Introdução
Por muito tempo, os discursos acerca dos géneros e das sexualidades serviram, maioritariamente, para uma classificação e controlo dos corpos, através de disciplinas como o direito, a medicina e a psicologia (Foucault, 1990; Rodrigues, 2016). Contudo, com o advento do pós-estruturalismo e do construcionismo social, tem-se mostrado necessária a construção de novos paradigmas que rompam com as conceções normalizadoras, patológicas e essencialistas que categorizam as sexualidades e os géneros, passando também a considerar-se os contextos sócio-histórico-culturais onde se inserem (Butler, 1990; Foucault, 1990; Louro, 2001).
Todavia, continua vigente um sistema de género - binário e heteronormativo - baseado na crença de que existem dois (e apenas dois) sexos/géneros e de que os corpos femininos e masculinos são mutuamente exclusivos, determinados biologicamente (Ekins e King, 1999). Assim, geralmente, o sexo é visto como tendo uma determinante biológica (genitais, cromossomas, hormonas), enquanto o género seria uma construção social que engloba características comportamentais e de personalidade, associadas ao sexo (Nogueira, 2001). Deste modo, mesmo estabelecida a distinção, presume-se uma congruência sexo-género; para além de uma coerência entre estas dimensões e as expressões de género: homens devem ser masculinos e mulheres femininas.
No entanto, este paradigma tem vindo a ser criticado por alguns/algumas teóricos/as, como Judith Butler (1990) e Paul B. Preciado (2019), tanto por reforçar distinções categóricas entre corpos “masculinos” e “femininos” como por ignorar a forma como o discurso social constrói o sexo e o género do mesmo modo. Para além disso, este binarismo - tão presente para o sexo como para o género - é refutado pelas mais variadas vivências, incluindo as de pessoas trans e intersexo (i.e., pessoas que nascem com caracteres sexuais diversos) (Coll-Planas e Missé, 2015; Hird, 2000; Preciado, 2019; Teixeira, 2016).
Por conseguinte adotamos a perspetiva de que o género é construído socialmente, e constituído através de relações de poder determinadas (Coll-Planas e Missé, 2015; Nogueira, 2001; Oliveira, 2010), em oposição a um olhar essencialista que o pressupõe determinado biologicamente como “natural”. Ao rejeitar estas noções, reconhece-se uma maior diversidade de vivências possíveis, assim como uma multiplicidade de identidades e expressões de género (Butler, 1990; Preciado, 2019) - dentro ou fora do binarismo de género, não fixadas no corpo físico e sexuado, e independentes do desejo, ou ausência dele, de qualquer tipo de modificação corporal (Rodrigues, 2016).
Assim, partimos de um posicionamento construcionista, intersecional e feminista trans - que nos permite um olhar crítico relativamente aos sistemas e dispositivos normatizadores das identidades e dos corpos, possibilitando desta forma processos de desconstrução de modelos cis-heteronormativos, essencialistas e patologizadores.
Pretende-se, com o presente trabalho, abordar de forma crítica os modelos biomédicos acerca das identidades trans, e evidenciar como estes discursos que as patologizam, conciliados com ideais hegemónicos de masculinidade, influenciam as vivências, as experiências e a forma como homens trans constroem as suas próprias masculinidades.
Neste sentido, na primeira parte deste artigo abordam-se os modelos biomédicos e a (des)patologização das identidades trans através de uma perspetiva crítica; posteriormente, debruçamo-nos sobre as repercussões que estes discursos têm nas experiências de homens trans e na forma como se constroem enquanto seres masculinos; e, por fim, apresentamos as principais conclusões que emergiram deste trabalho.
Modelos biomédicos e a (des)patologização das identidades trans
Há décadas que os modelos biomédicos procuram “clarificar” o que seria a trajetória “normativa”, “legítima” e “saudável” de pessoas que não se identificam com o género que lhes foi imposto à nascença: o desejo de modificações corporais para obter essa congruência, recorrendo a terapias hormonais e a cirurgias de redesignação sexual (Missé, 2014; Preciado, 2019; Rodrigues, 2016). Estes seriam, então, os transexuais “verdadeiros” (Benjamin, 1966); distintos das pessoas que apenas pretendem alterar a sua performance de género, e não o seu corpo (Missé, 2014; Rodrigues, 2016).
