Volvidas quase duas décadas, chegou enfim o culminar da trilogia sobre Direitos Humanos da autoria de Costas Douzinas, iniciada com The End of Human Rights. Critical Legal Thought at the Turn of the Century (de 2000) e secundada por Human Rights and Empire. The Political Philosophy of Cosmopolitanism (de 2007). Nenhuma das obras conta com edição em Portugal, adensando-se o silêncio ensurdecedor sobre o estado hodierno dos Estudos Críticos do Direito, que encobre inclusive os contributos do caput scholae de Birkbeck. Recorde-se que, em The End of Human Rights, Douzinas expôs uma leitura dissidente sobre a História e a Filosofia subjacentes àqueles Direitos, privilegiando e cruzando interpretações jusnaturalistas emancipatórias, a crítica jurídica marxiana e contributos analíticos da Psicanálise, desnudando os paradoxos que tais Direitos carreiam. Já em Human Rights and Empire, o académico grego renovou aquela análise e projectou-a especialmente sobre o campo das intervenções “humanitárias”, expondo como estes Direitos são instrumentalizados em novas vagas de orientalismo jurídico e neocolonialismo, não deixando de arguir o potencial radical daquela normatividade para erigir um novo cosmopolitismo a devir. Diferentemente, The Radical Philosophy of Rights 2 não só reavalia a importância jusfilosófica dos Direitos Humanos, mas vai muito além deste foro.
Organizado em três partes, este livro segue um caminho algo dissonante do daquelas obras anteriores. Longe de ser uma monografia inteiramente original, um número assinalável de capítulos fora já publicado em revistas ou noutras obras colectivas, como The Idea of Communism (de 2010), The Cambridge Companion to Human Rights Law (de 2012) e The Meaning of Rights: The Philosophy and Social Theory of Human Rights (de 2014). Ademais, é notória a experiência sui generis do académico-feito-deputado pelo partido grego de Esquerda Radical, relatada detalhadamente no seu livro Syriza in Power. Reflections of an Accidental Politician (de 2017) - na sequência, aliás, do evento “austeritário” espoletado em 2010 e tratado pelo autor em Philosophy and Resistance in the Crisis: Greece and the Future of Europe (de 2013). Em suma, precedentes que indiciam estarmos aqui perante um cenário teórico-prático na vanguarda dos Estudos Críticos do Direito (pp. vii-x, 195-217).
Vejamos, pois, a tríade tópica destarte publicada. Na parte primeva, sob a égide “Lei, pessoa, direitos”,3 Douzinas expõe uma breve (mas mui acurada) genealogia de alguns institutos ou construções doutrinais-chave, como os de pessoa jurídica, de dignitas ou de direito subjectivo (por oposição a um objectivo), desconstruindo os preconceitos que a “jurisgénese” carreia e reflectindo sobre novos desenvolvimentos. Por exemplo, disserta sobre a amplitude da personalidade jurídica para abranger novas categorias de sujeitos (pp. 3-10), como mulheres (contrariando o patriarcalismo) ou animais não-humanos (nomeadamente no tocante aos símios, dado o antropocentrismo destas construções) e, claro, qual a ideia de “humano” que subjaz à construção “Direitos Humanos”. O autor exemplifica assim como a possibilidade de estender ou restringir o significante da “personalidade jurídica” se traduz na concessão ou limitação de direitos ou privilégios, na protecção ou desprotecção da “vida nua” (os homines sacri agambenianos). Em suma, de que modo avatares e ficções jurídicos como o status ou a dignitas têm sistematicamente apartado o “humano” da “pessoa” (jurídica), apenas esta se projectando no “cidadão”. Deveras, desde o Direito Romano que se recorre a uma concepção hierarquizante de dignidade e de humanitas para apartar uma minoria juridicamente privilegiada de uma maioria desprotegida, o cives das gentes, o polites do demos. Esta contínua variação de máscaras jurídicas leva a que hoje em dia ainda nos debatamos com a jus-hierarquização da espécie humana, uma biopolítica entretanto reconstruída através (do Direito Internacional) dos Direitos Humanos (pp. 11-85). Como indicado na já célebre formulação (p. 49), “os Direitos Humanos não ‘pertencem’ aos humanos; eles constroem os humanos num espectro entre a humanidade plena, a humanidade menor e a inumanidade”.
