BGEI, 1885, n.º 147: 589).