O mundo comum é para constituir, está lá tudo. [...]
Deve ser feito, deve ser criado, deve ser instaurado.
(Bruno Latour, 2011: 39; itálico no original)1
Introdução
A fragmentação do espaço público, causada pela expansão dos meios de comunicação de massa, acentuou-se com os novos média e com a sua utilização vulgarizada. A comunicação nas redes sociais digitais intensifica efeitos de dispersão, efemeridade, simultaneidade, ligação ao próximo e ao longínquo e, nessa medida, refletir sobre o espaço público, ou o espaço comum, requer ter em conta as ligações eletrónicas e o ecossistema interativo que compõem. As redes têm repercussões nas práticas comunicacionais e em modalidades de ação individual e coletiva, por isso, pensar o domínio comum e as mobilizações públicas requer uma discussão nesses termos.
Tomando como objeto as manifestações contra as alterações climáticas, que se tornaram uma causa comum à escala planetária, a questão que se coloca neste texto é em que medida se assiste à emergência de um novo “espaço comum” que decorre, em grande parte, das possibilidades comunicacionais e de mobilização trazidas pelas conexões digitais. Para tal, irá examinar-se os conceitos de “espaço comum tópico” e “metatópico” em Charles Taylor (2006), e o “habitar atópico” abordado por Massimo Di Felice (2012) nos meios relacionais conectados dos contextos digitais.
Começa-se pela comunicação em rede e pela ação conectada (connective action, Bennett e Segerberg, 2012), para passar ao espaço comum tópico e ao metatópico (Taylor, 2006), não sem antes mencionar os males da modernidade segundo Taylor (2009a, 2009b), que são a fragmentação, o atomismo social e o utilitarismo. De seguida, irá referir-se o habitar atópico (Di Felice, 2012, 2013), para encarar o ativismo em rede que utiliza as conexões eletrónicas e contribui para a criação de um espaço comum. Por último, discute-se como os movimentos globais de protesto contra as alterações climáticas estão a instaurar uma causa e um domínio ou espaço comuns.
Redes e ação conectada
As ligações eletrónicas criam novas condições sociais e desempenham um papel determinante nas novas ecologias caracterizadas pelas conexões entre humanos, objetos, tecnologias, dados, meio ambiente. Por seu lado, as redes sociais digitais, enquanto meios de difusão e troca de mensagens escritas, sons, imagens, vídeos, e formas reticulares de comunicar, informar, partilhar ideias, gostos e interesses, possibilitam novas modalidades de ação. Justamente, a ação conectada (Bennett e Segerberg, 2012) ou a ação digital em rede (digital networks action - DNA) assenta na interatividade, instantaneidade, atualização contínua e disseminação de mensagens.
Bennett e Segerberg (2012) colocam a existência de duas lógicas distintas de ação coletiva e de ação conectada.2 Defendem que a ação nas redes digitais tem a sua lógica - a ação conectada implica uma lógica própria (ibidem: 748) - que já não se ajusta aos sistemas clássicos da ação coletiva e dos movimentos sociais. O modelo da ação conectada aplica-se às situações correntes em que os laços dos grupos estão a ser substituídos pela larga escala dos fluxos das redes sociais (“espaço dos fluxos”, Castells, 2002) e, no que respeita às manifestações públicas, às situações em que as organizações formais (sindicato, partido, igreja, etc.) perderam capacidade de mobilizar coletivos.3
Nas redes, nos casos das mobilizações e ações públicas de protesto ou outras, e mediante dispositivos tecnológicos pessoais tornados correntes, passa-se a palavra e angariam-se adesões pessoais, dirigindo-se a audiências externas, como Bennett e Segerberg (2012) analisaram a propósito dos protestos Put People First (em Londres, 2009) e Indignados (em Espanha, 2011), com êxito na comunicação de mensagens políticas simples no Facebook ou no Twitter. Os autores assinalaram que os próprios processos de comunicação se tornaram formas de organização, o que incita a encarar a rede ou os média digitais como uma estrutura organizacional em si (Bennett e Segerberg, 2012: 753; Earl e Kimport, 2011).4
Com as tecnologias de comunicação pessoais, a partilha de mensagens em vários formatos (texto, imagem, áudio, vídeo, etc.) envolve a comunicação (pôr em comum) de interesses, preferências, emoções, expetativas, valores, preocupações, causas, protestos e, simultaneamente, a personalização dos gostos (weblogues, Facebook, Twitter, Instagram, etc.). Nessa medida, muitos daqueles que dominam as práticas das redes digitais sociais e usam a ação conectada adotam caminhos mais personalizados para a ação partilhada.
