A pandemia da COVID-19 constituiu um momento de rutura nas sociedades contemporâneas, gerando um “novo normal” em que, como nos lembra Sérgio Godinho, “Ninguém sabe se sabe / Nem que acaso ou que destino nos cabe”.1 A rápida propagação de um novo vírus respiratório tornou-se o foco de atenção de governos e da comunicação social a nível global. No início de 2020, a cidade chinesa de Wuhan assumiu contornos distópicos, com mais de 11 milhões de habitantes confrontados com a suspensão das suas vidas quotidianas. Perante o desconhecimento acerca de uma doença que aparentava ter tanto taxas de letalidade como de transmissão bastante superiores aos vírus respiratórios em circulação, o confinamento assumiu-se como a resposta sociopolítica a adotar.
Primeiro em Wuhan e no resto da China, depois na Europa, nos Estados Unidos e no resto do mundo, as populações deveriam ficar confinadas em casa para “achatar a curva” da transmissão do vírus. No entanto, e apesar das medidas draconianas adotadas pela maior parte dos governos, parecia impossível conter o surto pandémico e a mortalidade associada. Um aparato material constituído por máscaras, frascos de álcool-gel e ventiladores era apresentado como fundamental para fazer face à nova ameaça sanitária.
Após os primeiros tempos caracterizados pela surpresa, pelo medo, pela incredulidade, que evidenciavam a fragilidade da vida humana - destino comum a toda a humanidade (todos no mesmo barco), o evoluir da pandemia relevou crua e despudoradamente as abissais desigualdades entre países e, dentro dos países, entre diferentes grupos sociais, a começar pelo direito/dever de “ficar em casa”, primeira linha de defesa contra o vírus (ver Farha, 2020; Bushman, e Mehdipanah, 2022). Não apenas os números da morbilidade e mortalidade por COVID-19 começaram a ser mais expressivos nos grupos sociais mais vulneráveis, como os impactos das medidas de mitigação da transmissão do vírus (desemprego, perda de rendimento, isolamento social, dificuldade de acesso a bens e serviços, etc.) se revelaram também mais severos entre estes grupos sociais.
As liberdades de circulação eram limitadas em salvaguarda da saúde pública: o estado de exceção imposto devido à emergência pandémica separava inicialmente trabalhadores/as essenciais de não-essenciais; regulava a circulação entre concelhos; determinava a que horas as pessoas poderiam sair de casa; postulava quais as atividades que poderiam justificar a circulação na via pública - como a deslocação a serviços médicos, a compra de alimentos ou a visita a familiares em determinadas circunstâncias.
O encerramento temporário de escolas, restaurantes, espaços de diversão e do comércio não-essencial teve impacto na construção e manutenção das sociabilidades, evidenciando a importância da dimensão social na saúde mental assim como a hegemonia de redes tecnológicas, corporativas e financeiras que permitia que governos e cidadãos/ãs navegassem por um cenário emergencial em permanente construção. As tecnologias de informação permitiram que trabalhadores/as à distância, estudantes e até pacientes pudessem realizar uma série de atividades de forma “digital”. Novas aplicações de rastreio de contactos (como a aplicação portuguesa StayAway COVID) recolhiam dados de milhões de cidadãos/ãs para evitar a propagação do vírus, ao mesmo tempo que a indústria farmacêutica se mobilizava para, em tempo recorde, desenvolver uma vacina que pudesse finalmente restituir a normalidade, inclusive as liberdades individuais limitadas perante a proliferação do vírus.
A administração das primeiras vacinas, no final de 2020, marcou um ponto de inflexão na gestão da pandemia nos países desenvolvidos, assumindo-se que a vacinação de uma parte significativa da população poderia quebrar as cadeias de transmissão e diminuir o impacto do vírus ao nível da letalidade e da doença grave, registando-se, no entanto, uma desigualdade de acesso às vacinas entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Em Portugal, 95% da população terá recebido pelo menos uma dose da vacina e, em agosto de 2022, já tinham sido administradas mais de 12,5 mil milhões de doses a nível global.2
A criação de um Certificado Digital, disponível através de um portal na internet e de uma aplicação para telemóvel, indexava as liberdades de circulação à condição dos/das cidadãos/ãs perante a vacina ou uma infeção anterior. Esta aplicação foi emblemática do impacto sociopolítico da pandemia, articulando uma configuração tecnobiopolítica que problematizava as fronteiras entre o somático, o digital e o legislativo. Apesar de, na maior parte dos países, a vacinação se assumir como facultativa, em alguns contextos nacionais, e para alguns setores de atividade e grupos demográficos, ela tornou-se obrigatória3 ou adquiriu contornos coercivos, motivando a emergência de movimentos sociais e de protesto em diversos países europeus e da América do Norte que colocavam em causa o aparente consenso médico, científico e político em torno da crise sanitária.
