A publicação do livro Inflamed: Deep Medicine and the Anatomy of Injustice, de Rupa Marya e Raj Patel surge, oportunamente, no seio de uma reflexão crítica centrada nas relações (in)visíveis entre a saúde, as injustiças profundas dos sistemas económico e político e as formas persistentes de discriminação e dominação que determinam as consequências da pandemia de COVID-19 em diferentes lugares. Os primeiros sinais de que a COVID-19 atingiu com mais força grupos socialmente oprimidos surgiram na província de Zhejiang, na China, onde os casos graves ocorreram principalmente entre trabalhadores agrícolas. À medida que o vírus SARS-CoV-2 se espalhou, a COVID-19 prosperou em lugares de encarceramento e nos territórios de populações indígenas, como foi o caso, por exemplo, da nação Navajo, nos Estados Unidos da América, contradizendo a frase “O vírus não discrimina”, usada recorrentemente no contexto pandémico.
Numa viagem pelos sistemas do corpo humano - digestivo, endócrino, circulatório, respiratório, reprodutivo, imunológico e nervoso - Rupa Marya e Raj Patel mostram-nos como a inflamação está ligada não só às infeções, mas à comida que comemos, ao ar que respiramos, à ausência de cuidados de saúde, aos eventos traumáticos que nos afetam ao longo da vida. A inflamação é sinal de problemas complexos e sistémicos. Os nossos corpos, a sociedade e o planeta estão inflamados, e as doenças inflamatórias com as quais vivemos hoje não são a causa de reações disfuncionais do corpo, mas sim as respostas corretas do corpo a um mundo patológico.
A inflamação é, ao longo deste livro, corpórea, metafórica, lugar e sintoma. É consequência dos encontros com os micro-organismos e as substâncias tóxicas que nos adoecem e geram reações do sistema imunitário face ao perigo. É desencadeada quando os tecidos e as células são danificados, e é necessário curar o que foi ferido. A inflamação é produzida na interseção de vias biológicas, sociais, económicas e ecológicas, em conexões e relações causais cujos contornos são definidos pelo mundo moderno. A compreensão dos processos inflamatórios implica, assim, conhecer o exposoma - o ambiente e as respostas biológicas aos fatores aos quais o corpo é exposto nos lugares em que decorrem as nossas vidas. Sabemos hoje que as marcas da pobreza e da opressão ficam gravadas nos corpos, seja na forma de poluentes ambientais ou da subnutrição, por exemplo, e que induzem mudanças nas hormonas e nos tecidos. Estas marcas, por sua vez, levam ao desenvolvimento anormal dos órgãos e, consequentemente, ao surgimento de doenças como diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e renais, obesidade, hipertensão, cancro, osteoporose e depressão na vida adulta. Estas alterações persistem no tempo de vida e algumas poderão vir a ser transmitidas às gerações futuras. Seja como resultado histórico da escravidão, da apropriação de terras e das fontes naturais de alimentos, várias destas doenças são agora prevalentes em comunidades indígenas do norte da Califórnia e do Alasca, como expõem os autores de Inflamed.
A partir de investigação científica atual do campo biomédico à qual Rupa Marya acrescenta as suas experiências enquanto médica e ativista, e dos estudos sobre a globalização de Raj Patel, assentes na sua investigação, escrita e envolvimento em diversos protestos contra o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, assim como nos seus depoimentos no Congresso norte-americano a propósito da crise alimentar global, este livro realça os aspetos positivos de uma medicina repleta de tecnologias e programas bem-intencionados que beneficiam alguns, mas deixam outros para trás.