A DNA, ou ação digital em rede, assenta no uso de tecnologias digitais e em quadros de ação pessoais, detendo um caráter mais individualizado do que a ação coletiva que supõe a ação conjunta e concertada. Por isso, enquanto a ação coletiva e os movimentos sociais convencionais exigem escolhas e compromissos por parte dos atores e a adoção de um “nós”, a ação conectada não. A lógica das redes não exige “a construção simbólica de um ‘nós’ unido” (Bennett e Segerberg, 2012: 748), ou um enquadramento de identidade coletiva ou organizacional.
As redes de ação conectada são tipicamente conjuntos de processos muito mais individualizados e tecnologicamente organizados que resultam em ação sem a exigência de um enquadramento de identidade coletiva ou de recursos organizacionais necessários para responder efetivamente às oportunidades. (ibidem: 750)
Nas redes sociais digitais há trocas, partilha e experiência individual. A individualização e a participação social, a autonomia e a dependência do todo coexistem. As redes são interativas, articulam individualização e integração no todo, autonomia e conectividade ao conjunto, e instauram o que Castells (2009) apelida de “autocomunicação de massas” ou “comunicação de massa individual” (mass self-communication). Trata-se de uma expressão antagónica nos seus termos, pois liga individualidade e autonomia a massa, quando a massa (e a massificação)5 é entendida como amorfa, não constituindo lugar de individuação.6 Mas aquilo que a noção patenteia é que as redes digitais são um meio de comunicação individual e global, passível de produção e receção personalizadas.
Porém, tendo em conta os movimentos de protesto que se formam a partir das redes e as usam para angariar adesões (como o movimento Que se lixe a Troika, em Portugal, 2012),7 vai refletir-se sobre como a comunicação digital pode contribuir para a formação de um espaço comum. Inicia-se, pois, com o pensamento de Taylor, para quem as questões da modernidade, do comum e do reconhecimento são centrais.
A modernidade e o comum
Precedendo a apresentação do conceito de espaço comum e público em Taylor (2006), refere-se uma outra discussão correlacionada que contribui para pensar o comum na atualidade. Com efeito, Taylor (2009b) denuncia três males da modernidade: o atomismo social que se liga ao individualismo; a racionalidade instrumental; a perda de liberdade.
O individualismo ligou-se à ideia da razão separada do corpo (Descartes) que, nas suas versões mais recentes, assenta em cada pessoa pensar por si mesma de forma autorresponsável e no entendimento que a vontade pessoal é prioritária em relação às obrigações sociais. É assim que, no século xviii, nasceu uma nova conceção da identidade individual, da qual decorre o ideal moderno de autenticidade (e o da dignidade) que é produto do declínio da sociedade hierárquica (Taylor, 2009a: 49). Em consequência, assiste-se à conversão do ideal moral moderno da autenticidade no individualismo da realização de si que, por sua vez, se articula à cultura narcísica, assim como há a “conversão maciça da cultura moderna ao subjetivismo” (ibidem: 46). Taylor (2009b: 68) adverte como a autorrealização do indivíduo conduziu a um “atomismo social” e a um “antropocentrismo radical”, o que se conjuga com a cultura do individualismo narcisista e hedonista (Bell, 1979; Lasch, 1983).
O individualismo concilia-se mal com a vida em comum e encontra-se na origem do atomismo social. Este e os valores instrumentais originaram uma objetivação do homem antiteleológica, que eclipsou a existência de fins normativamente importantes e instrumentalizou a vida social e as relações com os outros, as comunidades, o passado, as instituições e a natureza (Taylor, 2009b: 174). Por isso, o primado da razão instrumental é o segundo mal da modernidade. O terceiro, por sua vez, é a perda da liberdade que resulta dos outros dois males, i.e., de um conjunto de “consequências da razão instrumental e do individualismo para a vida política” (ibidem: 23). Taylor advoga que esta perda de liberdade advém da defesa dos direitos individuais e da dificuldade em conduzir programas e políticas comuns, de que resulta um modo fragmentado de participação política. Como o autor sublinha, a “fragmentação surge quando as pessoas passam a considerar-se de modo cada vez mais atomista ou, dito de outro modo, cada vez menos associadas aos seus concidadãos em projetos e causas comuns” (ibidem: 116). O individualismo e o atomismo enfraquecem a ação conjunta dos indivíduos enquanto cidadãos, provocam a fragmentação social e a dificuldade em realizar projetos comuns abrangentes.
