A figura de André Ventura e a trajectória do partido Chega têm suscitado um intenso debate sobre o crescimento da extrema-direita e as transformações no sistema partidário português. Inserido num movimento editorial internacional que tem procurado compreender as metamorfoses contemporâneas e a radicalização da direita - e encontrar um nome para a coisa - o livro de Riccardo Marchi 2 constitui o primeiro trabalho académico sobre a variação portuguesa deste processo global. O problema que organiza a investigação é justamente o da classificação do partido, ou seja, como é que “o partido Chega encaixa nos conceitos que lhe são reservados por jornalistas e analistas políticos - populismo de direita, direita radical, extrema-direita, etc. - e em que medida representa uma inovação na reconfiguração da direita portuguesa” (p. 5). Este problema é explorado por Marchi a partir de três dimensões de análise que dão o título a cada um dos capítulos do livro - “O líder”, “O partido” e “As ideias” - e apoia-se em três tipos de fontes e materiais empíricos: os documentos programáticos do partido, uma pequena recolha de imprensa e 21 entrevistas realizadas a membros do partido.
O Chega, não obstante o título do livro, é definido nas conclusões como um “partido populista da nova direita radical” (p. 191). Esta classificação resulta de um compósito entre duas dicotomias conceptuais: extrema-direita vs. direita radical e velha direita vs. nova direita. O Chega é, de acordo com Marchi, um partido da nova direita radical porque aceita as regras do jogo democrático (ao contrário da extrema-direita) e não se reconhece no legado dos regimes autoritários do período entreguerras (ao contrário da velha direita). O Chega é ainda um partido populista porque “a sua mundividência está baseada numa perspectiva dicotómica da realidade política, segundo a qual, há 45 anos, uma elite se apoderou dos gânglios do poder político, económico, mediático e cultural, atraiçoando o povo português, mantido, cada vez mais, na margem de qualquer processo decisório e vexado nas suas componentes mais produtivas” (p. 193). Em cada um dos capítulos o autor procura acrescentar ao problema taxonómico dois argumentos auxiliares: 1) “o Chega não pertence à linha genealógica da direita radical portuguesa”; 2) “é algo inédito na democracia portuguesa, do ponto de vista quer da cultura política reivindicada, quer da estratégia discursiva eleita, quer da polimorfia dos quadros fundadores e da base de apoio” (p. 14).
O Chega, visto por Marchi, é um projecto pessoal de André Ventura. Sem apoios, e sem ligações às elites económicas, políticas e culturais do país, “André Ventura sai do PSD com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma” (p. 20). Para o autor, a experiência pessoal de Ventura, filho da pequena burguesia dos subúrbios lisboetas, permite-lhe representar as ideias até aqui silenciadas e as preocupações até aqui ignoradas de um eleitorado cada vez mais afastado da direita tradicional. Este novo partido “substancialmente integrado na mundividência portuguesa, e não apenas de direita” (p. 135), focado nas variáveis nacionais “e não na reprodução de modelos estrangeiros, nomeadamente dos populismos de direita europeus e americanos, de que será constantemente acusado” (p. 51), cresce em função da ambição e do esforço de Ventura e de um pequeno grupo de amigos, coleccionados ao longo da sua vida. A ampliação deste núcleo restrito deu-se nas redes sociais. O recrutamento nas redes sociais foi, segundo Marchi, a estratégia eleita para contornar a ausência de recursos materiais e a estigmatização de que o partido sempre foi alvo nos meios de comunicação social. É também a possibilidade de recurso às redes sociais que distingue o Chega de outros projectos políticos anteriores do mesmo quadro ideológico. Trata-se exactamente da mesma razão pela qual Ventura se multiplica em declarações controversas: para “maximizar o seu instinto polémico em temas fracturantes da sociedade” (p. 47), para prosseguir uma estratégia de diferenciação política com vista à aproximação de segmentos eleitorais específicos das cinturas metropolitanas e para furar o “bloqueio mediático” ao partido (p. 63). Organizado ideologicamente em torno do liberalismo económico e do conservadorismo nos valores, as “indefinições” do Chega em relação a uma série de temas, desde as funções sociais do Estado até à integração europeia, resultam, para o autor, da ausência de uma “doutrina monolítica” e “da pluralidade das fontes de produção e das culturas políticas dos militantes” (p. 135).