Rupa Marya é médica e cofundadora do coletivo Do No Harm Coalition, que congrega profissionais de saúde comprometidos com a criação de respostas às necessidades médicas das pessoas que defendem a saúde e a justiça nas ruas e em movimentos sociais, e sofrem violência por parte do Estado. Este coletivo atua também em situações como a transmissão da COVID-19 entre pessoas sem-abrigo e nas populações indígenas. Marya descreve, ao longo do livro, experiências de envolvimento nas quais o seu conhecimento médico e as suas práticas de resposta à inflamação dialogaram com as práticas indígenas e as histórias de pacientes que apontam caminhos para as conexões que o livro propõe. Destas experiências emergem outras formas de relação com a saúde e a medicina no diálogo com práticas indígenas associadas a ontologias aparentemente incomensuráveis com a que funda as biociências.
Estas experiências mostram as possibilidades de uma tradução que preserva as diferenças, mas também os pontos de convergência que abrem ao diálogo, sustentando práticas de cuidado e de resposta à inflamação expressas em linguagens diferentes. Como podemos iluminar as relações invisíveis entre a saúde humana e as injustiças profundas dos nossos sistemas económico e político? A cura radical é, na visão dos autores, uma medicina profunda (deep medicine) capaz de localizar a origem causal das doenças nos espaços à volta e para além do corpo individual, reunindo as diferentes histórias do que fica escrito no corpo.
Não basta o modelo de diagnóstico da medicina ocidental que desmonta as coisas e as separa para as conhecer. A medicina profunda junta as coisas que foram divididas para as compreender e para curar o que foi partido por sistemas de opressão e dominação ao longo de uma longa história colonial em que a própria medicina foi construída e desempenhou um papel central. A medicina profunda requer uma análise e uma imaginação capazes de problematizar entidades fixas, fronteiras e limites. Requer projetos que mudem o exposoma, que tragam de volta as histórias e as relações que alteram a natureza do tempo e a química dos nossos corpos, que criam uma saúde que vai, como tantas vezes é proclamado, para além da ausência de doença. A medicina profunda requer éticas do cuidado de si, de todos os elementos que têm impacto no corpo, do ambiente, da comida, das populações e comunidades afetadas por múltiplas formas de toxicidade com enormes impactos nas suas condições de vida e no seu bem-estar e que são, também, as populações mais sujeitas aos efeitos discriminatórios das instituições, das práticas e dos saberes que configuram a saúde biomedicalizada.
Inflamed examina ao microscópio como as perceções, a compreensão e as intervenções na medicina moderna foram formadas através de processos que são indissociáveis do colonialismo. Herdámos uma visão colonial do mundo que enfatiza a saúde individual, desliga a doença dos contextos históricos e sociais em que esta surge, e nos desliga também das relações com outras espécies e com o planeta. Quando a doença apenas é localizável no orgânico, não é mais do que um movimento complexo de tecidos em reação a uma causa de inflamação, e o papel dos profissionais de saúde cinge-se a tornar essa localização visível e legível. A medicina profunda investiga e visibiliza, passo a passo, as formas como as histórias parciais das biociências e as dinâmicas de poder moldam as respostas imunológicas nas vias que desencadeiam a inflamação. É exemplar, a este propósito, a relação que os autores estabelecem entre os pulmões inflamados de uma mulher latina, que com eles partilhou a sua história, e os incêndios que devastaram a Califórnia (p. 11).
Descolonizar a medicina é difícil, e os processos de cura e reparação implicam a reestruturação do mundo como um lugar seguro para os sobreviventes florescerem. O tratamento prescrito pelos autores é a abolição como ato radical de imaginar o que o futuro poderá vir a ser - tornarmo-nos fugitivos das formas de clausura colonial resultante de séculos de guerra contra outras cosmologias, movendo-nos no sentido de configurações mais ampliadas da vida, voltando a tecer simbioses que sustentem outra práxis da cura. A abolição é o ato coletivo, e não uma prescrição individual, de criação de relações vitais (e de boa saúde) que merecem e precisam ser cuidadas.