A racionalidade instrumental, que constrange o agir comum e a liberdade, e se associa à perda de sentido, cujo resultado é a retração na vida privada e a apatia cívica, a participação parcial, a carência de uma ação conjunta ou de um projeto comum, explicam a ideia da perda de liberdade. Taylor admite que cada vez é mais ténue a identificação do indivíduo com a sociedade política. Não se trata de negar a participação cívica em causas, mas antes de denunciar uma certa ausência de projetos políticos globais. As reivindicações emanam de minorias que, embora hoje tendam a dilatar-se, não deixam de se ligar a causas específicas: reivindicações de comunidades locais, minorias étnicas, feminismo, multiculturalismo, grupos que promovem interesses próprios, ações políticas particulares, etc. Estas reivindicações colocam a questão do reconhecimento, numa época em que há falta de reconhecimento daquilo que constitui um fator de identidade (Taylor 2009b: 179). Sob o prisma do igual reconhecimento na esfera pública, muitos movimentos de defesa das minorias acentuam a diferença como fundamento daquele.
Todavia, convivendo com essa fragmentação dominante e com o individualismo, defende-se neste artigo que há, hoje, a emergência de um novo sentido do comum e de um projeto (político) global, a partir das manifestações contra as alterações climáticas, capazes de uma mobilização comum à escala planetária. Para conduzir tal reflexão, recorre-se à definição de espaço comum nas suas variantes de espaço tópico e metatópico, de acordo com Taylor (2006), e atópico, na senda do habitar atópico de Di Felice (2012).
Espaço comum tópico e espaço comum metatópico
Na sociedade urbana moderna, os espaços comuns próprios às interações são “espaços tópicos localizados”, em que os participantes estão no mesmo lugar, tendo a perceção da presença de uns e de outros (Taylor, 2006). Deste ponto de vista, a copresença física, como analisou Erving Goffman (1973), define a cena pública e os outros são codeterminantes do sentido das nossas ações. O mundo comum é o meio no qual existem condições de comunicação, interação e experiência, e onde, como John Dewey (2010 [1927]) defendeu para os públicos (enquanto sujeitos que se ocupam de um problema), se desencadeiam dinâmicas de participação, associação e exploração.
Ora, o “espaço comum tópico”, na conceção de Taylor (2006), é o lugar de uma “atenção conjunta” coordenada, o que implica uma focalização comum por parte de parceiros que prestam mutuamente atenção a um objeto ou a um acontecimento e partilham essa experiência de atenção recíproca. Como a propósito observou Louis Quéré (2015: 16), esta definição dá-nos “a operacionalidade da autocompreensão” daqueles que se focalizam em conjunto sobre um mesmo objeto, notícia ou acontecimento, ou que participam num debate público que inclui e ultrapassa as suas conversas sociais e particulares. Prestam uma forma de “atenção (recíproca) conjunta”8 e este espaço comum é sempre, como Quéré refere frequentemente, um lugar de sociação e de individuação.
De acordo com o exemplo dado por Taylor (2010), a partir de uma assembleia reunida num determinado lugar surge um espaço comum tópico, distinto de um espaço metatópico, que é um espaço comum não local. Este último foi instituído com a esfera pública, no século xviii, de acordo com Jürgen Habermas (1986).
Um género intuitivamente compreensível de espaço comum é estabelecido quando pessoas se reúnem para algum fim, seja num nível íntimo para a conversação ou numa escala mais ampla, mais pública, para uma assembleia deliberativa, um ritual, uma celebração ou o prazer de um desafio de futebol ou uma ópera. O espaço comum que surge do ajuntamento num certo local é o que eu pretendo chamar de “espaço comum tópico”. Mas a esfera pública é algo de diferente. Transcende tais espaços tópicos. Poderíamos dizer que ela agrupa uma pluralidade desses espaços num espaço mais amplo de não-assembleia. A mesma discussão pública passa, supostamente, pelo nosso debate hoje, pela conversa séria de alguém amanhã, pela entrevista no jornal na quarta-feira, e assim por diante. Chamo “metatópico” a este tipo mais amplo de espaço comum não local. A esfera pública que emerge no século xviii é um espaço comum metatópico. Tais espaços são, em parte, constituídos por compreensões comuns; isto é, não são redutíveis a tais entendimentos, mas não podem existir sem eles. (Taylor, 2010: 7)
A esfera pública é um “espaço extrapolítico, secular, metatópico” (ibidem: 23),9 exterior ao poder político, mas cujo resultado se imporia a esse mesmo poder, mediante a formação de uma opinião pública assente numa “discussão racional”, de acordo com a teoria de Habermas (1986). Para este autor, a esfera pública surge como instância mediadora entre a sociedade civil e o Estado, e constitui o espaço do princípio da publicidade crítica e da opinião pública, normativamente estruturado por uma discussão racional, ligada ao uso da razão argumentativa.