Ao contrário de “transexual”, que teria uma carga inerentemente patologizante, têm surgido outras alternativas para nos referirmos a estes indivíduos, tais como “transgénero” e “trans”, que têm por objetivo ser mais inclusivas e dar enfoque à liberdade de autodeterminação2 e à heterogeneidade de expressões e identidades de género (Feinberg, 1992; Missé, 2014; Oliveira, 2010; Platero Méndez, 2014; Stryker, 2008). Por esta razão, neste trabalho, será empregue a terminologia “trans” de modo a abranger todos os indivíduos cujo género não corresponda ao que lhes foi atribuído no nascimento (independentemente do desejo ou da realização de mudanças corporais), advogando-se pela despatologização destas identidades e existências.
No entanto, apesar de sucessivas mudanças, os discursos biomédicos ainda se baseiam num sistema dicotómico de género, que apenas legitima pessoas que exibem, ou pelo menos desejam, uma pressuposta conformidade entre sexo e género (Soares et al., 2021). Assim, pessoas trans continuam a ser vistas como tendo por principal dilema identitário a incongruência e o conflito entre a sua identidade de género e o sexo com o qual foram designadas à nascença (Diamond et al., 2011). O seu principal objetivo seria, deste modo, alcançar o lado oposto da dicotomia, e ser identificado como homem ou mulher, de forma estável e inequívoca. Nota-se, então, que estes discursos impõem uma mudança física às pessoas trans como única “saída” para essa não-conformidade (Rodrigues, 2016).
Quando a correspondência sexo-género não se verifica, estes sujeitos são, muitas vezes, diagnosticados como tendo “disforia de género” (APA, 2013) e/ou “incongruência de género” (WHO, 2021) - que apesar de, na última versão da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, ter deixado de ser considerada uma patologia, continua a estar presente como condição médica -, mantendo-se, assim, o controlo e a patologização destas identidades. Alguns dos critérios de diagnóstico envolvem e fundamentam-se num desconforto com os próprios caracteres sexuais primários e/ou secundários, na vontade de se libertar dos mesmos, e, ainda, no desejo acentuado pelos caracteres sexuais primários e/ou secundários do “outro” género, que não o designado à nascença (APA, 2013). Assim, estes critérios acentuam a visão do desejo de mudanças físicas como necessárias para alguém se identificar como trans, demarcando a insistência em ver o género como tendo uma base biológica (Coll-Planas e Missé, 2014).
Para além disso, as narrativas dominantes sobre pessoas trans como seres que nasceram no “corpo errado” legitimam também este modelo patologizador focado nas intervenções cirúrgicas como “cura” (Missé, 2014). Partindo da premissa de que há algo de “errado” com os corpos trans, que continuam a ser tidos como “abjetos” (Oliveira, 2014), pode-se facilmente chegar a uma conclusão (esta sim) errada, de que a única alternativa para estas pessoas seria submeterem-se a tratamentos hormonais e intervenções cirúrgicas, para de lá saírem “curadas” ou “corrigidas” (Platero Méndez, 2014). Assim, estes discursos continuam a reforçar a adequação destes corpos discordantes, por meio de dispositivos cis-heteronormativos (Coll-Planas, 2010; Preciado, 2019; Rodrigues, 2016) - paradigma este muitas vezes interiorizado pelas próprias pessoas trans.
Ao pressionar estes indivíduos a uma mudança para o “sexo oposto” (através de alterações físicas e expressões de género normativas), sob a ameaça de não serem vistos como trans “o suficiente” ou trans “verdadeiros” (Catalano, 2015; Coll-Planas, 2010), estes modelos contribuem para a manutenção de discursos cis-heteronormativos3 e patologizantes, que não reconhecem a possibilidade de uma vivência não-normativa como legítima (Catalano, 2015; Coll-Planas, 2010; Preciado, 2019; Rodrigues, 2016). Esta insistência na necessidade de “passar” (passing, i.e., de não ser percetível se alguém é trans, referindo-se, assim, a pessoas que “passam” por não-trans e/ou cis) perpetua também modelos essencialistas, binários e redutores do que é ser homem e mulher, de masculinidade e de feminilidade (Amâncio, 1994; Rodrigues, 2016; Soares et al., 2021). Este requisito é, em si, uma forma de opressão, para além de que revela como não apenas pessoas trans, mas também pessoas cis, “concretizam” o género e como este é aprendido em interações quotidianas (Hird, 2000).