Se as histórias da infância descrevem o mundo como um lugar perigoso, o stress sentido irá atravessar a pele, encurtar os telómeros e a vida útil de uma célula. A realidade social da violência descrita na história será internalizada como um ato de sobrevivência. As histórias são, literalmente, traduzidas para a linguagem molecular das nossas células. O peso biológico desta herança é parte do passado, presente e futuro porque o sistema imunitário toma a seu cargo manter as histórias vivas no corpo, respondendo a cada uma delas através da (des)ativação de vias e processos inflamatórios em cada um dos sistemas que compõem o corpo.
As histórias contadas em Inflamed são uma porta de entrada privilegiada para o exposoma de cada uma das pessoas escutadas. Contando e partilhando estas histórias, Rupa Marya e Raj Patel honram os legados de resistência e o conhecimento que são também moldados pelos seus próprios conhecimentos e práticas. Marya narra episódios da sua presença enquanto médica em territórios indígenas, em momentos de luta e resistência destes povos contra o extrativismo e a destruição dos seus territórios, contribuindo para uma anatomia política que nos ajuda a identificar as causas de raiz das patologias partilhadas pela humanidade, pelos nossos corpos e pelo mundo em que vivemos. As histórias mostram dimensões que estão presentes - como a dimensão existencial - mas que a medicina e as ciências tendem a ignorar ou fracionar, retendo delas apenas o que pode ser capturado na sua linguagem, mesmo quando têm como propósito a identificação das condições de vulnerabilidade de pessoas, grupos, comunidades e populações.
Narrar - e fazer - as histórias exige não apenas a capacidade de investigar seguindo um enquadramento metodológico de um projeto, mas uma investigação comprometida com as histórias e os mundos compostos de lutas pela dignidade e respostas múltiplas a crises que têm significado para o momento presente e para o futuro. A escuta e a atenção dedicadas às experiências invisíveis ou negligenciadas que não integram as narrativas dominantes da ciência - mas que são parte dos mundos complexos de saúde e doenças infeciosas, vulnerabilidade estrutural e sofrimento - exigem uma investigação lenta associada a uma ética de cuidado. Este tem sido, também, um desafio presente na nossa investigação que converge com o que guiou os autores deste livro - o compromisso de escrita de histórias que contemplam o corpo, as consequências dos contextos e das histórias singulares que desafiam os sistemas de opressão e as intervenções (bio)médicas feitas sem a participação de quem mais é afetado.
É o caso da história que Paulão nos quis contar desde o seu diagnóstico de VIH, há 12 anos, e que nos foi recontando em diferentes encontros ao longo de um percurso feito por entre o conhecimento biomédico, as experiências de sofrimento, o ativismo terapêutico e as afetividades transformadoras no seio de uma história mais ampliada e em construção na Plataforma de Saberes, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fiocruz, no Rio de Janeiro (Ferreira, 2021a: 168). A história da construção do seu ativismo e do seu envolvimento solidário com a melhoria da saúde das pessoas que encontra nos mundos por onde se move dá-nos pistas das lutas vividas para converter o conhecimento em futuros melhores. A sua história é tecida pelas práticas de cuidado do que necessita de ser reparado (porque é causa de sofrimento), das possibilidades que se produzem em processos relacionais e na criação de ações coletivas. Diz-nos Martin Savransky (2021) que as histórias (etnográficas, históricas, ficcionais) nunca são “apenas histórias”, que estas são também partes íntimas do universo, são o meio através do qual vislumbramos outras ecologias de coexistência que se tornam, assim, percetíveis no presente. É tempo, por isso, de narrar histórias das ciências que promovam a vida e as visões de mundo que reconheçam a interdependência e enfatizem o cuidado e as novas formas de relação com a própria vida.
Em “Choosing Life Stories: Body as Teacher”, .O Love, Susan M. Curry e Scott F. Gilbert (2021) trazem o desafio de mudar as histórias que a biologia nos conta sobre o corpo, acrescentando aspetos valiosos às que são propostas pela medicina profunda de Rupa Marya e Raj Patel. Concordam na proposta de que a forma como se contam as histórias do corpo pelas narrativas da ciência são construções sociais guiadas por uma visão da vida assente na competição, que reproduz e reforça modos de opressão sobre o que conta como humano. Reforçam, assim, a proposição de que as histórias que contamos sobre a nossa origem e a nossa evolução enquanto espécie, como desenvolvemos o corpo, influenciam os nossos comportamentos individuais e sociais.