Taylor (2006) sustenta que as comunicações, no século xx, deram origem às variantes “metatópicas”. Tal como os públicos dispersos de um mesmo acontecimento, mas que o partilham - como por exemplo, um Campeonato do Mundo de Futebol, i.e., um acontecimento mediático (Dayan e Katz, 1999) programado para transmissão em direto. Pode, assim, fazer-se uma distinção entre dois tipos de espaço comum: “espaço comum tópico” e espaço comum não local “metatópico” e dizer, com Taylor (2010: 7), “o que é novo não é a metatopicalidade. A Igreja e o Estado eram espaços metatópicos já existentes”. Entretanto, e uma vez dito isso, interessa considerar como com as comunicações eletrónicas e com as redes sociais digitais, surgem modalidades interativas atópicas que se cruzam com as dimensões tópica e metatópica.
Redes e relações atópicas
Nas redes sociais digitais dominam a presença, o número, a velocidade e, como assinala Byung-Chul Han (2016: 28), a comunicação sem mediação. As coordenadas espácio-temporais da ação desligam-se das relações ao tempo e ao lugar. As interconexões comunicacionais nas redes são da ordem da circulação de fluxos (Castells, 2002), são a-espacializadas, desterritorializadas, “flutuantes” (Paquot, 2009: 106). A comunicação desterritorializa-se pela desmaterialização, e destemporaliza-se, fixando-se num contínuo presente. Como Han (2016: 27; itálico no original) enuncia, “o meio digital é um meio de presença. A sua temporalidade é o presente imediato”. O fluxo acelerado das informações e comunicações instaura a instantaneidade que ocasiona o tempo tecnológico, diferente do tempo histórico da duração e da sucessão, dando lugar à simultaneidade e a um perpétuo presente, suportado pela comunicação em tempo real.
A temporalidade imediata, a efemeridade e a presença (sem mediação) vigoram de acordo com as lógicas da instantaneidade e da imaterialidade, que simulam a proximidade e esbatem as distâncias. Por isso, na rede digital as relações temporais e topológicas encontram-se alteradas. Di Felice (2013: 59) assinala, na nova ecologia dominada pelas redes virtuais, a “sincronia” (temporalidade sincrónica) e a “atopia”. Este conceito (Di Felice, 2014: 26) liga-se à perspetiva ecossistémica de uma interação entre pessoas, tecnologias e territorialidades. A atopia, ou o habitar atópico, como o autor explica, “não remete à ausência de lugar, mas […] a uma localidade fora do local, uma localidade indizível. Na atopia, a especificidade da ação e da localidade é o resultado do decorrer de interações” (Di Felice, 2013: 67).
A comunicação eletrónica organiza um ecossistema reticular atópico formado por redes tecno-humanas, dados, algoritmos, criando uma condição habitativa “atópica” que “envolve ecossistemas comunicativos e informativos” (Di Felice, 2012: 43). O próprio espaço físico urbano está tomado por interações ecológicas e mediações tecnológicas reticulares, frequentemente híbridas e transitórias, concorrendo para uma condição de habitar atópica, na qual há hibridação entre circuitos informativos e territorialidades. É nesse sentido que se pode entender que, nos meios ecossistémicos reticulares, advêm relações atópicas, desespacializadas, que Di Felice reporta às conexões digitais em geral e às net-ativistas:
as formas de net-ativismo e de ação reticular expressam mais do que uma forma sistémica, elas surgem como a expressão de um novo tipo de ecossistema atópico onde elementos humanos, tecnológico-informativos e ambientais interagem, constituindo uma hipercomplexidade sinergética reticular. (Di Felice, 2014: 30; itálico no original)
Ora, a noção de atopia surge nos estudos sobre a modernidade (Gillet, 2006). Como resultado do crescimento da velocidade dos meios de comunicação e também dos meios de transporte, Paul Virilio refere a atopia em consequência da mobilidade, da velocidade, da ubiquidade e do “não-lugar da velocidade” (Virilio, 1984: 124).10 Com Di Felice, não são a velocidade e transporte que contam, mas a perspetiva comunicacional ecossistémica. A condição atópica reporta-se a um ecossistema em que espaços virtuais e físicos de circulação e comunicação coexistem. É nesta ecologia, determinada por interações tecno-humanas reticulares, que se desenvolvem relações atópicas ou práticas de interação atópica (Di Felice, 2009), que proporcionam novos sentidos e perceções. Para entender estas relações importa compreender que as dicotomias homem/meio ambiente ou ator/território, homem/técnica, sujeito/objeto, dentro/fora, interior/exterior, real/virtual não funcionam. A ação dos sujeitos associa-se ao agenciamento de objetos técnicos e às arquiteturas comunicacionais das plataformas colaborativas e há como que uma configuração digital do espaço (mapas, localização online, utilização de dados, etc.).