Pretendemos, por oposição, reconhecer uma pluralidade de identidades e de corpos como igualmente legítimos e detentores de direitos e alertar para a opressão/privilégio que advém do passing (Gomes de Jesus, 2014; Preciado, 2019; Rodrigues et al., 2018). Deste modo, quem tem mais facilidade em “passar”, consegue ter um lugar “privilegiado” na sociedade e não ser alvo de tanta violência transfóbica (Gomes de Jesus, 2014), dado que este “privilégio” sucede de sistemas ideológicos opressivos que valorizam corpos normativos, vendo corpos trans como não desejáveis. Isto torna-se problemático, uma vez que pessoas trans são incentivadas a perpetuar estereótipos de género para conseguirem ser reconhecidas como homens ou mulheres “de verdade” (Gomes de Jesus, 2014; Rodrigues, 2016). Mesmo considerando esta problematização, deve reconhecer-se a legitimidade de pessoas trans que desejam ser percebidas como cis, entendendo a sua agência e considerando a forma como a violência e a discriminação que enfrentam quotidianamente pode ser reduzida através de mecanismos que permitam a passabilidade (Rodrigues, 2016; Rodrigues et al., 2018).
Por outro lado, muitos indivíduos interiorizam este modelo e os critérios que são tidos como essenciais para se ser um “verdadeiro transexual”, adotando eles próprios um discurso biomédico (Coll-Planas e Missé, 2014). Para muitos/as, assumir este discurso legitima e desculpabiliza as suas experiências, para além de conferir um sentido às suas existências (Coll-Planas e Missé, 2015). As explicações biomédicas podem ser vistas como “tranquilizadoras”, no sentido em que oferecem uma possibilidade de “deixar de sofrer” através de uma “cura”, permitindo ainda um reconhecimento social destas identidades através da legitimação pela medicina e pela psicologia (Coll-Planas e Missé, 2015; Rodrigues, 2016).
Apresentar-se com estas narrativas dominantes, num contexto clínico, torna-se frequentemente numa necessidade percecionada por pessoas trans, de modo a serem aceites e legitimadas pela comunidade médica e conseguirem um diagnóstico - muitas vezes exigido para mudar legalmente a sua identidade,4 iniciar tratamentos hormonais ou realizar cirurgias de redesignação sexual (Coll-Planas e Missé, 2014). Assim, a prática psicológica corre o risco de, nestes casos, deixar de ser terapêutica ou de acompanhamento, para passar a constituir um julgamento do sujeito, averiguando quem é “verdadeiramente” trans e/ou quem é “realmente” mulher ou homem (Coll-Planas, 2010; Oliveira, 2014; Pinto e Moleiro, 2015; Preciado, 2019; Rodrigues, 2016). Denota-se, desta maneira, que através desta categorização, é produzida uma hierarquização das trajetórias de pessoas trans, estabelecendo as que se adequam aos critérios diagnósticos como mais legítimas (Coll-Planas e Missé, 2015).
Para além disso, como os critérios empregados são sexistas e heteronormativos, muitas das vivências acabam por não ser tidas como autênticas. Se estes indivíduos não ajustarem os comportamentos, a forma de vestir e de se apresentar publicamente e a orientação sexual (heterossexual) estereotipicamente atribuídos ao género com o qual se identificam, então serão desqualificados e desacreditados (Oliveira, 2014; Soares et al., 2021).
No entanto, a violência gerada pela patologização não é apenas exercida pelo poder médico (Coll-Planas, 2010). Estar inserido num sistema cissexista - que impõe uma normatividade constantemente -, exerce pressão sobre estes indivíduos para se adequarem ao que são comportamentos e símbolos expectáveis do seu género, de modo a contornar o lugar de inumanidade que muitas vezes lhes é atribuído, devido em parte ao facto de os seus corpos continuarem a ser vistos como abjetos (Oliveira, 2014; Soares et al., 2021). Deste modo, e dependendo das necessidades percecionadas em cada contexto, podem assumir e apresentar uma identidade de género que seja reconhecível e legitimada socialmente (Coll-Planas, 2010; Soares et al., 2021).