A pandemia da COVID-19 suscitou ruturas paradigmáticas a vários níveis que requerem/reclamam uma extensa reflexão crítica e interdisciplinar que venha dar sentido a este momento de exceção. Nesse sentido, o Conselho de Redação da Revista Crítica de Ciências Sociais (RCCS) decidiu lançar um convite à apresentação de artigos com o objetivo de problematizar algumas das tensões e contradições sociopolíticas da crise pandémica, reconhecendo o papel das ciências sociais e humanidades para refletir - de forma contra-hegemónica - acerca do momento presente e das narrativas dominantes sobre o vírus. A pandemia tem suscitado reflexões de distintos quadrantes da academia e, à data da redação deste editorial, uma pesquisa por “COVID-19” na plataforma Google Scholar originava mais de 4,8 milhões de resultados, o que ilustra o volume de produção científica associada à crise sanitária.
Nas ciências sociais e humanidades, a investigação sobre a COVID-19 tem incidido, entre outros temas, sobre: o impacto da pandemia no trabalho e nas relações laborais (Ferreira et al., 2022); as desigualdades socioeconómicas (Ward, 2020); as relações de género (incluindo a violência doméstica) (Rosenfeld et al., 2022; Fortier, 2020; Ward, 2020); as desigualdades Norte/Sul (Santos, 2020); as novas configurações (bio)políticas e os autoritarismos (Agamben, 2021; Bieber, 2020; Mendes, 2020); os processos psicológicos e as relações interpessoais e intergrupais (Rosenfeld et al., 2022); o impacto sociopolítico das relações entre humanos e não-humanos (Carvalho, 2020); os paralelismos entre a crise pandémica e a crise ambiental e climática (Latour, 2021). Tendo em conta a presença da pandemia em praticamente todas as esferas sociopolíticas contemporâneas, esta lista não exaustiva elenca o potencial da crise sanitária - e do vírus - enquanto tema agregador para a produção de uma visão crítica sobre a pandemia da COVID-19 e pandemias futuras. Apesar dos inúmeros estudos e investigações realizadas desde o início da pandemia, alguns dos seus impactos, nomeadamente a longo prazo (e.g., saúde física e mental), nas gerações mais novas (e.g., desenvolvimento cognitivo, socio-emocional, motor), ou a nível societal (e.g., confiança interpessoal e institucional), estão ainda por vislumbrar.
O convite à apresentação de artigos para este número da RCCS identificava nove potenciais tópicos que, apesar de bastante abrangentes, não esgotavam o rol de possibilidades em torno de reflexões críticas sobre a crise pandémica: a) pandemia da COVID-19 e biopolítica, reconhecendo que o “governo da vida” foi indelevelmente recrutado - e reconfigurado - pela crise sanitária; b) pandemia, capitalismo global, desigualdades sociais, desigualdades Norte/Sul, assumindo o acesso desigual a vacinas e equipamento médico e de proteção, bem como o impacto económico da crise sanitária, nomeadamente ao nível dos fluxos globais de capital; c) crise sanitária, democracia e direitos humanos, especialmente a emergência de novas formas de autoritarismo estatal e dispositivos de apartheid biopolítico (como, por exemplo, a discriminação entre vacinados/as e não-vacinados/as); d) pandemia, (des)informação e fragmentação do espaço público, incluindo a controvérsia em torno da disseminação de notícias falsas, da proliferação de mecanismos instituídos de controlo da informação e da verdade (os designados fact-checkers), e da emergência de consensos médicos e científicos instituídos por entidades públicas e privadas (como as farmacêuticas); e) pandemia da COVID-19 e teoria social, reconhecendo os desafios teóricos e metodológicos colocados pela crise sanitária e pelo próprio vírus enquanto ator social e político; f) crise sanitária e o papel da ciência e tecnologia, tendo em conta o papel das tecnologias de informação para a reconfiguração das sociabilidades, de formas de controlo social e dos desafios colocados pela pandemia à ciência e aos mecanismos de produção científica; g) representações literárias e artísticas da pandemia, assumindo o potencial da pandemia enquanto evento cultural; h) a pandemia COVID-19 no contexto de pandemias passadas, nomeadamente a gripe pneumónica de 1918-1919; i) COVID-19 e ética do cuidado, incluindo não só o cuidado entre humanos, mas também o cuidado mais-do-que-humano, tendo em conta os debates atuais acerca da relação entre zoonoses e crise ambiental e climática.