Falta entender em que termos o atópico se reportará ao espaço comum metatópico (precisamente, não local), o qual, por sua vez, pode agrupar ou invocar uma pluralidade de espaços comuns (tópicos e atópicos). Na medida em que a comunicação digital em rede assenta em relações atópicas entre elementos humanos, tecnológico-informativos e ambientais, a relação destas interações atópicas com o espaço comum metatópico será da ordem da pressuposição (ou institucionalização) de uma esfera comunicacional comum, enquanto ecossistema relacional informativo e comunicativo (e que poderá emergir como esfera [virtual] comum meta-atópica). Neste meio ambiente pode compreender-se o ativismo em rede ou o net-ativismo.
Ativismo em rede e formação do comum
A rede é interativa, colaborativa, multimodal, a-centrada, de imersão, inclusão e exclusão, de uso individualizado e global. Por isso, a CMC (computer mediated communication) ou a DNA possibilita uma maior interação de ativistas entre si e entre estes e as organizações, tal como modalidades mais individualizadas de expressão, adesão e interesse, não dependendo de coletivos ou organizações pré-existentes para a formação de interesses partilhados (Bennett e Segerberg, 2012; Della Porta, 2004). O que ajuda a explicar que, nas duas últimas décadas, se assista a movimentos cidadãos ativistas e a casos transnacionais e tecnologicamente mediados de ativismo cidadão (e.g., Bennett, 2005; Chodak, 2016; Earl e Kimport, 2011).
A ação partilhada na rede pode desencadear entendimentos e causas comuns, vir a organizar-se como ação quase-coletiva (Babo, 2018: 233),11 sem ocasionar, como seu resultado, um sujeito coletivo ou um “nós” unido por uma atenção conjunta; ou, ao invés, sem que a ação partilhada advenha de um coletivo pré-existente. Nas redes partilham-se gostos, opiniões, sentimentos, interesses (pessoais e coletivos), crenças, valores, expectativas, emoções e há simulação de proximidade. Pode recrutar-se uns e outros, convocar-se manifestações, dar conta de ocorrências e reagir-lhes, e formar redes de ativistas. As práticas de ativismo podem, assim, dispensar líderes e porta-vozes, assim como organizações. Como diversos estudos dão conta (Cardon, 2010; Cardon e Granjon, 2013; Castells, 2009; Earl e Kimport, 2011; Pleyers, 2013), passa-se de mobilizações inseridas em quadros políticos, partidários e ideológicos definidos para formas mais individualizadas de expressão de ideias, sentimentos, opiniões ou de “comprometimento expressivo” (Cardon e Granjon, 2013) sem estrutura partidária ou sindical. Nas práticas de mobilização eletrónica ou e-mobilização (Earl, 2017; Earl e Kimport, 2011),12 a escala de divulgação, visibilidade e adesão é ampliada, tal como aumenta a individualização, o descomprometimento, a dispersão e a efemeridade. As relações nas redes digitais são mais efémeras e transitórias, com níveis mais ou menos elevados de individualização e desvinculação das organizações tradicionais.