Assim, reconhece-se que ninguém é completamente livre das dinâmicas culturais e sociais impostas pelo sistema binário de género (Koyama, 2003), de modo que as pessoas trans são muitas vezes pressionadas a aderir a este sistema: espera-se que as mulheres adotem comportamentos tradicionalmente associados à feminilidade e os homens à masculinidade.
Ainda que reconhecendo que há quem deseje viver de acordo com este sistema binário, defende-se, de acordo com a agenda transfeminista (ibidem), a desconstrução do binarismo de género, recusando definições puramente biológicas e essencialistas do que é “ser mulher” ou “ser homem” (Gomes de Jesus, 2014). Pessoas trans não são “imitações” de homens e mulheres “de verdade” (Alves, 2012); na realidade, tanto as pessoas cis como as pessoas trans se vão construindo ao longo da vida como homens ou mulheres, ou mesmo rompendo com essas categorias binárias (Gomes de Jesus, 2014; Rodrigues et al., 2018).
No entanto, com estes discursos ainda em vigor, continua-se a patologizar as pessoas trans, vendo-as como pessoas que, no fundo, não têm o direito de ser quem são. As transexualidades continuam a ser consideradas um problema individual e psicológico, não se problematizando os sistemas sociais opressivos, como o cissexismo ou a transfobia, que contribuem para o sofrimento destas pessoas ao legitimar a estigmatização e a violência sobre as mesmas (Arán et al., 2008; Coll-Planas, 2010; Platero Méndez, 2014; Rodrigues, 2016).
Assim, vários/as autores/as (e.g., Bento, 2006; Catalano, 2015; Hird, 2000; Oliveira, 2014; Rodrigues, 2016; Suess Schwend, 2016) têm advogado pela despatologização das identidades trans, uma vez que o rótulo de doença mental as deslegitima e limita a sua autonomia (Alves, 2012). A patologização permite, ainda, manter um sistema cis-heteronormativo e reduzir a pluralidade de experiências trans. Contrariamente, a despatologização das transexualidades implicaria uma politização do debate, ao deslocar o foco do indivíduo para as relações de poder que constroem o “normal” e o “patológico” (Bento, 2006; Missé, 2014; Platero Méndez, 2014; Rodrigues, 2016).
Continuar a patologizar as vivências trans contribui, desta forma, para a manutenção de um processo que hierarquiza existências, legitimando umas vidas e corpos enquanto exclui outros, de acordo com estes sistemas opressivos (Coll-Planas, 2010; Oliveira, 2014; Rodrigues, 2016). Defendemos, então, que a identidade de uma pessoa não deveria ser reduzida a um diagnóstico (Rubin, 2003), nem à “normalização” de um corpo através de intervenções biopsicomédicas (Coll-Planas, 2010; Preciado, 2019; Rodrigues, 2016).
Um posicionamento de autodeterminação, enquanto lente de interpretação do fenómeno trans, permitiria ainda que estes indivíduos fossem os únicos capazes de legitimar os seus corpos (Oliveira, 2014). Um modelo que defenda o direito de cada um poder definir a sua própria identidade iria, por um lado, eliminar a exigência e a pressão para uma mudança corporal e, por outro, remover as barreiras - impostas por autoridades políticas ou biopsicomédicas - ao acesso a estas cirurgias para aqueles/as que as desejam, sem terem de provar constantemente quem são (Catalano, 2015).
Repercussões dos discursos biopsicomédicos nas vivências de homens trans
Os modelos biomédicos acerca das transexualidades impõem requisitos que determinam quem são as pessoas trans que podem ser, ou não, legitimadas. Assim, uma das grandes preocupações de homens trans está relacionada com serem considerados “suficientemente” homens (Catalano, 2015; Soares et al., 2021). Isto é, de modo a serem percebidos enquanto homens trans, estes podem sentir pressão para se adaptarem a certos requisitos que lhes são impostos pelos discursos e práticas médicos, pela sociedade em geral e, por vezes, até pela própria população trans (ibidem).
Portanto, teriam de, em primeiro lugar, submeter-se a intervenções para modificar os seus corpos e, em segundo, expressar-se de formas condizentes com a masculinidade hegemónica (ibidem). Estas exigências podem culminar numa necessidade de provar que são homens e numa obrigação de “passar” (através de expressões normativas de género, por vezes forçadas) - o que, por um lado, pode ser considerado uma conquista, mas por outro pode significar invisibilidade e silenciamento (Catalano, 2015). Consequentemente, isto pode levar estes sujeitos a “fazer determinadas negociações com a masculinidade hegemónica” (Soares et al., 2021: 116).