Ecoando esta análise, a segunda parte versa justamente sobre “Os paradoxos dos direitos” de que aquela seara se tem pejado, em particular desde o apogeu neoliberal incendiado em 1989. Alertando para a instrumentalização contínua e muitas aporias de que os Direitos Humanos têm sido alvo (pp. 89-115), não prescinde de deixar assente um vero “axioma” (p. 90): “[a] finalidade dos Direitos Humanos é a de resistir à dominação e opressão pública e privada. Eles perdem esse propósito quando se tornam a ideologia política ou idolatria do capitalismo neoliberal, ou a versão contemporânea da missão civilizadora”. Assiste-se aqui a uma mudança discursiva, assinalando-se as influências marxiana e blocheana, rumo a uma leitura mais comunitarista: não só enragé, mas engagé. O busílis, como Douzinas descreve, é que o pensamento jurídico (jurisprudence) hegemónico sobre Direitos Humanos empobreceu-os tremendamente, vazando-os do potencial emancipatório que está nas suas raízes (pp. 116-150). Evidencia-se, assim, a necessidade de uma teoria jurídica que reponha essa radicalidade.
É, pois, na parte derradeira, “O direito de resistência”, que o autor almeja palmilhar tal teorização, proporcionando - a nosso ver - o contributo mais significativo desta obra. É traçada uma genealogia revisionista daquele direito (inclusive no plano filosófico), bem como do foro dos Direitos Humanos tout court, cerzindo realidades que por regra se estudam apartadas: é que o Direito positivado é indissociável da legitimidade que as Revoluções (quer as políticas quer as do senso comum) lhe imputam, levando a que a resistência à normatividade vigente seja, por defeito, parte integrante da realidade social onde esta actua. Douzinas não só expõe a singularidade teórica do direito de resistência, como tem o mérito de o fazer transbordar do nomos académico para a praxis das ruas, dos fóruns e da cidadania activa. Foi através dos movimentos anticolonialistas pré- e pós-Declaração Universal dos Direitos Humanos, das lutas estadunidenses pelos Direitos Civis, da desobediência civil e da dissensão legal contra mecanismos antidemocráticos e de violência estrutural estadual, inter alia, que a ordem normativa conheceu profundas transformações. É a demonstração democrática da Indignação (e por vezes o recurso inevitável à desobediência e à revolução) que tem historicamente corrigido a adikia espectral, a sensação de injustiça social que assola as mais variadas comunidades. São, pois, práticas de resistência que impedem a “esclerose” normativa - é o direito de resistência que, literalmente, anima o Direito (pp. 153-194).
Concluindo, The Radical Philosophy of Rights é um marco literário que não deve deixar indiferente quem cultiva o pensamento jurídico contemporâneo, em especial as abordagens contra-hegemónicas. Desde logo porque, como assume o autor (p. ix), esta obra “apresenta as provas filosófica, moral e jurídica que sustêm o argumento de que a resistência e a revolução têm uma fundação normativa. Os direitos à desobediência, de resistência e inclusive à revolução reconhecem o seu contributo para a inteireza do Direito”.
Induzimos que o maior defeito deste livro se projecte sobre os leitores mais fiéis a Douzinas, que não lhe encontrarão assim um carácter tão inédito quanto se poderia almejar ao fim de tantos anos a aguardar pelo desfecho desta trilogia, quiçá ficando aquém das expectativas. Não obstante, o passo em frente que é dado na teorização do direito de resistência poderá oferecer satisfação suficiente, alumiando o potencial emancipatório do Direito nos desafios a devir. De todo o modo, face à natureza mais compósita desta obra, apresenta-se como uma excelente opção para qualquer neófito vir a conhecer o pensamento hodierno de Costas Douzinas. Oxalá alguma casa editorial portuguesa não perca esta oportunidade de o publicar.