A atenção partilhada na rede - que não é a atenção conjunta que cria um espaço comum tópico - está sujeita a um princípio de fragmentação. Como Bennett e Segerberg (2012) observaram, a ação conectada apresenta um carácter mais pessoal e individualizado. Porém, o ativismo em rede, na medida em que desencadeia informações e ações partilhadas por utilizadores-emissores-recetores, que colocam em comum ideias e interesses e atribuem significações ao que partilham, pode originar uma causa comum. Sobretudo nos casos de mobilizações online que geram ações conjuntas ou coletivas13 que desaguam no espaço público, convertendo este em espaço comum tópico de atenção conjunta. Os acontecimentos que têm sido analisados à luz do uso das redes sociais digitais, tais como as revoluções árabes de 2010-2011 em diante, Geração à rasca (em Portugal, 2011), Occupy Wall Street a partir de Nova Iorque para outras cidades no mundo (em 2011), Movimiento 15-M ou Indignados (em Espanha, 2011), Que se lixe a Troika (em Portugal, 2012 e 2013), manifestações e ocupações da praça Taksim e do parque Gezi (em Istambul, 2013), mobilizações públicas na Bulgária (em 2013), Não vai ter Copa (no Brasil, 2014), a Revolução da Dignidade (na Ucrânia, 2014) e outros, são casos de hibridez e transição da DNA (de matriz individual) à copresença física e à ação coletiva.
Porém, deve realçar-se que, embora a utilização dos novos utensílios tecnológicos tenha introduzido mutações nas práticas de participação e de mobilização (Cardon, 2010; Cardon e Granjon, 2013; Ollitrault, 2001; Pleyers, 2013), e a ação conectada seja responsável por numerosas adesões, o ativismo em rede não deixou de estar na origem e de desencadear ações conjuntas no espaço público (que se torna em espaço comum tópico de atenção conjunta). Nessa medida, o “militantismo em rede” (Pleyers, 2013) não conduziu à preponderância de interações exclusivamente virtuais. As ações na rua não diminuíram e vários estudos analisam como a ocupação do espaço público se tornou mesmo a tática dominante de movimentos de protesto na era das redes sociais14 (Chodak, 2016; Earl e Kimport, 2011; Pleyers, 2013). Donde, o espaço público permanece o lugar do protesto, da reivindicação e da ação coletiva. Do mesmo modo que os “e-movimentos” e as “e-táticas” (Earl, 2017; Earl e Kimport, 2011), que nascem nas redes e nelas subsistem, são raros e não substituem as manifestações no espaço urbano.
A formação do comum (interesse, significação, causa) pode iniciar a partir de relações comunicacionais digitais atópicas e prosseguir no domínio tópico da rua, lugar por excelência do protesto e das manifestações. Há uma transação - porosidade, hibridez e coexistência - entre DNA ou conexão virtual e copresença física, ação individual e coletiva, mediação e presença, assim como entre individual e coletivo, privado e público, desmaterialização e territorialização, rede e rua. É assim que interesses, ideias, reivindicações, protestos podem partilhar-se e disseminar-se nas redes, e desencadear uma causa comum abrangente, como ocorreu com os movimentos de protesto contra as alterações climáticas, que alcançam uma expressão pública nas ruas.
As manifestações de protesto mundiais sobre os problemas climáticos
As manifestações constituem ações coletivas que requerem convergência, partilha e associação, e a fixação de uma atenção conjunta que instaura um “espaço comum tópico” (Taylor, 2006). Nos movimentos mundiais de protesto sobre os problemas climáticos, houve a formação de uma “atenção comum” sobre os mesmos temas e problemas passível de criar uma causa comum global, como a imprensa reportou:
Eles avisaram que iam faltar às aulas para gritar pelo clima - e assim foi. Esta sexta-feira, 15 de Março, em Lisboa e no Porto, milhares de estudantes sublinharam que “Não há planeta B”. [...] A organização fala em cerca de três mil manifestantes nas ruas, apesar de a PSP apontar para cerca de cinco mil pessoas [...] Mas não só de alunos se faz a marcha contra as alterações climáticas, que aconteceu em paralelo em mais 112 países.15
O modelo a-espacial e interativo da rede permite uma comunicação de todos para todos (many to many, Castells, 2009) e possibilita o ativismo tecnologicamente mediado (e.g., Bennett, 2005; Chadwick, 2007; Della Porta e Diani, 2006; Earl e Kimport, 2011) e transnacional. Há um quadro global de “contestação transnacional” (Tarrow, 2000), como nos movimentos antiglobalização, embora estes fossem mais marcadamente compostos por movimentos heterogéneos.
Em diversas cidades, desde 2018 mas sobretudo em março e setembro de 2019, em mais de uma centena de países, jovens estudantes manifestam-se nas ruas e exigem ações em relação à gravidade das mudanças climáticas. Identifica-se como origem destes movimentos a greve às aulas iniciada pela jovem sueca Greta Thunberg que, em agosto de 2018, iniciou o seu protesto diante do parlamento sueco, utilizando também o Instagram e o Twitter, o que se tornou viral.16 Na sequência das greves escolares iniciadas em 2018, em 2019 aumentam as manifestações pelo clima17 que alastram mundialmente.