Este tipo de masculinidade foi descrito na tipologia de Raewyn Connell (2005), segundo a qual as masculinidades seriam configurações de práticas estruturadas por relações de género e inerentemente históricas. Deste modo, para além de se reconhecer a existência de múltiplas masculinidades, também se reconhecem as relações entre elas: aliança, dominação, subordinação. Assim, a masculinidade hegemónica pode ser definida como o conjunto de expressões de género que atualmente legitima o lugar dominante dos homens em sociedade e que, ao mesmo tempo, justifica e garante que as mulheres continuem numa posição de subordinação (Connell, 2005; Soares et al., 2021). É então o modelo de masculinidade que se apresenta como o referencial e que institui normas acerca do que é ser um “homem de verdade”, a partir das quais as outras masculinidades são examinadas (Bento, 2015; Marques, 2011; Soares et al., 2021; Welzer-Lang, 2001).
Um dos aspetos mais relevantes desta masculinidade seria ainda a busca constante por significantes de sucesso e poder (dando valor à competição), de confiança, e de força (por vezes expressa através de comportamentos violentos), assim como a valorização da virilidade (heterossexual e vinculada a um pénis) e o menosprezo em relação às mulheres e a tudo o que seja relacionado com o feminino (Almeida, 1995; Bento, 2015; Connell, 2005; Santos, 2015; Soares et al., 2021). De facto, alguns/algumas autores/as (e.g., Bento, 2015; Connell, 2005; Welzer-Lang, 2001) têm notado que uma noção de antifeminilidade é central às conceções de masculinidade. Ser homem é, antes de mais, não ser mulher (Bento, 2015; Rabelo, 2010).
Porém, nenhum homem é capaz de se moldar completamente a estas exigências que demonstrariam, sem qualquer dúvida, que o status de ser masculino teria sido alcançado, pois na realidade este não passa de um ideal inatingível (Bento, 2015; Connell, 2005; Marques, 2011). Logo, embora esta ideologia se estruture com base na subordinação da mulher, acaba também subordinando todas as outras pessoas, homens inclusive - quer os que não procuram adequar-se a ela como os que buscam esse estatuto sem nunca o alcançar (Bento, 2015; Marques, 2011; Soares et al., 2021).
A masculinidade torna-se desta forma algo a ser provado e reafirmado, um projeto sempre inacabado e que exige uma (re)construção constante (Bento, 2015; Carrito e Araújo, 2013; Welzer-Lang, 2001). Esta necessidade de reafirmação, através de rituais simbólicos relacionados com o sexo, a agressividade, entre outros, mostra então como a masculinidade não é garantida nem “natural” (Carrito e Araújo, 2013; Connell, 2005). Ao ser necessário vigilância e imposição - através de frases como “faz-te homem” -, a masculinidade revela-se algo a ser perseguido a custo: para obter os privilégios de “ser homem”, estes devem submeter-se ao modelo hegemónico (Welzer-Lang, 2001).
A omnipresença da masculinidade hegemónica, no dia a dia das vidas de homens trans, acaba por afetar e determinar o modo como estes constroem e concetualizam as suas expressões de género (Soares et al., 2021). T. J. Jourian (2017) concluiu que estes indivíduos fazem várias negociações com a masculinidade dominante. Enquanto uns resistem e a rejeitam - adotando uma postura questionadora e crítica relativamente aos padrões de género -, outros assimilam modelos dominantes e hegemónicos ou que têm uma compreensão da dominância como lhes sendo imposta através de expectativas de género (Jourian, 2017; Soares et al., 2021). Efetivamente, muitos homens trans apenas se sentem reconhecidos como “homens verdadeiros” quando adotam expressões que se conformam com masculinidade hegemónica (Soares et al., 2021).
Assim, nem todos os homens trans rejeitam completamente esta masculinidade tradicional e dominante: alguns assumem a adesão a comportamentos compensatórios de masculinidade, que estão conscientemente de acordo com o que seria expectável da mesma (Jourian, 2017; Soares et al., 2021; Vegter, 2013). Geralmente, observa-se este incremento de expressões tidas como masculinas nas fases iniciais dos processos de modificação corporal (Soares et al., 2021; Vegter, 2013), como forma de afirmar a sua identidade, quando a passabilidade não é tão grande. De facto, uma das razões apontadas para estes comportamentos compensatórios é o sentimento de falta de certos marcadores físicos que indicariam o género masculino (Jourian, 2017; Soares et al., 2021) - barba, voz grossa, forma de andar, etc.