Após a receção de dezenas de propostas, um conjunto de artigos foi escolhido pelo Conselho de Redação para seguir para a segunda fase do processo habitual de arbitragem científica da RCCS, em formato double-blind peer review, tendo sido selecionados no final, com base nos pareceres recebidos e após reformulações, sete textos para integrar o número temático.
O primeiro artigo deste número temático sobre a COVID-19, da autoria de Nuno Teles, analisa a economia política da pandemia da COVID-19, mostrando como a mesma resulta diretamente das dinâmicas globais do sistema capitalista, assente na financeirização e nos processos de monopólio das grandes empresas internacionais, designadamente do setor agropecuário intensivo. A crise associada à COVID-19 é interna ao próprio sistema capitalista, reforça e legitima o neoliberalismo, mas mostra também a centralidade dos Estados ao trazer de novo para o espaço público noções como socialização, nacionalização e planeamento. Sublinhando que as desigualdades internas aos países e entre países do centro e da periferia capitalista se acentuaram com a crise sanitária, Teles conclui pela necessidade de novos modelos de planeamento macroeconómico e de criação das condições para que os/as trabalhadores/as se apropriem dos instrumentos de gestão que permitam a democratização do local de trabalho, a valorização da representação laboral e do conhecimento técnico, configurando formas alternativas ao capitalismo neoliberal hegemónico.
O artigo de Alexei Anisin recorre à Teoria do Discurso da Escola de Essex (IDA, na sigla inglesa), inspirada em Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, para proceder a uma análise da produção do discurso da Comissão Europeia durante e em torno da pandemia da COVID-19. O autor mostra como, em tempos de mudanças sociais profundas e perante acontecimentos que expõem a natureza contingente da realidade social, os poderes estabelecidos têm necessidade de articular novas políticas e identidades para ressignificar os acontecimentos e legitimar as ações a empreender. No caso presente, através da análise de discursos, afirmações e documentos oficiais da Comissão Europeia, Anisin descreve o recurso a significantes vazios para justificar a utilização de aplicações eletrónicas de seguimento e vigilância dos/das cidadãos/ãs na União Europeia, a significantes flutuantes, como xenofobia e desinformação, para contrapor aos oponentes das medidas implementadas, e, por fim, à produção de identidades e antagonismos, como “nós” (os vacinados) e “os outros”, para legitimar as políticas públicas instituídas.
No artigo da autoria de Anne Kubai aborda-se o caso específico da Suécia na crise pandémica da COVID-19. A autora situa-se numa perspetiva qualitativa, utilizando técnicas e métodos diversificados como análise crítica do discurso, observação, entrevistas e grupos focais. A hipótese de partida é a de que a política nacional e a definição e aplicação de medidas para lidar com a COVID-19 se ancorou numa visão sueca de excecionalidade, caracterizada por uma postura equilibrada e sensata, de confiança mútua entre as autoridades e os/as cidadãos/ãs. As medidas foram, assim, de persuasão e de recomendação, baseadas na escolha individual e sem opções radicais como confinamentos, uso de máscaras, ou outras medidas análogas. Kubai mostra como esta opção política em privilegiar o individual em detrimento de uma visão coletiva teve impacto na alta mortalidade per capita. O artigo lida também com o impacto diferenciado e altamente penalizador das comunidades imigrantes na Suécia. A autora conclui que as recomendações e a política de comunicação do risco sobre a COVID-19 na Suécia foram ambíguas, deixando o ónus da sua interpretação às pessoas, numa dinâmica de discricionariedade que acentuou as desigualdades e a vulnerabilidade de determinados grupos e indivíduos.