As diversas leituras críticas publicadas na imprensa nas semanas seguintes à edição do livro, no final de Junho de 2020, revelaram de forma clara - e quase sempre justa - uma série de lacunas, erros, omissões e incongruências no trabalho de pesquisa de Riccardo Marchi. No essencial, essas críticas remetem para duas questões inter-relacionadas: o problema da classificação do partido e do modelo analítico e metodológico utilizado pelo autor. Considerando esta última dimensão, e acrescentando alguns elementos às análises já realizadas, é possível elencar um vasto conjunto de deficiências: ausência de um quadro conceptual e analítico claro (o debate sobre o conceito de populismo, por exemplo, é resolvido na conclusão em 14 linhas); inexistência de uma bibliografia ou mesmo de referenciação de autores citados; desvalorização de uma abordagem comparativa internacional (com partidos congéneres) ou mesmo nacional (relação entre as diferentes direitas); fragilidade do enquadramento histórico (falta de referência às transformações do sistema partidário nacional ou ao comportamento eleitoral e às atitudes políticas dos portugueses); desvalorização da conjuntura política (polarização e fragmentação dos sistemas partidários ou intensificação dos debates sobre os legados autoritários e coloniais); selecção enviesada dos materiais empíricos e erros no seu tratamento (muito longe da saturação das fontes, sem análise cruzada de dados, sem clarificação dos critérios amostrais e sem explicitação dos termos de acesso ao terreno); e, talvez mais grave, a total indiferenciação entre as categorias analíticas e as categorias nativas. Assim, e como foi também sublinhado em várias críticas, a voz de Marchi e a voz dos seus interlocutores confundem-se sistematicamente ao longo do argumento, sendo os pontos de vista dos seus informadores tratados quase sempre como factos, lidos de forma não-problemática, ao passo que as perspectivas antagónicas ora são ignoradas ora são descredibilizadas.
Das várias fragilidades metodológicas e analíticas do trabalho, e cujas razões merecem seguramente uma reflexão muito mais aprofundada, resulta um retrato incongruente e contraditório do partido. O problema taxonómico, o segundo ponto crítico do livro e que espoletou o debate público, contribui então para obscurecer ainda mais algumas das questões que o crescimento do Chega coloca à história das direitas portuguesas. Na realidade, se alguma coisa o trabalho de Marchi demonstra é a necessidade de uma análise processual e relacional ao percurso do Chega: uma investigação que vá para além do problema da categorização, que não se limite ao discurso oficial do partido e que revele as trajectórias sociais, políticas e ideológicas dos seus quadros, militantes e eleitores. Na tentativa de mostrar que o Chega não é um partido de extrema-direita, e de colocar os diferentes partidos e actores da direita numa grelha classificatória fechada, Marchi não explora as ligações entre o partido de Ventura e as direitas tradicionais portuguesas no que diz respeito - e para voltar às teses do autor - à cultura política reivindicada, à estratégia discursiva eleita, à polimorfia dos quadros e à sua base de apoio.
Poucas vezes uma tese começa a desmentir-se a si própria na epígrafe. Mas é justamente isso que aqui sucede, ao abrir com uma citação de Jaime Nogueira Pinto (a principal figura daquilo que se poderia chamar a velha nova direita portuguesa), na segunda convenção do Movimento Europa e Liberdade, que juntou, em Março de 2020, os diferentes sectores das direitas portuguesas num debate colectivo. As referências fundamentais de Ventura - “na encruzilhada entre a doutrina da Igreja, o pensamento de Francisco Sá Carneiro, e a leitura das obras de Jaime Nogueira Pinto, em particular o seu O Fim do Estado Novo e as Origens do 25 de Abril” (p. 23) -, as trajectórias dos seus principais quadros - quase todos provenientes do CDS e/ou do PSD, como o próprio Ventura - bastariam para traçar a filiação do Chega nas direitas com representação parlamentar. Se a isso juntarmos as heranças ideológicas materializadas nas propostas políticas do partido (liberalismo na economia e conservadorismo nos valores); as coligações sociais que o partido procura construir com diferentes sectores do empresariado português e dos conservadores religiosos; e a representação de um eleitorado específico - “a direita clássica do mundo rural e das elites mais conservadoras; as bases populares do interior do país; os subúrbios das grandes cidades” (p. 49) - é impossível pensar a emergência de uma extrema-direita em Portugal sem repensar a história da direita portuguesa como um todo. Em suma, a tese de Marchi sobre o Chega, sintetizada no título do livro A nova direita anti-sistema, tem dois problemas: esta direita não é nova nem é anti-sistema.