Outra razão, ainda que relacionada com a falta de passabilidade, tem a ver com as perceções de segurança destes indivíduos. Sentir uma falta de segurança pode estimular a sua conformidade com expectativas de género e levar a uma afirmação de masculinidade quando esta é ameaçada (Abelson, 2014). Embora muitos desejassem ser homens mais justos, por meio de práticas igualitárias e transformadoras, isso é visto apenas como uma prática viável quando podem fazê-lo sem comprometer a sua segurança (ibidem).
Verifica-se, assim, que quando se sentem mais confiantes relativamente à sua aparência e quando passam a ser mais reconhecidos socialmente enquanto homens, a adesão a performances tradicionais de masculinidade tende a diminuir (Almeida, 2012; Soares et al., 2021; Vegter, 2013). Ainda assim, estas expressões convencionalmente masculinas continuam a ser consideradas fundamentais para a legitimação social de que se é um “homem de verdade” (Jourian, 2017; Saleiro, 2012; Soares et al., 2021; Vegter, 2013).
Para além disso, nota-se então que a materialidade do corpo tem grande importância para as experiências de muitos homens trans (Aboim, 2016; Prosser, 1998; Rubin, 2003). Ainda que muitas vezes não relacionada à genitália, ser percecionado como homem em sociedade, através da presença de indicadores de masculinidade, como a barba e o peito “liso”, mostra-se fundamental para a sua afirmação enquanto pessoa masculina (Aboim, 2016; Green, 2005; Saleiro, 2012; Soares et al., 2021). Deste modo, grande parte dos homens trans anseia ser reconhecido como homem e/ou como masculino, mesmo que o arquétipo da masculinidade hegemónica ou de uma masculinidade “normalizada” seja rejeitado por muitos destes indivíduos (Aboim, 2016; Soares et al., 2021). Muitas vezes o foco não está em ser um homem estereotipadamente masculino, mas antes em alcançar um bem-estar e um lugar de conforto consigo mesmo, que pode passar por expressões lidas como masculinas (Nunes, 2016; Soares et al., 2021).
Esta apresentação considerada masculina não é estática e pode sofrer alterações em determinados contextos e situações. Por exemplo, quando homens trans escolhem engravidar, a perda de passabilidade durante esse período - tanto devido à supressão da terapia hormonal, como às mudanças corporais da gestação - pode levar a renegociações com as suas masculinidades (Pinho et al., 2020).
O facto de engravidar ainda ser visto socialmente como uma função corporal restrita à vivência da feminilidade pode levar muitos homens trans a negarem a parentalidade (ibidem). No entanto, homens que decidem engravidar desafiam de forma fundamental o que ainda é tido e imposto como sendo “de homem” ou como significante de masculinidade. Ora, isto impacta de alguma forma a maneira como estes homens se subjetivam, integrando os processos de gestação e parto nas suas próprias construções de masculinidade (Monteiro, 2018).
Neste sentido, o feminismo trans tem incluído, nas suas reivindicações, os direitos sexuais e reprodutivos de homens trans (Gomes de Jesus, 2014), e chamado a atenção para o facto de que homens podem ficar grávidos, defendendo, então, que este ato não deslegitima qualquer identidade: um homem trans não é menos homem por engravidar (Platero Méndez, 2014; Rodrigues, 2016).
Estas pressões provocadas pela masculinidade hegemónica também se verificam na conciliação que homens trans fazem com as suas próprias identidades (Soares et al., 2021). De acordo com Henry Rubin, a comparação com outras figuras masculinas e o receio de não se tornarem sexistas - e não se conformarem com a masculinidade dominante - podem gerar um entrave à identificação como homem de forma despreocupada (Rubin, 2003; Soares et al., 2021). Já outros homens trans, quando confrontados com este “modelo a seguir”, questionam se estarão à altura da masculinidade hegemónica - se são fortes o suficiente, altos o suficiente, viris o suficiente (Rubin, 2003).