Não assumindo como foco de análise, neste texto, a ligação ou não a organizações, sublinha-se que o movimento estudantil sobre mudanças climáticas Fridays for Future (FFF; #FridaysForFuture)18 constitui-se e é considerado um movimento político-apartidário e descentralizado:
A greve climática estudantil, um movimento político-apartidário, descentralizado e pacífico, é ‘a voz de uma juventude farta da negligência das classes políticas face ao futuro’, segundo o manifesto publicado na página da iniciativa na mesma rede social.19
A Mobilização Global pelo Clima ou o movimento FFF detém plataformas digitais próprias20 nas quais os seus manifestos se encontram publicados. De 20 a 27 de setembro de 2019 foi organizada a semana de mobilização global pelo clima, com ações em inúmeras cidades do mundo.21 No dia 27 teve lugar a Greve Climática Global, organizada pelo FFF.
Milhares de pessoas concentraram-se em cidades de todo o mundo, aderindo à greve climática convocada pelo movimento “Sextas-feiras pelo Futuro”. [...] Esta sexta-feira, há manifestações marcadas para cerca de 30 localidades portuguesas, à semelhança do que acontece em 170 países.22
Dados o problema e a causa, cientistas, políticos, organizações internacionais apoiaram os protestos, de diferentes modos, com repercussões ao nível dos temas e debates tornados públicos e que ganham visibilidade e atualidade nas agendas.23 Deste modo, há problemas colocados pelos movimentos de protesto que entram nas agendas públicas e políticas de governos e organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU):
Hoje a Greve Climática Global chega a 170 países e pretende alargar-se a todos os setores da sociedade. A discussão sobre alterações climáticas entrou na agenda da ONU, enquanto a chamada geração sem causas está a mostrar nas ruas de cidades por todo o mundo que ainda tem pelo que lutar.24
O estudo “Protest for a Future II”, conduzido por Joost de Moor et al. (2020), mostrou que os protestos de setembro de 2019 constituíram o maior protesto climático coordenado globalmente até hoje, tendo mesmo ampliado a base de mobilização dos adultos, embora os manifestantes (e o movimento FFF) sejam na sua maioria jovens.25 Confrontando com março de 2019, os autores identificam, em setembro, elementos de continuidade e alguns de mudança “em quem participa, como e porquê” (ibidem). Houve uma diversificação em termos de idade, com maior participação de adultos isolados ou acompanhados e, por isso, um aumento de pessoas que participam sozinhas, o que pode indicar que a participação nas manifestações FFF não depende somente de uma adesão às redes sociais.
Protestar juntamente com amigos, família, colegas ou outras pessoas com quem temos laços sociais pré-existentes é mais frequentemente resultado de recrutamento interpessoal: ser convidado ou convidar outros a protestar juntos. Pesquisas sobre dinâmicas de micromobilização em movimentos sociais têm mostrado consistentemente que ser solicitado por alguém que se conhece a protestar é um forte indicador de participação em protestos. Além disso, as pessoas tendem a recrutar outras com ideias semelhantes [...] O recrutamento interpessoal mostra-se mais comum entre jovens do que entre adultos. Entre os jovens manifestantes, 36% indicaram que foram pessoalmente convidados por alguém para participar. Entre os adultos, essa participação foi menor (22%). (Moor et al., 2020: 15)
O estudo de Moor et al. (ibidem: 18) mostrou que as redes sociais foram identificadas pelos entrevistados como o meio de informação mais importante. O número daqueles que referiram o Facebook, Twitter ou Instagram, e não mensagens pessoais, aumentou de 32,7%, em março, para 41,3% em setembro. Quase 45% dos jovens (25 anos ou menos) e aproximadamente 39% dos adultos (26 anos ou mais) relataram ter sabido do protesto nas redes sociais. Por sua vez, os meios de comunicação tradicionais (jornais [online ou offline], revistas, anúncios, rádio, televisão) foram a fonte de conhecimento do evento por parte de quase 28% dos adultos e de apenas 11% dos jovens.
Em setembro, o “efeito Greta” parece ter diminuído,26 o que significa a normalidade, “estabilidade” e “rotina” do movimento (ibidem: 30),27 ou da causa, nos diferentes países. Isso também explica a participação individual ter aumentado. Logo, houve a normalização de uma causa comum - a “normalidade percebida” dos acontecimentos sociais, como diria Garfinkel (1984 [1967]: 188) - e a formação de um espaço comum. Este decorreu da partilha de interesses, ideias, vontades, sentimentos, emoções, convicções comuns.