O artigo seguinte, escrito por Rafael Tomás-Cardoso, Fernando Talayero e María Amérigo, centra-se no caso espanhol. Nele é aplicado um modelo integrador que mobiliza diversas perspetivas e múltiplas variáveis na perceção do risco e na adoção de medidas preventivas em relação à COVID-19. Entre as variáveis explicativas utilizadas nesse modelo temos as condições sociais, os fatores individuais e os contextos socioculturais. O estudo baseia-se na aplicação de um questionário eletrónico a uma amostra não-representativa e não probabilística, assumindo um caráter exploratório. Os resultados obtidos mostram o papel central dos fatores individuais (a confiança, o controlo, o impacto percebido e as atitudes quanto às medidas de proteção) tanto na perceção do risco como na adoção de medidas protetoras. Relevante também é o papel das atitudes e dos comportamentos pró-sociais na perceção do risco. Tomás-Cardoso, Talayero e Amérigo terminam o artigo com a proposta de um esquema analítico que permite avançar na compreensão da interação complexa entre fatores estruturais, discursos públicos, perceção de risco e adoção de comportamentos salutogénicos no caso da COVID-19.
José de São José, Virpi Timonen, Ana Teixeira, Carla Amado, Sérgio Santos e Patrícia Coelho apresentam no próximo artigo os resultados de um estudo qualitativo, baseado em entrevistas telefónicas e diários telefónicos, sobre o impacto do primeiro confinamento no contexto da pandemia da COVID-19 em pessoas com mais de 65 anos e a viverem sozinhas em Portugal. Partindo de um posicionamento epistemológico interpretativo e pragmático e de uma sociologia do quotidiano, e aplicando a análise de quadros, os/as autores/as procedem a uma análise sustentada dos diferentes tipos de experiência do confinamento. Concluem que este teve, de uma forma geral, efeitos negativos significativos nas pessoas participantes do estudo, sobretudo a nível de perdas nas atividades exteriores ao domicílio, nas interações de proximidade e na sua independência. Os resultados obtidos conduzem os/as autores/as a recomendarem, em caso de pandemias ou de situações análogas futuras, uma reflexão cuidada sobre o equilíbrio de risco e o impacto das medidas a adotar nas pessoas de mais idade, sobretudo se incluírem confinamentos ou longos períodos de permanência em casa.
O artigo da autoria de Teresa Martins, João Arriscado Nunes, Isabel Dias e Isabel Menezes também se centra em Portugal e nas pessoas de mais idade. Mas, neste caso, é analisada a atuação de uma associação representativa de pessoas reformadas em Portugal e de como a mesma utilizou as redes sociais, concretamente o Facebook, para a comunicação institucional, a divulgação de atividades e a tomada de posições políticas e de mobilização dos/das seus/suas associados/as durante os períodos de confinamento. As autoras e o autor concluem pela importância das redes sociais digitais na desconstrução de estereótipos associados ao idadismo e pela presença crítica no espaço público das associações que representam os/as cidadãos/ãs de mais idade.
O último artigo deste número temático aborda a desproteção social e as vulnerabilidades sociais produzidas ou agravadas na sequência das medidas sanitárias e no mercado laboral tomadas a propósito da COVID-19 em Portugal. Jorge Caleiras, Renato do Carmo, Isabel Roque e Rodrigo de Assis partem da análise de entrevistas e do seguimento de algumas das pessoas entrevistadas para a definição de uma tipologia de perfis de percursos de participação no mercado de trabalho. Concluem pela existência de impactos profundos nas pessoas afetadas, sobretudo quanto à exclusão laboral, à quebra de rendimentos e às componentes relacionais e existenciais. As formas de enfrentamento das situações vividas são múltiplas, e os autores e a autora terminam o artigo com uma reflexão crítica sobre os processos de precarização do trabalho, as respetivas dinâmicas institucionais e os riscos inerentes se não forem adotadas políticas públicas orientadas para os/as mais precários/as e vulneráveis.