Contudo, muitos homens trans consideram a identidade de género como sendo distinta da expressão de género; vendo a masculinidade não só como diferente, mas também como independente de ser homem (Devor, 1989; Green, 2005; Halberstam, 1998; Rubin, 2003; Soares et al., 2021; Vegter, 2013). Assim, a masculinidade deixa de ser entendida como um requisito para que se reconheçam como homens, o que lhes permite ter uma maior liberdade e fluidez na forma como se expressam, sem que sintam que a sua identidade de género fica comprometida (Bockting et al., 2009; Soares et al., 2021).
É fundamental colocar em evidência as exigências feitas para que homens trans sejam reconhecidos como homens e o esforço necessário para alcançar esse “estatuto” em sociedade. Embora estes indivíduos possam, através do passing, ganhar aceitação e “privilégios” enquanto homens (Aboim, 2016; Schilt, 2010) - autoridade, respeito e reconhecimento -, quando comparado com o antes da “mudança”, também é notório como muitos passam por experiências de marginalização e discriminação se escolherem viver abertamente como homens trans (Schilt, 2010).
É, então, essencial reconhecer que homens trans vão desenvolvendo as suas próprias conceções de masculinidade, enquanto necessitam, simultaneamente, de encarar as imposições da masculinidade hegemónica (Soares et al., 2021). Assim, estes indivíduos vão-se desconstruindo e reconstruindo, estando as suas identidades em constante renegociação (Jourian, 2017; Soares et al., 2021).
Conclusão
Como vem sendo dito, os discursos cis-heteronormativos e biomédicos pressionam as pessoas trans a passar por uma mudança corporal e a encaixar-se num de dois “opostos” - mulher ou homem - perpetuando a noção de que qualquer vivência que não se encaixe nesses parâmetros não é legítima nem desejável (Coll-Planas e Missé, 2014). Assim, realçamos que os discursos de “trans verdadeiro” e “corpo errado” são problemáticos, por perpetuarem modelos e categorias limitadoras, dando antes ênfase a discursos de autodeterminação (Catalano, 2015; Coll-Planas e Missé, 2015; Missé, 2014; Oliveira, 2010; Platero Méndez, 2014; Rodrigues, 2016).
Consideramos, ainda, que trazer e refletir sobre as questões trans na academia é fundamental para elaborar politicamente medidas que enfrentem as violações dos direitos humanos, que perpassam as vivências de pessoas que transcendem os limites do binarismo de género - como é o caso das pessoas trans (Rodrigues, 2016).
Para além disto, e embora ultimamente a literatura respeitante a homens trans tenha vindo a aumentar, reconhece-se que estes têm sido negligenciados no que diz respeito aos estudos de género: tanto no campo das masculinidades - onde raramente são incluídos (Aboim, 2016; Catalano, 2015; Jourian, 2017) - como na investigação sobre pessoas trans - onde se verifica uma maior incidência sobre mulheres (Gottzén e Straube, 2016; Oliveira, 2014).
Deste modo, torna-se importante construir pontes entre diferentes áreas dos estudos críticos de género, partindo de uma perspetiva intersecional que tem em conta como diferentes pertenças identitárias se interrelacionam para criar experiências concretas de privilégio/opressão (Nogueira, 2017). Assim, criar um diálogo entre os estudos trans e os das masculinidades poderia abrir espaço para novas conceções sobre o que é ser masculino e quebrar o elo entre homens cis e masculinidades - que tem sido considerado como garantido -, demonstrando que a masculinidade não é algo que apenas alguns corpos específicos têm ou possuem, mas antes que pode ser expressa por uma variedade de corpos (Aboim, 2016; Almeida, 2012; Gottzén e Straube, 2016; Halberstam, 1998).
Consideramos, por isso, que é necessário e importante contribuir para a redefinição do que é “ser homem” e do que é “ser masculino” numa perspetiva não-essencialista e longe de categorizações estanques e limitadoras. De facto, relacionar o estudo das masculinidades com homens trans revela-se um bom ponto de partida possível para compreender as suas vivências, para além de deixar a descoberto os requisitos impostos a corpos de homens trans, no que toca à sua expressão de género, que espelham a imposição constante de uma normatividade cisgénera e heterossexual compulsória. Espera-se, deste modo, contribuir para a desconstrução destes paradigmas e narrativas hegemónicos, fomentando ainda a igualdade de género e a justiça social.
Revisto por Ana Sofia Veloso