A ciência oferece-nos, no entanto, histórias que celebram a reciprocidade e as relações de cooperação e que não se baseiam nas histórias de conflito e heroísmo coloniais europeias ilustrativas de histórias de mortes, caça, perigos mortais e competições heróicas, como diz Ursula Le Guin, e que Donna Haraway (apud .O Love et al., 2021) designa de prick tale. Pelo contrário, são histórias da vida e sobre a vida, da mediação ativa e dinâmica das partes que formam um todo coerente vivo e saudável. São as histórias das pessoas que cuidam dos bebés e das crianças, que guardam e cultivam as sementes, que protegem o território onde vivem, todas elas atividades essenciais para a nossa sobrevivência. A ciência precisa de contar novas histórias que descrevam a competição como parte de um complexo de interações que também incluem a cooperação e a reciprocidade dentro do nosso corpo. Durante a pandemia de COVID-19, foi o cuidado que ajudou a manter a doença sob controlo em diversos lugares, que ajudou doentes, que substituiu serviços (Souza et al., 2020).
Tal como em Inflamed, .O Love, Curry e Gilbert rejeitam a metáfora do sistema imunitário como um sistema de defesa capaz de destruir elementos “invasores” do nosso corpo. Sabemos hoje que o sistema imunitário se desenvolve em relações simbióticas com bactérias desde o desenvolvimento intrauterino. Em vez de “invasoras” ou capazes de provocar doença e morte, estas bactérias permanecem em nós e viabilizam e modulam processos essenciais à vida - como a digestão, a produção de hormonas, a circulação sanguínea, as sinapses nervosas - desempenhando funções críticas para a nossa saúde e longevidade. São parte das relações sem as quais não existimos e que se ampliam a todas as formas de vida não-humanas - bactérias, vírus, fungos, plantas e animais - que se materializam na diversidade, heterogeneidade e complexidade do mundo.
As histórias de cooperação e simbiose, de coexistência precisam de ser contadas porque a nossa sobrevivência não depende dos mais aptos, mas do cuidado. Narrar estas histórias exige, da nossa parte, o envolvimento na criação de espaços que não existem ainda, e que não cabem nas categorias ou classificações das ciências. Narrar as histórias das lutas por futuros não projetados pela medicina ou pelas estruturas políticas, económicas e sociais que moldam as infeções e epidemias - como nos mostram as histórias de Inflamed, e que encontramos também na nossa investigação (Ferreira, 2021b) -, é uma forma de abolição de uma monocultura e de exaltação das “ecologias do talvez”. Como diz Martin Savransky (2021: 13; tradução nossa): “As histórias fazem coisas, elas infetam as nossas vidas e práticas, elas tecem e rasgam mundos, elas moldam as formas como podem vir a ser habitados”. O livro aqui analisado mostra-nos que sem as histórias não percebemos a dimensão da experiência. As experiências de doença ou de sofrimento estão, por sua vez, relacionadas com as dimensões coletivas e da vida em comum que a medicina não consegue contemplar ou compreender, por não ter tradução nas causas somatizadas da doença ou do distúrbio. As histórias incluem os elementos que, sendo parte da experiência, são sempre mediados pela linguagem técnica e científica.
A grande força de Inflamed é a de nos mostrar que estas histórias emergem através do nosso envolvimento nas situações que possibilitam essa emergência, como mostra exemplarmente o compromisso de Rupa Marya. É neste compromisso (e risco) de nos associarmos a outras práticas da saúde e do cuidado, conscientes de que este implica também a nossa experiência e prática, que podemos ambicionar aceder à dimensão existencial das condições de vida, sofrimento, resistência e luta que as pessoas e comunidades enfrentam e que as inflamam.