As greves estudantis e as manifestações climáticas globais produziram uma causa comum disseminada pelo mundo e, apesar da situação pandémica, ainda se voltaram a realizar em 2020 e 2021. O modo como ocorreram resulta do ativismo em rede e das novas formas de participação, protesto e organizacionais complexas e híbridas,28 que combinam reivindicações globais e locais, ação individual e coletiva, e-mobilização e copresença física, online e offline, participação nas redes e plataformas digitais e ocupações do espaço público (Castells, 2012; Chodak, 2016; Pleyers, 2013). Do mesmo modo, também combinam o uso das redes com as relações interpessoais e os média tradicionais (jornais, rádio e televisão) na difusão do FFF e das manifestações. Ao mesmo tempo, há hibridez que resulta do uso de reportórios culturais plurais, locais e transnacionais, de formas organizacionais diversas, de reivindicações globais, mas também locais associadas a problemas contextuais (ambientais ou outros).29
Por último, refira-se que há estudos que demostram que os jovens estão comprometidos na vida política e cívica, embora fora das organizações formais (Elliott e Earl, 2018), com movimentos de mobilização híbrida (Chadwick, 2007) cuja modalidde de funcionamento depende em grande parte das redes e cujos níveis de intensidade flutuam.
Para concluir
O que aqui se pretendeu demonstrar foi que as mobilizações globais pelo clima, ao acontecerem em simultâneo, em inúmeras cidades de diversos países, nos mesmos dias, sob os mesmos protestos, criam um efeito de justaposição do próximo e do longínquo, do local e do global, e configuram um “espaço comum” tópico (e metatópico). Se, como observou Taylor (2009b: 178), sob o ponto de vista do igual reconhecimento, muitas reivindicações realçam a diferença, esquecendo o que é comum, as greves FFF, por seu lado, e ao invés, fixam uma atenção conjunta em torno de reivindicações comuns e da retórica dos direitos do planeta e dos problemas ambientais.
A institucionalização desta causa comum está em relação com a cidadania, as liberdades públicas e os direitos que podem ser entendidos num horizonte comum de significação. Taylor (2009b) ligou o princípio da autenticidade à originalidade, à noção de diferença e aceitação da diversidade, assim como à relação a horizontes de sentido e às exigências que emergem da história, da tradição, da sociedade e da natureza. Ora, nas manifestações mundiais de protesto pelo clima, existe uma reivindicação global, abrangente e comum em torno das preocupações com o planeta e dos problemas climáticos (globais e locais), os quais não se inscrevem num quadro de defesa de direitos individuais ou de causas específicas, mas estendem-se à escala planetária e compõem uma agenda e uma causa comuns.
A Mobilização Global pelo Clima e o movimento FFF convocam temas comuns e significações partilhadas, e institucionalizam uma causa comum global, subordinada à gramática ambiental da defesa do planeta e da vida.30 Este movimento instaura (de cada vez) um espaço comum tópico, em coexistência e codependência, de modo híbrido, com relações digitais atópicas. As significações comuns - em torno dos direitos da vida e do planeta - propiciam, em graus diversos, laços sociais entre aqueles que se manifestam no espaço público, que aderem online (sejam os mesmos ou não exatamente) e, ainda, os públicos que recebem os acontecimentos, remetendo para uma esfera metatópica.31
Logo, o contributo aqui lançado para pensar o espaço comum, na atualidade, foi o de demonstrar como na era das tecnologias digitais, da dispersão, da fragmentação, da desmaterialização e desterritorialização, há condições de possibilidade para a formação do comum, constituindo-se este nas redes e na rua. Se as redes sociais digitais desempenham um papel importante nas mobilizações, estas desenrolam-se em situações de ação coletiva amplas, híbridas e complexas.
Encerro com a observação que o comum (e, porventura, o social) está a ganhar uma nova expressão (e inteligibilidade) e que as relações locais e globais ou planetárias, tecnológicas, digitais e interpessoais, apesar da padronização, da pluralidade de estilos de vida e das diferenças culturais, políticas, económicas e outras, evidenciam a mesma condição comum de todos, i.e., a crise climática global. O “espaço comum” é ativado, de cada vez, nessa ecologia relacional.
Revisto por Ana Sofia Veloso